É
da portuguesa Bial o medicamento que deixou um homem em morte
cerebral em França
ALEXANDRA CAMPOS e
ROMANA BORJA-SANTOS 15/01/2016 - 11:23 (actualizado às 12:27)
PÚBLICO
Farmacêutica
já tinha usado nova molécula em 108 pessoas. Um voluntário está
em morte cerebral e três sofreram lesões que poderão ser
irreversíveis. Fármaco não está a ser testado em Portugal.
Cinco homens estão
hospitalizados em França, um deles em morte cerebral e quatro em
estado grave, na sequência de um ensaio clínico em que
participaram, testando uma nova molécula do laboratório português
Bial. É um acidente “inédito” no país, lamentou a ministra da
Saúde francesa, Marisol Touraine. Os doentes têm entre 28 e 49 anos
e, segundo a governante, terão tomado uma dose mais elevada da
substância experimental.
A molécula é
produzida pela Bial que destacou que o ensaio em causa já envolveu
“108 voluntários saudáveis” em França desde Junho passado,
quando foi iniciado, sem notícia de “qualquer reacção adversa
moderada ou grave”. A nova substância não está a ser testada em
Portugal, asseguraram a Bial e a Autoridade Nacional do Medicamento
(Infarmed), em comunicado.
A farmacêutica
portuguesa precisou que são “cinco” os participantes no ensaio
com o “composto experimental” que apresentam sintomas graves (o
sexto internado não exibe sintomas neurológicos) e que todos estão
em vigilância médica permanente, no Hospital Universitário de
Rennes, no Oeste de França. “Neste momento temos no local vários
colaboradores para acompanharem a situação”, acrescenta a
empresa, que está a rever cuidadosamente todos os procedimentos.
“O desenvolvimento
desta nova molécula na área da dor (inibidor da enzima FAAH) segue
desde o início todas as boas práticas internacionais, com a
realização de testes e ensaios pré-clínicos, nomeadamente na área
da toxicologia”, enfatiza a farmacêutica, lembrando que o ensaio
foi aprovado pelas autoridades regulamentares francesas.
Sexta-feira à
tarde, em conferência de imprensa, a ministra francesa esclareceu
que a substância usada no ensaio clínico não contém qualquer
derivado de cannabis, ao contrário que tinha sido afirmado
inicialmente pela agência France Presse. “Não continha cannabis
nem qualquer derivado de cannabis”, assegurou Marisol Touraine. A
molécula testada tem o nome de código BIA 10-2474 e, segundo a
ministra, citada pelo Le Monde, é um produto que visa tratar “os
problemas de humor e de ansiedade, e os problemas motores, ligados às
doenças neurodegenerativas”.
Ainda de acordo com
Marisol Touraine, foi no laboratório do centro de investigação
Biotrial (que estava a conduzir o ensaio a pedido da Bial), em
Rennes, que o fármaco analgésico foi ministrado a 90 pessoas que
foram recrutadas e participaram voluntariamente no ensaio clínico.
Este ensaio incluiu 128 pessoas (as restantes tomaram um placebo).
Mas foram os últimos
seis participantes nos testes, homens com idades compreendidas entre
os 28 e os 49 anos, que começaram a manifestar sintomas de que algo
estava a correr mal logo no domingo passado (dia 10), explicou. Os
voluntários começaram a tomar a dose alegadamente mais elevada
desta molécula a partir do dia 7 deste mês. Outros dois receberam
um placebo.
O ensaio clínico
estava a decorrer ainda na chamada fase I, ou seja, quando apenas
entram nos testes voluntários saudáveis, de forma a perceber-se
quais são os efeitos secundários e tóxicos dos tratamentos, e após
a fase pré-clínica, em que são experimentados em animais. Nas
fases posteriores, os ensaios são alargados e incluem doentes para
se testar, além da segurança, a sua eficácia no tratamento das
patologias.
O director do
departamento de neurologia do hospital de Rennes, onde os seis
doentes permanecem internados, Pierre-Gilles Edan, adiantou
entretanto que, além do homem que está em morte cerebral, há
outros três com “lesões que poderão ser irreversíveis”. “À
chegada do primeiro, pensamos tratar-se de um acidente vascular
cerebral (AVC)”, explicou. O estado do doente agravou-se
rapidamente “ao ponto de estar hoje num estado de morte cerebral”,
lamentou o médico.
Quanto aos outros
pacientes, a situação agravou-se logo nos primeiros dias desta
semana, disse, e acrescentou que “quatro têm problemas
neurológicos de diferente gravidade”. O outro doente não
apresenta sintomas mas está a ser sujeito a uma observação
apertada, tendo em conta o que aconteceu com os restantes
voluntários. Dos quatro com sintomas, três já estão numa condição
“suficientemente severa” para se poder temer um desfecho mais
grave.
Problema de dosagem?
Marisol Touraine
enfatizou que se trata de um acidente inédito em França, que as
causas permanecem desconhecidas e sublinhou que todos os afectados
pertenciam ao mesmo grupo de voluntários, a quem o medicamento foi
administrado de forma repetida. Ou seja, com uma dose mais elevada.
Foi na quinta-feira
à noite que o Ministério da Saúde francês foi notificado sobre os
problemas que surgiram na sequência dos testes à molécula, que é
administrada por via oral, e todos os voluntários que estavam a
participar no ensaio foram entretanto chamados.
Os ensaios clínicos
foram interrompidos logo no dia 11, segunda-feira, as autoridades
judiciais francesas abriram um inquérito ao caso e a ministra
ordenou uma inspecção administrativa à “organização, meios e
condições de intervenção” do laboratório na realização do
ensaio clínico em causa. A autoridade francesa do medicamento também
está já a investigar o laboratório e as circunstâncias em que
decorriam os testes.
Questionada pelo
PÚBLICO, a Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed), num
comunicado, confirma que tomou conhecimento, “através da Agência
Francesa do Medicamento, da ocorrência de um acidente grave, num
centro de investigação em França, no âmbito de um ensaio clínico
de fase I com um medicamento experimental produzido num laboratório
nacional”.
No entanto, a nota
nunca refere o nome da Bial. O Infamed acrescenta que, de acordo com
a agência francesa, “foram hospitalizadas 6 pessoas,
encontrando-se uma delas em morte cerebral”. “Esta situação
está a ser analisada e acompanhada pelas autoridades francesas que
têm partilhado a informação no contexto da rede europeia das
autoridades do medicamento. Este medicamento não está a ser
utilizado em nenhum ensaio clínico em Portugal”, lê-se na nota.
Do lado da tutela, o
ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, garantiu que está a
acompanhar “com preocupação” o caso, mas reiterou a sua
confiança na Bial. O governante, citado pela Lusa, falava à margem
da tomada de posse do novo conselho directivo do Infarmed.
Caso raro mas não
inédito na UE
Os problemas graves
em ensaios clínicos em fase I na União Europeia (UE) são raros,
mas não inéditos. Em 2006, seis voluntários saudáveis ficaram
também internados nos cuidados intensivos de um hospital em Londres,
depois de serem submetidos a um tratamento experimental, recorda a
Reuters, que diz que um dos afectados foi descrito como parecendo o
“homem elefante” e que outros perderam parte dos dedos.
O ensaio levou ao
colapso da alemã TeGenero, que estava a desenvolver um tratamento
conhecido como TGN1412. A substância entrou entretanto em novos
ensaios para a artrite reumatóide e revelou-se promissora em doses
inferiores às originalmente pensadas.
Cinco anos antes,
uma jovem de 24 anos, Ellen Roche, morreu nos Estados-Unidos, quando
participava num ensaio clínico de um medicamento experimental contra
a asma (hexamethonium), conduzido pela Universidade Johns Hopkins.
“Há um risco
inerente à exposição de pessoas a qualquer componente novo”,
reconheceu à Reuters o especialista Daniel Hawcutt, professor de
farmacologia na Universidade Britânica de Liverpool. Contudo, de
acordo com o docente, a Agência Europeia do Medicamento impõe
normas muito apertadas para eliminar o risco ao máximo, o que não
invalida que este seja um trabalho “altamente especializado”.
Em Portugal, o
último balanço do Infarmed (de 2015) indicava que estavam então a
participar em mais de 350 ensaios clínicos cerca de 12 mil pessoas,
principalmente nas áreas da oncologia, doenças do sistema nervosos
e doenças infecciosas.
As novas moléculas
só são oficialmente classificadas como medicamentos depois de
testadas e aprovadas pelas autoridades competentes.
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