Recordando ... uma
ilustração do progressivo empobrecimento dos patrimónios, das
memórias e das artes artesanais de Portugal
OVOODOCORVO
225
anos depois, o Atelier Gessos Maceiro vai fechar portas
RITA CIPRIANO /
29/9/2015, OBSERVADOR
Foi criado em 1790
pela família Maceiro e durante 225 anos criou, preservou e restaurou
peças em gesso. Um dos mais importantes ateliers em Portugal fecha
portas a 30 de setembro.
Eram 9h00 quando
João Paulo Mourato abriu as portas do Atelier Gessos Maceiro pela
última vez. Sentado num escritório apertado, admite que é “uma
frustração”. Mostra os livros que, durante mais de 200 anos,
ocuparam as prateleiras do atelier, um dos mais antigos dedicados à
criação, preservação e restauro de peças em gesso em Portugal.
“Isto é só pó”,
diz apontando para o papel escuro. “Veio cá uma senhora do Museu
de Arte Antiga, especialista em restauro de papel, e disse que os
livros estão em boas condições. Como não os sei restaurar,
prefiro não lhes mexer. Tenho medo de os estragar.”
Os livros, escritos
em latim e ilustrados com fachadas, colunas e capiteis de antigos
prédios alemães, são apenas algumas das peças que compõem o
enorme espólio da empresa, criada em 1790 pela família Maceiro. Em
cima de mesas e prateleiras, amontoam-se moldes de silicone, florões
para tetos, rosetas, painéis e frisos. Tudo o que por ali se fez
durante as últimas décadas — mas não só. Há moldes antigos, do
século XVIII e XIX, e desenhos feitos a tinta-da-china e carvão.
Aqui e ali,
encostadas às paredes, erguem-se colunas altas. Há capitéis,
pilastras e até um busto em barro do General Ramalho Eanes. Tudo
isso — e o que mais se encontre pela loja da Rua Luciano Cordeiro,
em Lisboa — será vendido por João Paulo Mourato. A quem? A quem
quiser comprar, pois claro. “Não dou nada a ninguém! Isto é um
país a brincar, não é de gente séria. É gente saloia e
mesquinha.”
Sem ter quem desse
continuidade ao negócio, durante oito anos, João Paulo Mourato
trocou emails com instituições, ministros e chefes de gabinete, na
esperança de que alguém quisesse adquirir o “espólio produtivo,
documental, histórico e museológico” que foi acumulado durante
225 anos pela família Maceiros e seus descendentes. De todos,
recebeu a mesma resposta: “Não há dinheiro”.
“Entre 2014 e
2015, pelo menos umas 40 pessoas visitaram o atelier”, confessa.
Sentada à sua frente, a mulher, Maria José Sousa, sorri. Pintora de
profissão, tomou as rédeas do atelier em 1993, altura em que a tia,
então dona da Gessos Maceiro, lhe passou a empresa. “Quando o
marido morreu, a tia dela ficou com a empresa. Então meteu cá um
encarregado, que era filho da sobrinha. Mas ele foi-se embora de
repente, e desapareceram várias coisas daqui. Deixou a senhora em
mais lençóis.”
Maria José Sousa,
que tinha estudado na Faculdade de Belas-Artes, era então
professora. Como não gostava muito da profissão, aproveitou a
oportunidade que lhe foi apresentada pela tia. Está à frente da
Gessos Maceiro desde então, sempre com o apoio do marido. Este,
engenheiro, confessa que o seu papel ali sempre foi o de organizador.
“Quando vim para aqui, 30% do tempo era passado à procura dos
moldes. Ninguém sabia onde estava nada!”
Para facilitar o
trabalho dos artesãos, João Paulo Mourato dedicou-se a catalogar as
mais de 200 peças que constituem o espólio da empresa. “Também a
informatizei. Criei uma página na internet em quatro línguas. Fui
eu que fiz tudo, só comprei o esqueleto.” Até porque, “se eles
conseguem criar um site, eu também consigo!”
Na altura, a loja
funcionava na Avenida da Liberdade, no número 203. Aí, João Paulo
e Maria José chegaram a empregar sete trabalhadores, entre os quais
alguns prestadores de serviços que recebiam 20 contos por dia.
“Tínhamos uma senhora que atendia ao público que recebia 80
contos, mais comissões. Por mês, chegava a tirar 160 contos.
Dividíamos o bolo. Fazíamos isso para que todos se sentissem
interessados no trabalho.”
“Não” atrás de
“não”
Em 1996, surgiu a
oportunidade de a Gessos Maceiro fazer uma (primeira) exposição, em
parceria com a Câmara Municipal de Lisboa. Depois de uma primeira
reunião, ficou acordado que o Museu da Cidade ficaria encarregue de
servir de elo de ligação entre a câmara e a empresa. Apesar do
entusiasmo inicial, a câmara depressa caiu em silêncio.
Depois de alguns
dias sem notícias, João Paulo Mourato lá conseguiu entrar em
contacto com a então diretora do Museu de Lisboa, que lhe perguntou
sem rodeios “quanto” é que queria. “Disse-me que não havia
dinheiro e que talvez só desse para fazer a exposição ‘daqui a
dois anos'”. Para o sócio-gerente da Gessos Maceiro, este foi “o
primeiro embate”.
Em 2006, Maria José
Sousa adoeceu. O esforço de vários anos de trabalho fez com que
desenvolvesse uma hérnia discal. “O atelier começou a ter um
ritmo diferente, ficou semi-paralisado”, admite João Paulo
Mourato. Foi nessa altura que contactou pela primeira vez a Fundação
Ricardo Espírito Santo e lhe propôs que adquirisse o espólio.
Apesar do interesse demonstrado, foi-lhe dito que a Fundação não
tinha dinheiro.
O atelier ficou
então “no limbo”. Os trabalhadores foram, a pouco e pouco, sendo
dispensados, até que a empresa ficou apenas nas mãos de João Paulo
e Maria José. Mas a doença da pintora, cada vez pior, fez com que a
Gessos Maceiro permanecesse a meio gás. “Íamos abrindo, uma ou
duas vezes por semana”, conta o marido.
Tentar arranjar
soluções para os problemas parece ser a especialidade de João
Paulo. Diz que aprendeu isso na faculdade. E foi exatamente isso que
fez quando percebeu que não havia forma de continuar com a Gessos
Macedo. Como não foi possível encontrar na família quem quisesse
seguir o negócio, o sócio-gerente virou-se para as instituições
locais.
Durante os oito anos
que se seguiram, entre 2006 e 2015, retomou por diversas vezes o
contacto com a Fundação Ricardo Espírito Santo que, apesar do
interesse que sempre demonstrou, se recusou a acolher o espólio.
Falou com a Santa Casa da Misericórdia, com o Ministério da Cultura
e com a Câmara Municipal. Algumas das pessoas com quem falou até
eram clientes da empresa. Mas, de todos, ouviu sempre que não havia
dinheiro, mas que o espólio centenário “era muito interessante”
e importante para a cultura.
“Todos quantos
contactamos dizem e escrevem sobre a grande importância para a
cultura nacional que tem o Atelier Gessos Maceiro, mas na verdade são
os projetos apadrinhados politicamente e economicamente — como por
exemplo foi a criação do Museu Berardo, o Museu dos Coches, para
citar alguns — que recebem os apoios e o dinheiro dos
contribuintes”, diz. Sobre o Museu Berardo chegaram até a
dizer-lhe que, se não fosse por ele, não havia um Picasso em
Portugal.
“São uns saloios,
uns mesquinhos e uns oportunistas”, admite sem receios. O problema,
garante João Paulo, é não saberem apreciar a verdadeira arte.
Porque o trabalho que se amontoa pelo Atelier Gessos Maceiros também
é arte. E é por isso que o espólio será vendido, peça por peça,
perdendo-se assim todo o saber e técnicas que foram acumulados
durante mais de 200 anos de atividade. Mas João Paulo Mourato está
tranquilo. “Não devo nada a ninguém e ninguém me deve nada a
mim.”
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