OPINIÃO
“Vistos gold” 2020: disfarçados mas igualmente perigosos
Estamos a ser fintados por esta versão cor de rosa dos “vistos gold”, quando há pelo menos seis anos que se pede ao governo que aja em nome da decência.
SUSANA PERALTA
7 de Fevereiro de 2020, 6:15
As críticas aos “vistos gold" são antigas e vêm de várias origens. Em Portugal, a Associação Cívica Transparência e Integridade (TI-PT, da qual faço parte) tem alertado para a porta escancarada à corrupção e lavagem de dinheiro que este esquema envolve. Também o Parlamento Europeu (onde Ana Gomes, então eurodeputada, desempenhou um papel chave) e a Comissão Europeia recomendam que Portugal elimine a venda de residência. Do lado dos partidos, BE, PAN e PCP já várias vezes se afirmaram a favor da eliminação dos “vistos gold". Em face disto, o PS resolveu apresentar-nos uma versão 2.0, supostamente amiga do interior do país e do emprego, em vez de resolver os problemas do esquema. A partir de agora, só vai ter acesso à via rápida de acesso ao Espaço de Schengen quem investe fora das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e das Comunidades Intermunicipais do Litoral.
Estamos a ser fintados por esta versão cor de rosa dos “vistos gold", quando há pelo menos seis anos que se pede ao governo português (que na altura era PSD/CDS) que aja em nome da decência. A primeira resolução do Parlamento Europeu sobre “vistos gold", de Portugal e de outros países da UE, data de janeiro de 2014 e tem o sugestivo título de “Resolução do Parlamento Europeu sobre cidadania europeia à venda”. Seguiram-se várias iniciativas do Parlamento e da Comissão Europeia, que culminaram em março de 2019 com a recomendação do PE de eliminar os esquemas de “vistos gold". O relatório European Getaway, publicado em 2018 pela Transparência Internacional, onde Portugal tem honras de capa, deixou-nos vários avisos preocupantes, como o facto de por aqui não se verificar se os requerentes estão a ser investigados ou são objeto de queixas por crimes nos seus países de origem.
Mais recentemente, no relatório da Comissão Europeia Investor Citizenship and Residence Schemes in the EU, de 23 de janeiro de 2019, Portugal aparece citado várias vezes por más razões. Por exemplo, quando se assinala que o esquema requer a presença do “residente” apenas sete dias em território nacional, em vez da presença física contínua normal nestes casos. Recordemos que, por contraste, um residente fiscal tem de passar 180 dias por ano em Portugal. Ou o facto de, contrariamente a outros países que implementam controlos para evitar que o esquema seja utilizado para lavagem de dinheiro, a legislação portuguesa ser omissa neste aspeto. O relatório também refere que a lei prevê uma auditoria anual pela Inspeção-Geral da Administração Interna, que deve ser comunicada à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República e depois publicitada no site da Assembleia da República. E constata que o site do Parlamento tinha apenas um relatório disponível, datado de 2014.
Também não é por acaso que a alteração surge em simultâneo com a decisão do Tribunal Administrativo de Lisboa, que deu razão à TI-PT, no sentido de obter informação acerca dos “vistos gold". O Ministério da Administração Interna foi recusando disponibilizar a informação, mesmo depois da decisão da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos que o obrigava a fornecer os dados, invocando argumentos de proteção de privacidade e segurança interna. Curiosamente, a segurança interna é invocada para proteger um esquema opaco, especialmente perigoso para a nossa segurança.
A decisão do tribunal é interessante por ter obrigado o SEF a fornecer informação, mas também pelo que ficámos a saber que o governo não sabe, ou afirma não saber. Por exemplo, nada disse sobre a distribuição regional dos investimentos, apesar de ter facultado essa mesma informação em 2018 ao deputado José Manuel Pureza. Não reporta o número de investimentos realizados por empresas ou o número de vistos que foram revogados desde o início do programa e respetivas razões do cancelamento. Também não me descansa não saber quantos contactos foram realizados com as autoridades dos países de origem dos requerentes para verificação de informações. Será que foi feito algum? Como é costume, o ministro fez saber que nunca fez uma avaliação do programa dos “vistos gold". Mas então, senhor ministro Eduardo Cabrita, se ainda não sabe para que é que isto serve, com que base foram decididas as alterações?
Na resposta enviada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras à TI-PT há uma parte especialmente preocupante, que é a que diz respeito aos mecanismos de controlo sobre as origens do capital investido e os beneficiários efetivos das empresas que investem no país ao abrigo do programa. O SEF foge à questão, afirmando que não tem competência para verificar a origem do capital. A mim não me importa saber o que faz o SEF, mas se é acionado algum mecanismo específico de fiscalização, como se impunha num programa que facilita a residência em função da capacidade a pagar por ela – e fico a saber que não é.
Quanto a antecedentes criminais, o SEF verifica o registo criminal do país de origem ou daquele onde o requerente resida há mais de um ano. Portanto, basta viver num país durante um ano e tentar comportar-se para limpar o curriculum. Depois, garante o SEF, só dá o visto a quem não tiver sido condenado por crime que “em Portugal seja punível com pena superior a um ano”. Ora bem. Muitas destas pessoas fazem parte de elites de países com instituições fracas, conhecidas por estar ao serviço dos cleptocratas respetivos e das suas cliques. A probabilidade desta gente alguma vez ter sido condenada no seu país de origem é mesmo muito baixa. É inaceitável que um Estado de direito se contente desta forma com o fraco julgamento de países capturados por elites corruptas.
O PS e o PSD, que votaram a versão 2.0 para suavizar os “vistos gold" aos olhos dos eleitores e eleitoras, sabem bem que apertando o controlo perdem a clientela suja que andou a comprar residência a preço de saldo. Só por isso é que não fazem o que a decência impõe.
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