sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

PCP quer ouvir ministra da Cultura sobre eventual cedência de obras de arte a grupo hoteleiro / Património Cultural: e, de súbito, o impensável



PATRIMÓNIO
PCP quer ouvir ministra da Cultura sobre eventual cedência de obras de arte a grupo hoteleiro

Estado terá acordado a cedência de obras de arte da Colecção Rainer Daehnhardt ao grupo hoteleiro Vila Galé, no âmbito de um contrato de recuperação de imóveis ligados à Coudelaria de Alter do Chão, onde estava originalmente o espólio.

Lusa 14 de Fevereiro de 2020, 0:30

O PCP pediu nesta quinta-feira a audição da ministra da Cultura, Graça Fonseca, no Parlamento sobre a eventual cedência de obras de arte da Colecção Rainer Daehnhardt ao grupo hoteleiro Vila Galé.

Num requerimento à comissão de Cultura, a deputada Ana Mesquita escreveu que “o PCP teve conhecimento” de que o Governo “está a desenvolver diligências” para “ceder à Vila Galé International, SA as obras de arte pertencentes à Colecção Rainer Daehnhardt”, à excepção “de 13 obras cujo interesse a Companhia das Lezírias também já manifestou”.

 “Aparentemente, o Governo pretende entregar para decoração de um hotel privado colecções incorporadas num museu nacional que foram compradas pelo Estado, na sequência da extinção da Fundação de Alter, em Alter do Chão”, lê-se no requerimento em que a bancada comunista pede a audição da ministra Graça Fonseca na comissão parlamentar de Cultura e Comunicação.

Segundo o PCP, o argumento é a existência de um contrato entre o Estado e a empresa, no âmbito do programa Revive, destinado à recuperação e requalificação de património público para fins turísticos, para a “exploração de um conjunto de imóveis na Coudelaria de Alter”.

“No limite”, escreve ainda a bancada comunista, “seria como adquirir os Miró ou a colecção BPN, incorporá-los num museu nacional” e depois “ir buscá-los para colocar nos gabinetes dos administradores ou nas agências de bancos que viessem a comprar os salvados dos bancos a que o Estado tenha acudido”.

O PCP alega que pelas informações “a que teve acesso”, sem as identificar, a cedência das obras “teve, desde logo, a anuência dos membros do Governo anterior responsáveis pelas áreas da Economia, Agricultura e da Cultura”.

Toda esta situação é, para os deputados, “gravíssima pelo que é em si e pelo precedente grave” que pode “constituir de apropriação de património público para fins privados”.

O espólio da Fundação de Alter foi comprado em 2012; seis anos depois, “parte do espólio museológico, conhecido como a Colecção Rainer Daehnhardt, sai para o Museu dos Coches, por ordem da Direcção-geral do Tesouro e Finanças”, lê-se na página na Internet do Sistema de Informação para o Património Arquitectónico. Nesse ano, fica à guarda da Câmara Municipal de Alter do Chão o núcleo arqueológico, existindo um núcleo dessas colecções em exposição na vila alentejana.


OPINIÃO
Património Cultural: e, de súbito, o impensável

Com as nomeações agora anunciadas pelo Governo, está em causa a captura de toda a área do património cultural pelos interesses da rentabilização imobiliária.

Luís Raposo
14 de Fevereiro de 2020, 16:33

E, de súbito, o impensável. Como se os deuses da governação na área do património cultural tivessem enlouquecido todos aos mesmo tempo. No mesmo dia, ficámos a saber duas coisas notáveis, sendo que a segunda esclarece a verdadeira dimensão da primeira.

Esta, a primeira, veio a público quando se soube que o PCP tinha requerido a audição urgente da ministra da Cultura em sede parlamentar, para esclarecer os fundamentos de um despacho da sua secretária de Estado que manda depositar em hotel privado colecções adquiridas pelo Estado e incorporadas no Museu Nacional dos Coches. Um despacho assombroso, que ficará nos anais, fazendo destronar o célebre decreto da vírgula. Aqui não, nada de dissimulação em vírgulas, tudo explícito: importa apoiar o grupo hoteleiro privado no âmbito do Revive; no hotel as peças ficarão acessíveis ao público (os mais cínicos dirão que até melhor, porque com entrada gratuita… desde que se invadam átrio e espaços públicos, talvez também os corredores e os quartos); e o Museu Nacional pode definir condições de conservação (os mais cínicos dirão também que melhor do que no próprio museu… porque neste a penúria é consabida e nos hotéis ou no turismo abunda a riqueza). Mas o principal fica por dizer. E tal resume-se nesta ironia: enquanto uma ministra participa à polícia o desaparecimento de obras de colecções públicas entregues para uso mais do que duvidoso, ainda que público (seria importante verificar também outros acervos retirados dos museus nacionais para mobilar gabinetes ministeriais, de que o último caso que recordo foi o de Paulo Portas), a secretária de Estado prossegue caminho contrário e coloca colecções públicas em grande risco, entregando-as a privados e ao serviço de apenas alguns.

Interrogámo-nos por que teria sido feito tal despacho, se pela pressão do turismo e da sua rede tentacular de interesses, se por real convicção, se por mera ingenuidade, ou até se por saber a sua autora que já cá não estará quando –​ assim nos ensina a vida – for de novo preciso participar à polícia. Mas de facto isso pouco importava, porque o que relevava era a espantosa leveza de qualquer político de circunstância ter a desfaçatez de entender que pode dispor, sem consequências políticas e até cíveis, de colecções de museus nacionais, ainda por cima contra os pareceres técnicos do seu departamento e até sem ouvir o órgão consultivo existente também para o efeito, sendo certo que as colecções incorporadas em museus nacionais apenas podem ser usadas segundo critérios museológicos, nos museus antes do mais, ou fora deles, mas em espaços adequados, de forma temporária e sempre no âmbito de programas museológicos.

Acontece que no mesmo dia em que ainda nos perguntávamos das razões deste lastimoso despacho recebemos a notícia que tudo iluminou: afinal não era apenas um museu e um hotel que estavam em causa; era a captura de toda a área do património cultural pelos interesses da rentabilização imobiliária. A nomeação, pela mesma secretária de Estado, aqui óbvia e necessariamente em articulação com a ministra e, quiçá, com o próprio primeiro-ministro, de um técnico do imobiliário, sem qualquer currículo atendível, para director-geral desta área (e de dois novos subdirectores-gerais, também aparentemente sem currículo credível), fala por si mais do que mil palavras – e abre o jogo de forma tão chocante que se diria impossível em qualquer governo, mormente num que se tem por ser de esquerda. É caso para dizermos que se regressa ao socratismo, no pior do seu pior.

A não haver rápida inversão de percurso, tempos interessantes se aproximam, pois. Tempos de afirmação da cidadania, de indignação e de acção popular, neste Portugal democrático, herdeiro de Abril.

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