ANÁLISE
Os três pólos
Hoje, incluindo na China, vivemos no tempo dos cidadãos. Xi Jinping deixou de ter o seu futuro de grande timoneiro assegurado.
TERESA DE SOUSA
9 de Fevereiro de 2020, 6:10
1. Há menos de um ano, Xi Jinping era o novo e poderoso “imperador” da China – um Mao devidamente adaptado aos tempos modernos, com a ambição de concentrar nas suas mãos todo o poder, de transformar os seus pensamentos no novo “Livro Vermelho”, de perdurar para além do mandato de dez anos que os seus antecessores depois de Deng cumpriram no comando da República Popular e do Partido Comunista. Bastou uma sucessão de acontecimentos, muito para além do seu controlo, para que a “longa vida” de Xi fosse posta em causa. A China de hoje não é a mesma China de Mao. As miseráveis “massas populares” que Mao convocava contra os “quartéis generais” do partido que desafiavam o seu poder já não existem. Os milhões e milhões de mortos da fome ou da repressão durante o “grande salto em frente” ou a “grande revolução cultural” já não são “permitidos”.
A rebelião democrática de Hong Kong desafiou a sua autoridade e mostrou os limites da repressão. Milhões de pessoas de todas as origens sociais resolveram reagir na rua e sem descanso a qualquer tentativa de Pequim de cercear as liberdades garantidas para o período de transição de 50 anos ao abrigo da doutrina “um país, dois sistemas”. As ruas de Hong Kong animaram os eleitores de Taiwan que, nas eleições presidenciais de Janeiro, resolveram dar um segundo mandato à Presidente Tsai Ing-wen, defensora da independência, contra o candidato apoiado por Pequim, apesar das manobras intimidatórias do regime, incluindo a ameaça do uso da força militar. O poder chinês estava convencido de que o enriquecimento espectacular da China continental derrubaria os últimos obstáculos ao progressivo retorno da Formosa à mãe-pátria. Enganou-se. Os habitantes da ilha valorizam o seu modo de vida e a liberdade de que gozam, para além da sua vibrante economia. Os Estados Unidos, apesar dos compromissos assumidos com Pequim, continuam a fornecer a Taiwan o armamento que a faz sentir-se relativamente segura. A desproporção entre o poderio militar americano e chinês ainda é suficiente para desaconselhar aventuras.
O coronavírus foi o “cisne negro” que ninguém esperava. Os seus efeitos são devastadores. Um regime totalitário hierarquizado está sempre em enorme desvantagem para enfrentar uma epidemia desta natureza. A China não foi excepção. Morreu na quinta-feira o médico de 34 anos que, em meados de Dezembro, partilhou na Internet as suas preocupações com um primeiro caso com que se deparou. Li Wenliang recebeu a visita da polícia, que o acusou de “fazer comentários falsos”, de agir ilegalmente para “perturbar a ordem social” e o forçou a assinar uma declaração prometendo que não voltaria ao assunto. Pequim acabou por ter de fazer dele um herói. A sua morte está a provocar uma vaga de protestos contra as autoridades locais. Hoje, incluindo na China, vivemos no tempo dos cidadãos, por mais repressores que sejam os regimes políticos. O que está em causa é “infalibilidade” do regime e do seu líder supremo. Xi Jinping deixou de ter o seu futuro de grande timoneiro assegurado.
2. Em Washington, Trump foi absolvido das acusações de abuso de poder e de obstrução à justiça feitas pela Câmara de Representantes. Nunca houve dúvidas de que seria este o resultado do “julgamento” do Senado, onde os Republicanos têm maioria. Vimos, ao longo de meses, uma democracia vibrante a funcionar, com uma sucessão impressionante de depoimentos que não deixaram pedra sobre pedra a respeito do comportamento de Trump no “caso ucraniano”. Foi uma lição sobre a forma como o actual Presidente se relaciona com o mundo, a sua falta de qualquer critério a não ser o do seu próprio interesse, o desrespeito para com as decisões do Congresso, a chantagem descarada ao líder de um país aliado que depende do apoio americano para resistir à agressão russa, com o único objectivo de obter uma vantagem eleitoral. Para assistirmos depois ao triste espectáculo do que é hoje o velho Partido Republicano, sem respeito pelos valores fundamentais da Constituição ou a total falta de vergonha com que “ultrapassa” os factos, cantando e dançando ao ritmo que lhes é ditado pela Casa Branca. As justificações que arranjaram para o seu voto foram patéticas. Como é possível que o Grand Old Party se tenha transformado numa caixa-de-ressonância de um Presidente que, noutra altura, teria sido considerado como absolutamente “inadequado” ao exercício do cargo?
Durante a campanha eleitoral, Trump disse que poderia descer a 5.ª Avenida e disparar contra um qualquer transeunte que nada lhe aconteceria. Na altura, rimo-nos. Hoje, sabemos que tinha razão. Na quinta-feira, na “celebração” do fim do impeachment, utilizou uma linguagem ainda mais desbragada e grosseira, classificando os serviços de segurança de “dirty cops”, Nancy Pelosi de “criatura horrível”, Adam Schiff de “corrupto”, o FBI de “escumalha”. Na mesma semana, os Democratas, em busca de uma figura com um ar minimamente presidenciável e uma estratégia política mobilizadora, deram de si próprios um triste espectáculo no Iowa, o primeiro acto das “primárias” para a escolha de quem vai desafiar Trump em Novembro. Um desastre. O desemprego registou um dos valores mais baixos de sempre: 3,6%. A aprovação Trump está nos 49% – mais do que Clinton ou Obama na mesma altura do mandato que os levou à reeleição.
Até agora, era relativamente fácil dizer que os estragos provocados por este Presidente se faziam sentir muito mais no mundo do que em casa. A rapidez com que está a destruir a ordem internacional liberal da qual a América foi o principal garante é assustadora e começa a parecer irreversível. Hoje, no entanto, os estragos que ameaça infligir à democracia americana começam a ser igualmente preocupantes.
3. A velha Europa, o terceiro pólo deste mundo em vertiginosa mutação, não está imune ao contágio. Já não vale a pena falar do significado da saída do Reino Unido – seja qual for o ponto de vista com que se olhe para a União Europeia e para o seu futuro. A Alemanha, paralisada pela sua própria “introspecção”, limita-se a defender o status quo. Na última semana, a chanceler teve de intervir a partir da África do Sul para pôr ordem no seu próprio partido, que se preparava para viabilizar o novo ministro-presidente da Turíngia, um liberal, ao lado da AfD. Quase 40% dos alemães consideram que já chega de falar do Holocausto. A CDU está dividida entre quem pensa que, mais tarde ou mais cedo, vai ser preciso aceitar alianças com o partido de extrema-direita e os que, como Merkel, rejeitam totalmente qualquer concessão. São duas faces da mesma moeda – a Europa e a política interna – da crise existencial do país mais poderoso da União, contra cuja vontade é difícil fazer seja o que for.
Macron tenta dar sentido a uma França europeia, mas falta-lhe um interlocutor em Berlim. O eixo sobre o qual a roda europeia costumava rodar está quebrado. A saída do Reino Unido obriga à revisão das estratégias nacionais. Os equilíbrios de poder vão ser diferentes. A primeira deslocação europeia do Presidente francês depois do “Brexit” foi a Varsóvia (cujo Governo nunca se eximiu de criticar), para dar forma a um novo “triângulo de Weimar” (Paris-Berlim-Varsóvia), cujo papel não parece ser assim tão óbvio. Ao mesmo tempo, está a tentar uma aproximação à Rússia. Na sexta-feira, foi ao Colégio de Guerra falar da “force de frappe” nuclear francesa, dando pela primeira vez um sinal de que ela poderia estar ao serviço da segurança europeia. Mas também disse que, “enquanto únicas potências nucleares, a França e o Reino Unido afirmaram, em 1995, que não podiam imaginar uma situação em que o interesse vital de uma delas pudesse ser ameaçado sem que fosse igualmente uma ameaça ao interesse vital da outra”. “Quero hoje reafirmar solenemente o mesmo compromisso.” Provavelmente, a “euforia” criada pela ilusão de que era Londres que travava o caminho glorioso para uma “ever closer union” não durará muito tempo. Enquanto os líderes europeus se digladiam sem o mínimo pudor sobre um orçamento plurianual de 1% do Rendimento Nacional, os think-tanks escrevem longos tratados sobre a Europa “enquanto potência”.
tp.ocilbup@asuos.ed.aseret
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