"Mais grave e sério ainda é a teoria dos defensores da restituição. De grande parte deles, pelo menos. Há quem queira a devolução no quadro mais amplo de um pedido de perdão pelo colonialismo e de desculpa pelas conquistas, de penitência pela escravatura e de arrependimento pelo domínio político. Para devolver, reclamam, é necessário rever a história do país, repensar a colonização e considerar que esta foi um erro! E também será necessário mostrar verdadeira contrição pelas descobertas e garantir que não haverá mais racismo!
É um verdadeiro delírio adolescente que criou raízes nas mentes de tão ilustres europeus de pele branca e alma colorida. Sarar cicatrizes da História é uma actividade que conduzirá certamente ao desastre. Tal empreendimento é impossível, o que já é um bom argumento para não experimentar. Mas, tentado, dá tragédia."
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OPINIÃO
Os reparadores da
História
Sarar cicatrizes
da História é uma actividade que conduzirá certamente ao desastre. Tal
empreendimento é impossível, o que já é um bom argumento para não experimentar.
ANTÓNIO BARRETO
2 de Fevereiro de
2020, 7:54
É fácil imaginar.
A meio do ano, aproveitando o bom tempo, milhares de autocarros, camiões,
carrinhas de segurança, comboios de mercadorias, aviões de carga, navios porta
contentores e outros meios de transporte fazem-se à estrada, ao ar e ao mar.
Uns atravessam a Europa, de Norte a Sul, de Leste a Oeste e vice-versa. Outros
cruzam o Mediterrâneo e por ali ficam, entre o Egipto e Marrocos. Outros ainda
preparam-se para atravessar o Sara e dirigem-se para as dezenas de países
africanos a Sul do deserto. Os contentores e os aviões cruzam os mares
Atlântico, Índico e Pacífico, em direcção a todos os continentes, onde os
esperam milhares de camiões e de comboios, a fim de rumar para as planícies
americanas, os vales asiáticos e as florestas de todos os sítios. Estão milhões
de pessoas empenhadas na tarefa, incluindo motoristas, carregadores, polícias,
forças armadas, arqueólogos, pintores, pedreiros, químicos, físicos, joalheiros
e burocratas. Ao chegarem aos seus destinos, descarregam os bens que
transportavam: edifícios, muralhas, obeliscos, pinturas, frescos,
baixos-relevos, esculturas, múmias, jóias, objectos de ouro, de marfim e de
lápis-lazúli. E muito, muito mais. Depois de tudo descarregado e devidamente
verificado, os camiões, contentores, comboios e aviões são carregados com
outras tantas dezenas de milhões de objectos, da mesma natureza ou diferentes,
que serão entregues nos países onde tudo começou. É a grande tarefa da
devolução de património e da restituição de obras de arte, com a qual se refaz
justiça entre países iguais e irmãos, com o mundo a regressar a uma idade da
inocência e da pureza de sentimentos.
É fácil imaginar.
Fácil, mas impossível de realizar. Impossível, estúpido e errado. O que não
impede que tanta gente, desde o presidente francês aos esquerdistas de todos os
bordos, passando por ecologistas, bondosos sacerdotes e outros serafins, esteja
actualmente tão empenhada em fazer leis para que tal se faça. Ainda não há
resposta a nenhuma das perguntas essenciais (Quem? O quê? A quem? Onde?), mas as
adesões a tais planos são mais do que muitas. Não apenas o que deve e pode ser
feito, isto é, peças e objectos bem específicos, após reivindicação por
titulares identificados, para indivíduos, países e instituições concretos e
reais, com motivos de reclamação. Não. O movimento é geral e universal. Também
em Portugal, pela mão de alguns esquerdistas, se prepara uma discussão
parlamentar. Espera-se que o assunto se esgote rapidamente.
O problema da
impossibilidade é real. Não há gente, governos, académicos, polícias,
militares, cientistas, artistas e comerciantes em número suficiente e que
estejam de acordo. Não há povos que aceitem facilmente o princípio de refazer a
História e de devolver o património que, entretanto, é seu. Não há condições
práticas para levar a cabo tão colossal trabalho. Já houve exemplos passados de
transportes de obras de arte e de património. De Madrid para Genebra, durante a
Guerra Civil de Espanha, para salvar os tesouros do Prado. Durante a Segunda
Guerra, em França, na Inglaterra, na Alemanha e na Polónia, para proteger
museus inteiros. Na Alemanha e na Polónia, para roubar museus locais e famílias
judias. Nazis e soviéticos levaram a cabo algumas expedições de pilhagem. No
passado, os imperadores russos, prussianos e franceses, a começar por Napoleão,
organizaram transportes desse género. Tal como descobridores espanhóis e
portugueses. Foi possível transportar. Mas tudo isso é quase nada comparado com
o que hoje deveria ser devolvido se seguíssemos os critérios destes reparadores
de história.
Mais difíceis de
resolver são as questões de fundo. Devolver o quê? Um quadro pintado em França
por um pintor italiano e actualmente num museu alemão é de quem? Um artefacto
egípcio, descoberto por uma expedição alemã dirigida por um arqueólogo francês
e actualmente num museu inglês é de quem? Em geral, devolve-se a quem? Aos
povos? Ao governo do dia, mesmo se for um governo de ditadores, predadores e
cleptómanos? Aos novos burgueses desses países? Com que fim? Sob risco de serem
vendidos mais uma vez? Destruídos?
Há evidentemente
circunstâncias em que talvez seja um dever moral. Por exemplo, se for demonstrado
que se trata de obra esbulhada. Se houver prova de pertença ou título de
propriedade. Se soubermos quem roubou, a quem e quando. Se, na altura da
apropriação, havia leis nacionais e internacionais que impediam o tráfico. Se
há a certeza de que não foram bens legitimamente comprados. Se quem vendeu o
fez livremente e não diante de ameaças. Se não houve contrabando. Se há antigos
titulares que reivindicam os seus pertences.
Há, por outro
lado, na ausência de provas de propriedade, justificações fundamentais que
aconselhariam a um exame da questão. Por exemplo, mesmo se comprados, faria
todo o sentido que os frisos do Parténon, o Grande Altar de Pérgamo ou a Porta
de Ishtar fossem devolvidos aos seus países de origem e recolocados nos locais
devidos. Há certamente muitos mais casos de bens patrimoniais que fazem parte
de um local ou de um edifício e que poderiam ser objecto de devolução. Mas, se
não houver acordo, também daí não vem mal ao mundo. Há sempre a hipótese de
fazer excelentes réplicas. O que tem a vantagem de impedir que a história volte
a pregar partidas.
Ressuscitar
nacionalismos é ridículo e perigoso. Veja-se o que aconteceria na Europa, com
tudo o que os franceses, os castelhanos, os alemães e os ingleses pilharam uns
aos outros e a todos os restantes durante séculos! Ou como os europeus
rapinaram África, Américas e Ásia.
Mais grave e
sério ainda é a teoria dos defensores da restituição. De grande parte deles,
pelo menos. Há quem queira a devolução no quadro mais amplo de um pedido de
perdão pelo colonialismo e de desculpa pelas conquistas, de penitência pela
escravatura e de arrependimento pelo domínio político. Para devolver, reclamam,
é necessário rever a história do país, repensar a colonização e considerar que
esta foi um erro! E também será necessário mostrar verdadeira contrição pelas
descobertas e garantir que não haverá mais racismo!
É um verdadeiro
delírio adolescente que criou raízes nas mentes de tão ilustres europeus de
pele branca e alma colorida. Sarar cicatrizes da História é uma actividade que
conduzirá certamente ao desastre. Tal empreendimento é impossível, o que já é
um bom argumento para não experimentar. Mas, tentado, dá tragédia.
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