segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Arrendar casa em Lisboa é mais difícil do que em Barcelona e Berlim / Berlim e Barcelona, dois exemplos de intervenção musculada


HABITAÇÃO
Arrendar casa em Lisboa é mais difícil do que em Barcelona e Berlim

Análise, que fez cruzamento entre rendas e rendimentos de um agregado a residir num T2 em cada uma das três cidades, mostra que em todas elas a taxa de esforço dos 30% é ultrapassada. Mas em Lisboa ela quase duplica e chega aos 58%.

Luísa Pinto 10 de Fevereiro de 2020, 6:08

A escalada dos preços de habitação tem vindo a dificultar o acesso ao arrendamento nos centros da cidade um pouco por toda a Europa. Tal como em Lisboa e no Porto, o assunto tem enchido páginas de jornais e motivado diversos protestos da população em várias cidades europeias, com o objectivo de convencer os poderes políticos e económicos a tomar medidas para que as rendas habitacionais voltem a ser acessíveis à classe média. E numa altura em que se multiplicam os anúncios feitos por governos locais e nacionais sobre as iniciativas que se vão fazendo para travar essa escalada dos preços – a última foi a cidade de Praga, que proibiu os alojamentos locais na cidade –, o PÚBLICO comparou os problemas de acesso à habitação em três grandes cidades que ilustram a situação a nível europeu: Lisboa, Berlim e Barcelona. E as conclusões dão conta de que é mais difícil arrendar casa em Lisboa do que na cidade espanhola e na capital alemã.

A análise foi desenvolvida pelo grupo de investigação Morfologia e Dinâmicas do Território do Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP) e mostra como a realidade na cidade de Lisboa é muito mais grave do que aquela que é encontrada em Barcelona e em Berlim, cidades que, neste contexto, também já se tornaram referência em termos de resposta ao nível de políticas públicas de habitação.

O estudo assenta no cruzamento entre rendas e rendimentos de um agregado simulado integrado por um casal com um menor dependente, que reside num T2 de 95 metros quadrados (m2), em cada uma das três cidades.

Com base nos dados disponíveis, a equipa de investigadores simulou o valor que este tipo de apartamento teria em cada uma das cidades com a maior desagregação de preços disponível (71 códigos postais em Berlim; 73 bairros em Barcelona, e 24 freguesias de Lisboa).

O resultado é um mapa do edificado de cada uma das cidades onde se representa, a tons quentes, as localizações onde o agregado destina mais do que 30% dos seus rendimentos para pagar a renda e, a tons frios, os lugares onde a taxa de esforço não ultrapassa esse valor limite. Enquanto que em Berlim e em Barcelona é possível ainda encontrar algumas bolsas a tons frios, em Lisboa a totalidade da área está pintada de cores quentes.

Há várias razões que podem ajudar a justificar estas diferenças – ainda antes de se entrar nas respostas públicas que o poder político está a levar a cabo em cada uma das cidades (ver texto relacionado), e tendo presente o domínio de habitação própria, estimulado pelo acesso relativamente facilitado a crédito.

Os rendimentos medianos de um agregado português comparam muito mal com os rendimentos de um agregado catalão ou berlinense: 1563 euros em Lisboa, 2614 euros em Barcelona, 3727 euros em Berlim.


Se a esta equação juntarmos o valor mediano que é pedido pela renda mensal de um T2 de 95 metros quadrados, Lisboa sai ainda pior da fotografia: a renda mediana em Lisboa é de 916 euros por mês; em Barcelona é de 1170 euros e em Berlim é de 1491 euros (note-se que o apartamento em Berlim inclui despesas em electricidade e água).

Cruzar estes dois vectores, rendas e rendimento, mostra que nas três cidades a taxa de esforço de referência de 30% foi ultrapassada. Em Berlim é de 40% e em Barcelona é de 45%. Mas, no caso de Lisboa, esse valor limite é praticamente duplicado e chega aos 58%.

Os dados relativos ao “rendimento mediano equivalente por tipo de agregado” usados nesta análise foram retirados das Estatísticas Europeias sobre Rendimentos e Condições de Vida relativos a 2018, e permitem comparar a situação do agregado proposto em cada uma das cidades analisadas.

A equipa da FAUP cruzou ainda os valores auferidos nas três cidades com outras fontes disponíveis a nível nacional (mediana do rendimento bruto deduzido do IRS liquidado por sujeito passivo em Lisboa; dados do INE-AEAT para o caso de Barcelona; estudo do Gabinete de Estatística de Berlim-Brandemburgo para o caso de Berlim).

No cálculo das rendas foram utilizados dois tipos de fontes: em Lisboa e Barcelona foram utilizados dados públicos, disponibilizados pelo INE e pelo Observatori Metropolità de l’Habitatge de Barcelona. Para Lisboa usaram-se as medianas das rendas dos novos contratos de arrendamento para o segundo semestre de 2018, obtendo o valor final a partir dos coeficientes designados pelo Programa de Arrendamento Acessível (PAA).

No caso de Berlim, os dados foram obtidos de um estudo da Berlin HYP & CBRE, uma consultora privada mas que, consideram os investigadores, “por estar construído sobre anúncios privados, pode estar, como em Barcelona, a apresentar valores superiores aos reais”.

Com o cruzamento de toda esta informação percebe-se uma grande disparidade entre as três cidades. “E que prova que num contexto onde os preços são locais e o mercado é global, podem existir actores automaticamente excluídos da dita concorrência”, escreve Aitor Vareo Oro, um dos membros da equipa.

Os investigadores da FAUP identificaram vários tipos de desigualdades nestas análises, a começar pelas desigualdade entre os próprios cidadãos: “O mais grave é o caso português, já que nas outras duas cidades é mais comum que mais trabalhadores se afastem, e por uma maior margem, do ordenado mínimo”, explica Vareo Oro.

Mas também desigualdades entre agentes no mercado “que se verifica até no caso de Berlim, também alvo de investimentos de países com maior poder de compra e, como as outras duas cidades, da acção de agentes poderosos como grandes fundos imobiliários”.

“Convém referir que a desigualdade não se cinge ao poder de compra, mas, também, à possibilidade de aceder aos financiamentos, de contornar a legislação ou até de influir na sua criação, graças a um capital técnico que o cidadão comum não tem e o poder público não lhes fornece”, argumenta o investigador.



HABITAÇÃO
Berlim e Barcelona, dois exemplos de intervenção musculada

O poder reivindicativo das associações de inquilinos de Barcelona e de Berlim e a autonomia administrativa que têm os governos das duas cidades ajuda a enquadrar a tomada de medidas mais assertivas. Esta segunda debata-se no Porto o caso português

Luísa Pinto 10 de Fevereiro de 2020, 6:10

As dificuldades no acesso à habitação estão a agudizar-se em varias cidades da Europa. O problema tem origens semelhantes, e para o mesmo diagnóstico de “excesso” de fogos colocados no mercado turístico, tomaram-se medidas semelhantes, como a limitação do alojamento local.

Essa é uma medida que foi tomada tanto em Lisboa, como em Barcelona ou em Berlim. Mas, no caso de Berlim, na Alemanha, e de Barcelona, em Espanha, têm vindo a ser tomadas outras medidas com um maior grau de intervenção dos poderes públicos - que estão apoiados, também, numa sociedade civil bem mais interventiva e mobilizada.

Em Barcelona, por exemplo, há uma nova vaga de promoção de habitação pública, a nível nacional, regional e municipal, assim como a obrigatoriedade de os novos empreendimento imobiliários que surjam na cidade alocarem uma percentagem de fogos para a habitação com renda condicionada.

Avançaram também parcerias entre entidades públicas e privadas, que permitem criar bolsas de habitação de proprietários privados que possam dar resposta às necessidades. Tudo isto ao mesmo tempo e tanto o Estado espanhol como o governo autonómico da Catalunha contribuiram com subsídios ao arrendamento e à reabilitação de edifícios.

O governo estadual de Berlim será, porém, aquele que está a avançar com medidas mais assertivas. O facto de 85% dos residentes na cidade a ocuparem em regime de arrendamento poderá explicar as medidas anunciadas. E o poder reivindicativo da Associação de Inquilinos de Berlim (a Berliner Mieterverein) também.

Os movimentos sociais de Berlim têm, por exemplo, dinamizado uma campanha para obrigar a administração local a municipalizar fracções de habitação de empresas que possuam um número superior a três mil unidades. A nível institucional, e sendo Berlim uma cidade-Estado, tem tido poder suficiente para avançar com acções próprias, como as que limitam os preços de arrendamento e estipulam regras severas à venda e construção nova.

Não é a primeira vez que a cidade de Berlim tenta travar a escalada do preço da habitação fixando tectos máximos às rendas - houve um pacote legislativo nesse sentido que avançou já em 2015. Mas é com as novas regras que entraram em vigor em Janeiro deste ano que, em resposta a algumas questões colocadas pelo PÚBLICO, o director-geral da Associação de Inquilinos de Berlim, Reiner Wild, admitiu que são esperados os efeitos desejados.

O Mietendeckel, o novo regime de congelamento de rendas, que está agora em vigor assenta numa tabela administrativa em que o governo da cidade definiu o preço por metro quadrado que pode ter cada edifício. A tabela tem em atenção a localização do edifício, assim como características do imóvel, nomeadamente o ano de construção e as valências como aquecimento central e casa de banho.

Essa tabela pode começar nos 6,45 euros de renda por metro quadrado num edifício centenário, que tenha aquecimento central e casa de banho, e passar para 9,80 euros de renda por metro quadrado a cobrar nos edifícios construídos entre 2003 e 2013, com as mesmas características de aquecimento central e casa de banho.

O novo regime, em vigor a partir deste ano, impede que os senhorios possam aumentar as rendas nos próximos cinco anos - ou pelo menos nos primeiros dois, e apenas no caso dos senhorios que ainda não estejam a praticar a tabela máxima definida pelo Governo. No caso de haver um novo contrato, os senhorios terão de cobrar a mesma renda que lhes pagava o inquilino anterior. E no caso de pretenderem fazer obras de requalificação do imóvel, e por causa delas aumentar a renda a cobrar aos inquilinos, pode muito bem ser a administração a custear as obras de forma a que o esforço do investimento não recaia nem ao inquilino nem ao senhorio.

Todos estes exemplos vão estar em discussão esta segunda-feira, na segunda conversa do ciclo A Cidade Pelas Pessoas, organizado pelo colectivo Habitar Porto, em colaboração com a Fundação Friedrich Ebert Stiftung. Com o tema “A cidade legislada pelas pessoas”, o painel contará com a intervenção de representantes da associação dos inquilinos de Barcelona, com técnicos municipais que dinamizaram a estratégia local de habitação de Évora, e com Helena Roseta, impulsionadora da Lei de Bases da Habitação em Portugal.

“A ideia é debater as ferramentas que em Portugal podem ser usadas para criar habitação a custo controlado e cidades que se pareçam a nós. Mais do que replicar receitas, interessa perceber os pontos de tangência que permitem avançar com acções nacionais ou transnacionais, já que o uso de instituições europeias para promover alterações legislativas também deve ser usado por quem quer promover a função social de habitação”, explica Aitor Varea Oro, do colectivo Habitar Porto.

tp.ocilbup@otnip.asiul

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