Vinte anos depois da demolição do Casal Ventoso, moradores
realojados não têm vontade de celebrar
Sofia Cristino
Texto
4 Outubro, 2018
Mais de cem estudantes universitários pintaram muros
exteriores e espaços comuns dos lotes do Bairro do Loureiro, na tarde desta
quarta-feira (3 de Outubro), numa iniciativa que assinalava os vinte anos do
realojamento dos habitantes do antigo Casal Ventoso. Apesar da acção, promovida
pela instituição de solidariedade social Projecto Alkantara, convidar à
celebração, só dois moradores participaram na pintura das paredes. Os
habitantes dizem sentir-se esquecidos e não estar a ser dada prioridade aos
principais problemas do bairro social. Há elevadores que não funcionam há três
anos, as caixas de correio estão partidas, as ruas estão muito sujas e a
recolha do lixo nem sempre é feita. O responsável pelo programa Bairros e Zonas
de Intervenção Prioritária de Lisboa BIP-ZIP
acredita que a falta de adesão à iniciativa se deve à falta de uma
relação de confiança entre moradores e pessoas externas ao bairro, mas acredita
que os resultados vão aparecer.
“Estamos aqui numa
cova, ninguém nos liga e, claro, as pessoas não têm vontade de pintar. Estou a
participar porque estou desempregado”, diz cabisbaixo Mário Ferreira, 50 anos,
morador no Bairro do Loureiro, antigo Casal Ventoso. No início da tarde desta
quarta-feira (3 de Outubro), Mário era o único a participar numa acção
solidária promovida pelo projecto “Casal Ventoso Sempre”, da instituição de
solidariedade social Projecto Alkantara, no âmbito do programa Bairros e Zonas
de Intervenção Prioritária de Lisboa (BIP/ZIP) 2018/2019, da Câmara Municipal
de Lisboa. Na iniciativa, 170 estudantes universitários limparam e pintaram
muros exteriores e espaços comuns dos lotes do Bairro do Loureiro, sob o olhar
desinteressado de alguns habitantes. A meio da tarde, surgia outro morador,
antigo pintor na construção civil, mas não apareceram mais. “Há dois anos,
pintei quase tudo sozinho. Acho que toda a gente devia pintar um bocadinho, nem
que fosse só uma pincelada, ninguém tem gosto pelo bairro”, diz Franclin
Assunção, 52 anos, que esteve presente na primeira acção de limpeza e pintura
dos muros, em Novembro de 2017. “Perdeu-se o espírito de união que tínhamos,
cada um vive no seu mundo”, acrescenta Mário. Comentário que se percebe ao
observar a indiferença dos moradores ao que se passa à volta.
Ao longo da tarde, de vassoura e pincéis em punho, alunos da
Associação de Estudantes do Instituto Superior de Agronomia, da Escola Superior
de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa e da Federação Académica de Lisboa deram
uma nova cor ao bairro, onde o tráfico e o consumo de drogas ainda são uma
realidade presente no dia-a-dia dos moradores. A acção de limpeza assinala os
vinte anos do realojamento dos habitantes do antigo Casal Ventoso e contou com
a colaboração da empresa municipal Gebalis, que forneceu os materiais de
pintura e as tintas, da Junta de Freguesia de Campo de Ourique e de parceiros
do projecto “Casal Ventoso Sempre”, como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
e outras associações locais. Apesar da iniciativa convidar à celebração, duas
décadas volvidas sobre o realojamento, os habitantes dizem sentir-se esquecidos
pelos órgãos de poder local e optaram por não participar na acção, como forma
de protesto.
“Isto é um muro
pintado apenas, não é nada. As caixas de correio estão partidas, os elevadores
não funcionam. Às vezes, ficamos três semanas sem água, porque rebenta um cano
e ninguém vem compor as canalizações. Não fizeram nada do que foi prometido,
estamos pior do que estávamos lá em cima, no Casal Ventoso”, lamenta Cíntia
Fernandes, 23 anos. É difícil perceber todas as queixas da moradora porque é
interrompida por outros habitantes, também eles descontentes. “Isto não é o mar
de rosas que andam a pintar. A mudança foi para pior, a recolha do lixo não é
feita durante semanas, juntamo-nos para limpar as ruas, nunca são limpas. Não
pertencemos a Campo de Ourique, somos excluídos”, queixa-se Magda Cruz, 38
anos. Tânia Baptista acompanha as queixas das vizinhas, acenando com a cabeça.
E faz mais reparos. “Fecharam a piscina municipal e a escola está muito
degradada. Quando arranjam os elevadores, substituem as peças por outras mais
baratas e estragam-se rapidamente. Em vez de começarem pelo que é prioritário,
pintam fachadas. Qual é a nossa vontade em participar?”, questiona.
Os moradores do antigo Casal Ventoso queixam-se ainda da
falta de policiamento e da insegurança provocada pelo aparecimento de grupos
ligados ao tráfico e consumo de drogas. “Ando sempre a limpar as ruas, mas vêm
logo para aqui com seringas. À noite, ainda há muitos desacatos. É muito
importante virem limpar, mas não é só hoje”, desabafa Irene Maria, 68 anos.
Delmira Esteves, 82 anos, está há três anos sem elevador e já perdeu a
esperança. “Só nos mudaram de lugar e para pior. No antigo Casal Ventoso,
éramos mais unidos, estas construções também não permitem estarmos juntos, os
prédios estão todos espalhados. Estamos completamente esquecidos”, desabafa.
Cíntia Fernandes acusa ainda as entidades promotoras deste tipo de iniciativas
de deixarem muitos projectos pelo caminho.
“Queríamos fazer um espaço de convívio e uma sala de estudo, mas nunca
disponibilizaram a verba necessária”, critica.
A ideia da acção
promovida pelo Alkantara é “aumentar o sentido de pertença das comunidades do
local onde se vive” e recuperar o espírito de união perdido. “Alguns destes
territórios estão pensados como guetos e é importante realizar estas
iniciativas para que os territórios se abram ao resto da cidade. É fundamental
as universidades virem aqui, para sentirem que vem outro tipo de gente ao
bairro, com outras ideias”, diz José Ferreira, responsável pelo programa
Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária de Lisboa (BIP/ZIP) para 2018/2019,
da Câmara Municipal de Lisboa (CML). Ao início da tarde, alguns moradores
espreitavam timidamente pelas janelas e outros passavam pelos estudantes,
indiferentes ao que ali acontecia.
Ao final da tarde,
foram aparecendo mais, mas não mostravam vontade em participar na iniciativa.
“O ideal seria termos equipas mistas de moradores e estudantes, mas para lá
caminhamos. Não é apenas com duas acções que o conseguimos fazer, tem de haver
uma relação de confiança entre os moradores e os alunos”, explica José
Ferreira. E há mais motivos para a fraca adesão à iniciativa que pretendia
juntar moradores e estudantes. “Durante muitos anos, as pessoas achavam que a
Câmara tinha o dever de limpar e acreditamos que com o BIP/ZIP esta ideia está
a mudar, porque são eles a sugerir ideias e a executá-las”, adianta ainda.
Filipe Santos, do
Projecto Alkantara, acredita que tem sido feito um bom trabalho no Bairro do
Loureiro, dando como exemplo a pintura de nove lotes de prédios em 14, mas
reconhece que ainda há muito por fazer. Diminuir o desemprego de longa duração
e combater o abandono escolar são duas das prioridades do projecto “Casal
Ventoso Sempre”, – que conta com um orçamento de 50 mil euros – estando prevista a criação de uma Escola
Popular Aberta (EPA) a todos (crianças, jovens e idosos), em conjunto com o
projecto Fazer a Ponte – Programa Escolhas.
“É fundamental mudar
a cara ao bairro e estamos disponíveis para avançar com as nossas ideias, se
nos deixarem. Ainda há muitas entidades a não quererem investir neste tipo de
projectos por preconceito. Estamos a fazer aquilo que a Câmara de Lisboa não
tem capacidade para fazer, que é estar no terreno, cuidar da higiene dos
idosos, ouvir as pessoas”, diz Filipe Santos. O responsável pelo Projecto
Alkantara critica ainda a falta de apoio aos ex-moradores do Casal Ventoso.
“Não houve um acompanhamento em áreas como a psicologia e o serviço social,
faltou uma equipa multidisciplinar estruturada. Não há mudanças num ano”,
afirma. Ao longo do ano, estão previstas ainda diversas iniciativas ligadas à
arte urbana, entre as quais workshops dos artistas Vhils e Bordalo II, com
crianças.
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