OPINIÃO
1,5ºC: O mundo vs. O capitalismo
Será mais fácil imaginar o fim do Mundo ou o fim do actual
sistema económico?
JOÃO CAMARGO
8 de Outubro de 2018, 6:15
A meta de 1,5ºC de aumento de temperatura até ao final do
século é uma meta difícil, diz-nos o mais recente relatório do painel que reúne
cientistas e governos de todo o mundo, o Painel Intergovernamental para as
Alterações Climáticas (IPCC). Se esta não for atingida, avançamos para o
descalabro dos 2ºC. Este relatório, mais contundente do que é costume, diz-nos
uma parte importante do que é preciso fazer, apresentando desafios aos quais o
sistema capitalista terá enormes dificuldades de responder. Será mais fácil
imaginar o fim do Mundo ou o fim do actual sistema económico?
A divulgação do mais recente relatório do IPCC, aprovado na
Coreia do Sul, confirma aquilo que vinha sendo registado pelos termómetros
globais e pelas medições atmosféricas por todo o mundo: o aumento da
temperatura continua inabalado, acompanhando o aumento também inabalado de
emissões de gases com efeito de estufa. Isto depois do Protocolo de Quioto, do
Acordo de Paris, depois do consenso científico à volta da existência das
alterações climáticas e da origem humana das mesmas.
Se demorámos quase 200 anos a atingir um aumento de
temperatura de 1ºC em relação à era pré-industrial, o relatório (num cálculo
cauteloso) indica-nos que na década de 2040 chegaremos ao aumento dos 0,5ºC
seguintes (com um aumento de 0,2ºC por década). Os trajectos de emissões que os
países entregaram para o Acordo de Paris (INDC) farão com que a capacidade de
travar o aumento de temperatura nos 1,5ºC se esgote já em 2030 (em vez de 2100,
como dizia o preâmbulo do acordo). Essas emissões chegariam a um nível de 52-58
gigatoneladas de CO2 equivalente em 2030.
Para conseguir atingir o objectivo de aumento de 1,5ºC em
2100, o relatório diz que é preciso cortar radicalmente as emissões, a única
maneira credível de travar as alterações climáticas, indicando a necessidade de
um corte de 45% das emissões globais de dióxido de carbono até 2030 e de
atingir a neutralidade carbónica em 2050. Os governos não estão a fazer nada
sequer remotamente próximo do necessário (as emissões globais continuaram a
aumentar depois de Paris). Para amenizar de algum modo estes cortes, o IPCC
introduz alguns passes de fé e mágica: em todos os cenários, o IPCC apresenta
cortes de emissões associados a tecnologias que não funcionam, como a captura e
armazenamento de carbono, e truques de contabilidade, como a produção massiva
de energia a partir de biomassa, principalmente florestal (BECCS). A influência
dos Estados Unidos e da Arábia Saudita para evitar acções climáticas concretas
faz-se sentir, pressionando para aligeirar a radicalidade do que é necessário
fazer e reduzir o alarme do que ocorrerá se não for feito muito mais do que
aquilo que foram até agora os compromissos dos governos à escala mundial (mesmo
depois de Trump ter anunciado a saída dos EUA do Acordo de Paris).
Para se conseguir alcançar estes cortes, será necessária uma
mobilização de recursos financeiros e pessoais da magnitude daqueles que foram
usados na 2.ª Guerra Mundial, criando dezenas de milhões de empregos
(seguramente muitos mais do que aqueles destruídos). Será necessário mobilizar
todos os recursos possíveis para um corte radical de emissões, ainda superior
àquele que vem no relatório, porque a captura e armazenamento de carbono não
funciona. Isso significa mobilizar capital e lucros não para a reprodução de
capital e lucros mas para salvar a civilização humana. Negar a própria natureza
do capitalismo.
Por outro lado, nas últimas semanas a OPEP (Organização dos
Países Exportadores de Petróleo) diz que as emissões vão continuar a aumentar
drasticamente nas próximas décadas (2,2% ao ano até 2040) para responder à
procura das companhias aéreas e dos carros, que se prevê que venham a duplicar
até 2040 (dos actuais 1,1 mil milhões até 2,4 mil milhões). Em Julho, a
administração Trump mandou desmantelar os regulamentos para emissões dos
veículos, usando como argumento para tal que o aumento da temperatura até 2100
será de 4ºC, pelo que por isso não vale a pena prejudicar a competitividade da
indústria automóvel americana. Estes dizem-nos que nos sentemos na pira
enquanto o mundo arde. Se aceitarmos as projecções de Trumps e quejandos, não
nos resta mais do que o niilismo.
Conseguir travar o aumento de temperatura nos 1,5ºC não é
garantir que tudo fica bem. O clima já está muito diferente daquele que existia
há três décadas (e mais ainda na era pré-industrial). Com um aumento de 1,5ºC,
em algumas regiões do globo, significará um aumento de 4,5ºC. As ondas de calor
e as temperaturas extremas aumentarão. No Mediterrâneo, haverá um aumento
acentuado de stress hídrico. Haverá mais tempestades tropicais, ciclones,
furacões e tufões. A química dos oceanos sofrerá modificações fundamentais, com
alterações na biodiversidade e nas cadeias alimentares, com inequívocos
impactos nos serviços dos oceanos e disponibilidade de alimento. As falhas nas
colheitas agrícolas em muitos locais diferentes do planeta aumentarão. A
quantidade de refugiados ambientais e climáticos disparará.
No meio desta discussão, a impotência de governos como o
português – ou a sua simples recusa da realidade – alimenta o caminho do colapso.
A restante realidade política e social nacional não o confronta muito por isso.
Poucos assuntos andarão mais longe do discurso público e mediático em Portugal
do que a revolução necessária para salvar o clima e para manter a civilização
humana. Por isso passa sem questionamento um novo aeroporto para aumentar o
tráfego aéreo, a abertura das fronteiras marinhas para a exploração de
petróleo, gás e hidratos de metano, a expansão da rede de gás, a manutenção de
centrais a carvão em funcionamento e de concessões petrolíferas absurdas. Para
o Governo português, o assunto das alterações climáticas só serve para abrir
novas áreas de negócio.
Um programa popular e social para atingir os 1,5ºC, tão
radical quanto a Ciência nos aconselha hoje, é a melhor ferramenta política
para o futuro – imediato e longínquo. A compatibilização com o “business as
usual” do capitalismo, impossível.
A grande orgia global
ANTÓNIO SÉRGIO ROSA DE CARVALHO
9 de Agosto de 2018, 6:30
O dia 1 de Julho de 2018 foi uma data histórica para o
Planeta Terra. Neste dia contaram-se 200.000 aviões simultaneamente no ar. Um
número culminante, nunca antes alcançado. O dia 6 de Agosto de 2018 foi a data
da publicação de um artigo na revista científica PNAS, da autoria de, entre
outros, Johan Rockström, director executivo do Centro de Resiliência de
Estocolmo.
Este artigo avisa-nos de que a simples ideia propagada pelo
Acordo de Paris (2015) de que estabilizar a temperatura nos dois graus acima do
período pré-industrial será suficiente para estabilizar o efeito de estufa é
irrealista e insuficiente. A situação é mais complexa, pois trata-se de uma
teia de processos e de um encadeamento de fenómenos que mutuamente se
influenciam, e que a partir de um certo limite podem transformar-se num efeito
de dominó activo, acelerador e imparável, tornando o Planeta inabitável.
Eles são conhecidos: o degelo do Pólo Norte com o perigo do
descongelamento da permafrost e a libertação do metano. A alteração da corrente
do Golfo, que já está neste momento ao nível mais baixo dos últimos 1600 anos.
O degelo na Gronelândia, etc..
A data limite para descarbonizar situa-se entre 2040-2050. A
partir daí as reacções conjuntas e irreversíveis podem iniciar-se, num cenário
capaz de ultrapassar qualquer fantasia catastrófica.
Os líderes do mundo têm vindo a adiar as mega-urgentes
decisões e o relógio do Apocalipse continua o seu percurso determinante.
Neste momento em que escrevo, encontro-me em Amesterdão e a
temperatura é de 34 graus. Não chove desde Maio, e as conhecidas paisagens
verdes foram transformadas num amarelo expectável no Verão alentejano mas
simplesmente alarmantes na Holanda. O mesmo se verifica em toda a Europa do
Norte, tendo a Suécia sido confrontada com incêndios florestais.
Simultaneamente, as cidades europeias conheceram o conhecido
e sempre crescente fluxo imparável de turismo, sustentado pelo “low cost” que
permite e possibilita deslocações em massa, intuitivas, inconscientes e
predadoras, que já transformaram as cidades europeias, antigos locais representantes
de identidade cultural, em “sítios” a serem consumidos e devorados em banquetes
de hedonismo e orgias globalizadoras.
A redução de uma cidade a uma plataforma monofuncional
reduzindo e sacrificando tudo a uma só actividade, leia-se turismo, apresenta
sintomas destruidores para o ecossistema urbano, que estão na mesma linha,
embora em escalas diferentes, dos sintomas planetários.
Qual é a pegada e o preço ambiental deste modelo de
“desenvolvimento”? Qual é a pegada e o preço ambiental do “low cost flying”?
O país foi dominado pelo caso Robles e pela queda dos seus
pedestais das “santas” Catarina e Joana, o que levou a tsunamis de opinião e de
indignação. No entanto, com Robles & Companhia ou não, com aproveitamento
político ou não destes fenómenos, os verdadeiros problemas ligados à
especulação imobiliária, ao aumento apocalíptico do preço da habitação, à
catastrófica dependência e vassalagem do Alojamento Local “à rédea solta” e ao
flagelo dos despejos, mantêm-se na sua crescente omnipresença e omnipotência
erosiva e destruidora.
E a “festa” continua imparável, no seu carácter de “festa
titânica”, contribuindo na sua mobilidade incontrolada para mais C02. Em última
análise, em absoluto desespero, nem nos precisamos de preocupar.
Este modelo de viagens ilimitadas, e de mobilidade predadora
e consumidora da autenticidade cultural e da identidade local, é ambientalmente
completamente insustentável e incomportável e na sua inconsciência criminosa. O
momento de paragem desta grande orgia global aproxima-se inevitavelmente,
momento dramático para Portugal, que irá acordar do seu torpor e ser obrigado a
reconhecer a sua dependência e os limites da aposta exclusiva num modelo
auto-destruidor e alienante.
Historiador de Arquitectura
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