VÍTOR BELANCIANO
OPINIÃO
A violência de não haver dinheiro para pagar a renda
Cerca de dois milhões de portugueses são pobres. E mais
haverá em riscos de o serem. E no entanto a precariedade, os baixos salários, o
desemprego e a pobreza não parecem ser assuntos muito mobilizadores nos dias
que correm. Até quando?
19 de Outubro de 2018, 16:56
E depois existem ainda os outros, que intuímos muitos, não
abrangidos por essa estatística, mas em risco de tombarem nela a qualquer
momento. Há quem lhes chame “novos pobres”, pessoas ligadas a actividades onde
até há uns anos atrás não parecia haver riscos de precarização. Existia alguma
segurança. O abismo da pobreza parecia distante. Mas que um dia percebem que o
que ganham não chega para as despesas mais básicas. E nesse mês a renda fica
por pagar. E depois, tantas vezes, a espiral inicia-se.
Não consigo conceber outro problema tão grave na sociedade
portuguesa actual: a precariedade, os baixos salários, o desemprego, a pobreza.
Talvez por isso, na quarta-feira à noite, liguei a TV. Conectei-me com as redes
sociais. Queria auscultar reacções, reflexões ou indignações. Quase nada.
Parece ser um assunto pouco sensual. Inamovível e durável. Apesar disso o
presidente Marcelo Rebelo de Sousa falou. Disse que é necessário uma estratégia
autónoma de combate à pobreza. Ok. Mas fica-se com a sensação que aquilo que
afirma vai no sentido do apaziguamento. Do consolo. Da solução, mais uma,
assistencialista. Um lavar de consciências.
Nesse dia o país estava entretido a discutir se é ou não uma
violência obrigar uma criança a dar um beijo aos avós. Nestes tempos onde o
espaço público só parece reagir quando a brutalidade é invocada (seja ela
racial, de género, policial, individual ou sistémica), proponho que a violência
de não haver dinheiro – às vezes basta a incerteza – para pagar a renda no
final do mês seja também tida em conta. Nada contra que se discuta o beijo aos
avós, mas é preciso saber o que se está a debater realmente. No fim de contas
ambos os assuntos vão dar ao mesmo: poder.
Pelo menos se entendermos que pobre é o que perdeu todas as
formas de poder. É por isso que a pobreza é, antes de tudo, uma questão
política. E de alta prioridade porque ligado à satisfação das necessidades
básicas. Nesse sentido é tanto um problema de dignidade como de liberdade. E no
entanto recebemos este tipo de notícias e encolhemos os ombros. Há uma elite
que está a leste desta realidade e nem concebe que existam outras existências
para além da sua. Há quem esteja distante desses cenários e quando se fala de
pobreza ainda reproduz associações fáceis, como se ela fosse apenas sinónimo de sem-abrigo e
pessoas na miséria completa, sejam desempregados, com subsídio de desemprego
insuficiente, deficientes, doentes, crianças ou idosos com baixas pensões.
Já os que estão próximos desse enquadramento parecem
esconder-se atrás da cortina da vergonha social, não o dizendo para si próprios
quanto mais em diálogo. Muitas vezes são gente com emprego, mas a prazo ou com
ordenados miserabilistas, que apenas lhes permite comprar uma garrafa de
oxigénio para respirar. E quem está completamente imerso no problema
simplesmente já nem forças para reagir tem, à margem de qualquer lógica
colectiva. E francamente o que apetece é gritar e voltar a gritar que não pode
ser. Eu sei. Vêm-me logo com outras estatísticas. Que a coisa está mal, mas já
esteve pior. Ou que a economia está a crescer. Sabemos isso. E por isso mesmo é
que não nos devíamos conformar.
Porque a questão é que apesar de todos esses indicadores, a
pobreza, a desigualdade e a exclusão são uma realidade inelutável. Portanto a
conclusão é que é preciso ir muito mais além. Há recuperação económica e
financeira? Ainda bem. Mas não só ela parece ser hoje estruturalmente residual,
como não chega a toda a gente. A verdadeira questão é saber se esse crescimento
é transversal e está a produzir riqueza ou apenas mais alguns ricos? É que se a
redistribuição não acontece é apenas a desigualdade que cresce.
E por favor não me venham com agendas partidárias para
discussões de quem é a culpa. Este governo tem tentado implementar uma política
social. A questão é que não chega porque estamos perante uma realidade complexa
e supranacional que não se compadece com medidas pontuais. E menos pela
ideologia ligada ao assistencialismo ou sequer a padrões de emergência social.
Claro que vale a pena continuar a lutar pela protecção social ou por um
rendimento mínimo adequado que assegure alguma dignidade à vida dos cidadãos.
Mas é preciso ir às causas. Haverá sempre gente que terá opiniões simplistas
sobre o assunto mas convenhamos que ele é intrincado. Logo, lá está, nada sexy.
Ir às causas implicava mexer nas lógicas reprodutoras que
provocam desequilíbrios e desigualdades gritantes e, convenhamos, existe gente
que não está interessada nisso. Mas sem isso nada de substancial mudará.
Continuaremos a agir no sentido de reduzir o sofrimento dos mais aflitos, mas o
essencial seria libertá-los. De contrário as consequências estão cada vez mais
à vista: populismo, democracia ferida e hostilidades profundas. Uma gritaria
onde todos vociferam uns contra os outros, a propósito dos mais diversos
assuntos, sem que se chegue a produzir sentido algum.
tp.ocilbup@onaicnalebv
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