sábado, 20 de outubro de 2018

A violência de não haver dinheiro para pagar a renda



VÍTOR BELANCIANO
OPINIÃO
A violência de não haver dinheiro para pagar a renda

Cerca de dois milhões de portugueses são pobres. E mais haverá em riscos de o serem. E no entanto a precariedade, os baixos salários, o desemprego e a pobreza não parecem ser assuntos muito mobilizadores nos dias que correm. Até quando?

19 de Outubro de 2018, 16:56


 A pobreza não é uma estatística. É uma realidade. Ainda assim lá estava chapado em alguns jornais na última quarta-feira, dia internacional de erradicação da pobreza: dados recentes apontam para a existência de perto de dois milhões de portugueses que são pobres. Dois milhões. Muitos com emprego. Outros excluídos de qualquer disposição social.

E depois existem ainda os outros, que intuímos muitos, não abrangidos por essa estatística, mas em risco de tombarem nela a qualquer momento. Há quem lhes chame “novos pobres”, pessoas ligadas a actividades onde até há uns anos atrás não parecia haver riscos de precarização. Existia alguma segurança. O abismo da pobreza parecia distante. Mas que um dia percebem que o que ganham não chega para as despesas mais básicas. E nesse mês a renda fica por pagar. E depois, tantas vezes, a espiral inicia-se.

Não consigo conceber outro problema tão grave na sociedade portuguesa actual: a precariedade, os baixos salários, o desemprego, a pobreza. Talvez por isso, na quarta-feira à noite, liguei a TV. Conectei-me com as redes sociais. Queria auscultar reacções, reflexões ou indignações. Quase nada. Parece ser um assunto pouco sensual. Inamovível e durável. Apesar disso o presidente Marcelo Rebelo de Sousa falou. Disse que é necessário uma estratégia autónoma de combate à pobreza. Ok. Mas fica-se com a sensação que aquilo que afirma vai no sentido do apaziguamento. Do consolo. Da solução, mais uma, assistencialista. Um lavar de consciências.

Nesse dia o país estava entretido a discutir se é ou não uma violência obrigar uma criança a dar um beijo aos avós. Nestes tempos onde o espaço público só parece reagir quando a brutalidade é invocada (seja ela racial, de género, policial, individual ou sistémica), proponho que a violência de não haver dinheiro – às vezes basta a incerteza – para pagar a renda no final do mês seja também tida em conta. Nada contra que se discuta o beijo aos avós, mas é preciso saber o que se está a debater realmente. No fim de contas ambos os assuntos vão dar ao mesmo: poder.

Pelo menos se entendermos que pobre é o que perdeu todas as formas de poder. É por isso que a pobreza é, antes de tudo, uma questão política. E de alta prioridade porque ligado à satisfação das necessidades básicas. Nesse sentido é tanto um problema de dignidade como de liberdade. E no entanto recebemos este tipo de notícias e encolhemos os ombros. Há uma elite que está a leste desta realidade e nem concebe que existam outras existências para além da sua. Há quem esteja distante desses cenários e quando se fala de pobreza ainda reproduz associações fáceis, como se  ela fosse apenas sinónimo de sem-abrigo e pessoas na miséria completa, sejam desempregados, com subsídio de desemprego insuficiente, deficientes, doentes, crianças ou idosos com baixas pensões.

Já os que estão próximos desse enquadramento parecem esconder-se atrás da cortina da vergonha social, não o dizendo para si próprios quanto mais em diálogo. Muitas vezes são gente com emprego, mas a prazo ou com ordenados miserabilistas, que apenas lhes permite comprar uma garrafa de oxigénio para respirar. E quem está completamente imerso no problema simplesmente já nem forças para reagir tem, à margem de qualquer lógica colectiva. E francamente o que apetece é gritar e voltar a gritar que não pode ser. Eu sei. Vêm-me logo com outras estatísticas. Que a coisa está mal, mas já esteve pior. Ou que a economia está a crescer. Sabemos isso. E por isso mesmo é que não nos devíamos conformar.

Porque a questão é que apesar de todos esses indicadores, a pobreza, a desigualdade e a exclusão são uma realidade inelutável. Portanto a conclusão é que é preciso ir muito mais além. Há recuperação económica e financeira? Ainda bem. Mas não só ela parece ser hoje estruturalmente residual, como não chega a toda a gente. A verdadeira questão é saber se esse crescimento é transversal e está a produzir riqueza ou apenas mais alguns ricos? É que se a redistribuição não acontece é apenas a desigualdade que cresce.

E por favor não me venham com agendas partidárias para discussões de quem é a culpa. Este governo tem tentado implementar uma política social. A questão é que não chega porque estamos perante uma realidade complexa e supranacional que não se compadece com medidas pontuais. E menos pela ideologia ligada ao assistencialismo ou sequer a padrões de emergência social. Claro que vale a pena continuar a lutar pela protecção social ou por um rendimento mínimo adequado que assegure alguma dignidade à vida dos cidadãos. Mas é preciso ir às causas. Haverá sempre gente que terá opiniões simplistas sobre o assunto mas convenhamos que ele é intrincado. Logo, lá está, nada sexy.

Ir às causas implicava mexer nas lógicas reprodutoras que provocam desequilíbrios e desigualdades gritantes e, convenhamos, existe gente que não está interessada nisso. Mas sem isso nada de substancial mudará. Continuaremos a agir no sentido de reduzir o sofrimento dos mais aflitos, mas o essencial seria libertá-los. De contrário as consequências estão cada vez mais à vista: populismo, democracia ferida e hostilidades profundas. Uma gritaria onde todos vociferam uns contra os outros, a propósito dos mais diversos assuntos, sem que se chegue a produzir sentido algum.

tp.ocilbup@onaicnalebv

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