É possível manipular o sorteio de juízes? Sim, mas fica tudo
registado
Como funciona o sistema de distribui os processos pelos
juízes? Que critérios estão na base desse sorteio? A resposta a esta e outras
questões levantadas pelas declarações do magistrado Carlos Alexandre
Graça Henriques e Valentina Marcelino
17 Outubro 2018 — 19:58
O juiz Carlos Alexandre numa entrevista à RTP lança
suspeitas sobre a distribuição do processo "Operação Marquês",
deixando implícito que pode ter havido manipulação do sorteio que atribuiu a
instrução do caso ao juiz Ivo Rosa. O DN falou com um perito informático, sob
anonimato, que esteve envolvido na criação do sistema informático que atribui
os processos aos juízes. E que afirma ser possível manipular o Citius, embora
fique tudo registado através da pegada informática.
Dada a "gravidade" das declarações de Carlos
Alexandre, o Conselho Superior da Magistratura anunciou que vai abrir um
inquérito que, apurou o DN, visa disciplinarmente o juiz, ao mesmo tempo que
fará uma espécie de auditoria ao sistema informático, no sentido de apurar da
sua fiabilidade.
Carlos Alexandre, o juiz do Tribunal Central de Investigação
Criminal (Ticão), que decretou a prisão preventiva do ex-primeiro-ministro José
Sócrates, diz que sorteio de atribuição do processo não é 100 por cento
aleatório: "Há uma aleatoriedade que pode ser maior ou menor consoante o
número de processos de diferença que exista entre mais do que um juiz."
Como é feita a distribuição de processos?
A distribuição dos atos processuais realiza-se diariamente e
de forma automática através de um sistema informático. O Citius assegura que a
distribuição seja feita duas vezes por dia, às 9 e às 16 horas. Esta
distribuição informática não impede a que se proceda a uma classificação manual
prévia dos processos quando tal classificação não seja efetuada de forma
automática. No caso da Operação Marquês, em fase de instrução, o processo só
poderia ser atribuído a Carlos Alexandre ou Ivo Rosa, os dois juízes do
Tribunal Central de Instrução Criminal. O sorteio ditou que seja Ivo Rosa a decidir
que o processo que tem José Sócrates como principal arguido vai a julgamento.
O sistema escolhe o nome dos juízes?
O sistema diz que juiz irá ficar com cada processo e essa
escolha é aleatória, embora obedeça a determinados critérios. Ou seja, no caso
da Operação Marquês, a probabilidade de sair um ou outro juiz não era 50-50.
Quais são os critérios para o sorteio?
O número de processos que cada juiz tem é tecnicamente
designado como "peso" e a "espécie": "se se trata de
um processo crime ou cível, e se dentro do crime se se trata de roubo ou
homicídio. No caso do Ticão, conta também se é um processo em investigação ou
em instrução", explica ao DN um dos peritos que esteve na criação do
Citius.
Quem define os critérios?
O peso de cada um dos parâmetros do chamado "algoritmo
da distribuição" é definido pelos tribunais com o acordo dos juízes que os
compõem, adianta ao DN a mesma fonte.
É possível manipular o sorteio?
De acordo com a fonte do DN, em teoria, é possível alterar o
peso que cada critério e assim influenciar o resultado, mas também é possível
confirmar que essa alteração foi feita, através da pegada informática. No caso
particular do Ticão, uma vez que tem menos processos e apenas dois juízes
(Carlos Alexandre e Ivo Rosa), é simples verificar se houve alguma
interferência na definição dos parâmetros.
Há queixas sobre atribuição de processos?
Formalmente, o Conselho Superior de Magistratura nunca
recebeu queixas dos juízes. No entanto, em ocasiões informais, é um lamento
repetido pelos juízes tribunais da 1ª instância e da Relação que se queixam por
chagarem a ter durante vários meses seguidos mais processos que os restantes
colegas de secção. Portanto, Carlos Alexandre não apresentou, até ao momento,
queixa sobre a forma como foi distribuído o processo.
Quem está presente na atribuição de processos?
No Tribunal Central de Instrução Criminal, vulgo Ticão, o
sorteio é sempre supervisionado por um juiz, que ali está como garantia da
legalidade. Em alguns tribunais cíveis a distribuição é feita automaticamente,
pelo computador. A distribuição manual exige sempre a presença de um juiz.
Quem presidiu ao sorteio do processo "Operação
Marquês"?
O sorteio que atribuiu a instrução da Operação Marquês ao
juiz Ivo Rosa foi realizado a 28 de setembro. Apenas este magistrado esteve
presente. Carlos Alexandre, conhecido por nunca faltar ao trabalho, terá metido
folga para este dia. O resultado do sorteio foi ao encontro do pretendido pelos
arguidos José Sócrates e Armando Vara que queriam excluir o juiz Carlos
Alexandre desta fase do processo.
O que diz o Conselho Superior de Magistratura sobre
distribuição de processos?
O comunicado emitido esta quarta-feira depois de conhecidas
as declarações de Carlos Alexandre a levantar dúvidas sobre a aleatoriedade da
atribuição da "Operação Marquês" ao juiz Ivo Rosa, é claro: "De
acordo com todos os elementos técnicos disponíveis, a distribuição eletrónica
de processos é sempre aleatória, não equilibrando diariamente, nem em qualquer
outro período temporal suscetível de ser conhecido antecipadamente, os processos
distribuídos a cada juiz."
Quem gere e fiscaliza o sistema?
O Citius, o sistema informático do Ministério da Justiça, é
gerido pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça.
Carlos Alexandre desacredita-se, dá razão a quem suspeita do
seu empenho no caso e, o pior de tudo, desacredita a própria justiça.
18 de Outubro de 2018, 6:13
O juiz Carlos Alexandre levantou suspeitas numa entrevista à
RTP sobre o modo como a fase de instrução do processo Marquês foi entregue ao
seu único colega do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC).
Aparentemente, Carlos Alexandre suspeita que o algoritmo que determina o
sorteio dos processos judiciais foi ou pode ser manipulado (o que vem dar razão
à defesa de José Sócrates, que até tentou vigiar o sorteio) e que o seu colega
Ivo Rosa poderá ter um entendimento diferente do caso, quiçá mais favorável aos
arguidos da Operação Marquês.
O que Carlos Alexandre quer dizer é que a aplicação da
justiça em Portugal pode estar dependente de uma probabilidade. Ironicamente,
Carlos Alexandre e José Sócrates têm algo em comum: os dois não confiam no
sorteio dos juízes e na imparcialidade de alguns deles. A defesa do
ex-primeiro-ministro lançou precisamente as mesmas suspeitas sobre a
distribuição que ditou, em Setembro de 2014, que o caso fosse inicialmente
entregue a Carlos Alexandre, para não falar das dúvidas sobre o próprio:
“Manipulação dos procedimentos de distribuição”; “grave violação das regras
legais”; e ausência de garantia de imparcialidade do juiz. Só falta que, à
semelhança do que queriam os advogados de Sócrates, o juiz do TCIC se faça
acompanhar de um especialista em algoritmos no próximo sorteio.
O Conselho Superior da Magistratura não poderia ter feito
algo diferente daquilo que fez: abrir um inquérito na sequência da entrevista,
com possíveis repercussões disciplinares. A suspeita lançada sobre a atribuição
de processos ou sobre um colega revela tanto inveja ou ciúme como uma vontade
de zelo, por alguém que fez os comentários que já fez sobre alguns dos arguidos
e que parece evidenciar um interesse que vai para além do dever profissional.
Suspeitar que houve gestão dos processos antes do sorteio do
caso da Operação Marquês, de maneira que o mesmo fosse entregue a Ivo Rosa, e
que este possa arquivar o caso por outros motivos que não decorram de uma
decisão jurídica, é de uma gravidade extrema. A ser verdade, isso seria o
descalabro. Carlos Alexandre desacredita-se com estas declarações, dá razão a
quem suspeita do seu empenho no caso e, o pior de tudo, desacredita a própria
justiça. Como se a justiça dependesse de um algoritmo. De repente, até parece
que estamos a falar do sorteio de árbitros para jogos de futebol.
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