quinta-feira, 18 de outubro de 2018

É possível manipular o sorteio de juízes? Sim, mas fica tudo registado / Quem decide o caso Sócrates é o algoritmo


É possível manipular o sorteio de juízes? Sim, mas fica tudo registado

Como funciona o sistema de distribui os processos pelos juízes? Que critérios estão na base desse sorteio? A resposta a esta e outras questões levantadas pelas declarações do magistrado Carlos Alexandre

Graça Henriques e Valentina Marcelino
17 Outubro 2018 — 19:58

O juiz Carlos Alexandre numa entrevista à RTP lança suspeitas sobre a distribuição do processo "Operação Marquês", deixando implícito que pode ter havido manipulação do sorteio que atribuiu a instrução do caso ao juiz Ivo Rosa. O DN falou com um perito informático, sob anonimato, que esteve envolvido na criação do sistema informático que atribui os processos aos juízes. E que afirma ser possível manipular o Citius, embora fique tudo registado através da pegada informática.

Dada a "gravidade" das declarações de Carlos Alexandre, o Conselho Superior da Magistratura anunciou que vai abrir um inquérito que, apurou o DN, visa disciplinarmente o juiz, ao mesmo tempo que fará uma espécie de auditoria ao sistema informático, no sentido de apurar da sua fiabilidade.

Carlos Alexandre, o juiz do Tribunal Central de Investigação Criminal (Ticão), que decretou a prisão preventiva do ex-primeiro-ministro José Sócrates, diz que sorteio de atribuição do processo não é 100 por cento aleatório: "Há uma aleatoriedade que pode ser maior ou menor consoante o número de processos de diferença que exista entre mais do que um juiz."

Como é feita a distribuição de processos?
A distribuição dos atos processuais realiza-se diariamente e de forma automática através de um sistema informático. O Citius assegura que a distribuição seja feita duas vezes por dia, às 9 e às 16 horas. Esta distribuição informática não impede a que se proceda a uma classificação manual prévia dos processos quando tal classificação não seja efetuada de forma automática. No caso da Operação Marquês, em fase de instrução, o processo só poderia ser atribuído a Carlos Alexandre ou Ivo Rosa, os dois juízes do Tribunal Central de Instrução Criminal. O sorteio ditou que seja Ivo Rosa a decidir que o processo que tem José Sócrates como principal arguido vai a julgamento.

O sistema escolhe o nome dos juízes?
O sistema diz que juiz irá ficar com cada processo e essa escolha é aleatória, embora obedeça a determinados critérios. Ou seja, no caso da Operação Marquês, a probabilidade de sair um ou outro juiz não era 50-50.

Quais são os critérios para o sorteio?
O número de processos que cada juiz tem é tecnicamente designado como "peso" e a "espécie": "se se trata de um processo crime ou cível, e se dentro do crime se se trata de roubo ou homicídio. No caso do Ticão, conta também se é um processo em investigação ou em instrução", explica ao DN um dos peritos que esteve na criação do Citius.

Quem define os critérios?
O peso de cada um dos parâmetros do chamado "algoritmo da distribuição" é definido pelos tribunais com o acordo dos juízes que os compõem, adianta ao DN a mesma fonte.

É possível manipular o sorteio?
De acordo com a fonte do DN, em teoria, é possível alterar o peso que cada critério e assim influenciar o resultado, mas também é possível confirmar que essa alteração foi feita, através da pegada informática. No caso particular do Ticão, uma vez que tem menos processos e apenas dois juízes (Carlos Alexandre e Ivo Rosa), é simples verificar se houve alguma interferência na definição dos parâmetros.

Há queixas sobre atribuição de processos?
Formalmente, o Conselho Superior de Magistratura nunca recebeu queixas dos juízes. No entanto, em ocasiões informais, é um lamento repetido pelos juízes tribunais da 1ª instância e da Relação que se queixam por chagarem a ter durante vários meses seguidos mais processos que os restantes colegas de secção. Portanto, Carlos Alexandre não apresentou, até ao momento, queixa sobre a forma como foi distribuído o processo.

Quem está presente na atribuição de processos?
No Tribunal Central de Instrução Criminal, vulgo Ticão, o sorteio é sempre supervisionado por um juiz, que ali está como garantia da legalidade. Em alguns tribunais cíveis a distribuição é feita automaticamente, pelo computador. A distribuição manual exige sempre a presença de um juiz.

Quem presidiu ao sorteio do processo "Operação Marquês"?
O sorteio que atribuiu a instrução da Operação Marquês ao juiz Ivo Rosa foi realizado a 28 de setembro. Apenas este magistrado esteve presente. Carlos Alexandre, conhecido por nunca faltar ao trabalho, terá metido folga para este dia. O resultado do sorteio foi ao encontro do pretendido pelos arguidos José Sócrates e Armando Vara que queriam excluir o juiz Carlos Alexandre desta fase do processo.

O que diz o Conselho Superior de Magistratura sobre distribuição de processos?
O comunicado emitido esta quarta-feira depois de conhecidas as declarações de Carlos Alexandre a levantar dúvidas sobre a aleatoriedade da atribuição da "Operação Marquês" ao juiz Ivo Rosa, é claro: "De acordo com todos os elementos técnicos disponíveis, a distribuição eletrónica de processos é sempre aleatória, não equilibrando diariamente, nem em qualquer outro período temporal suscetível de ser conhecido antecipadamente, os processos distribuídos a cada juiz."

Quem gere e fiscaliza o sistema?
O Citius, o sistema informático do Ministério da Justiça, é gerido pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça.




 Quem decide o caso Sócrates é o algoritmo

Carlos Alexandre desacredita-se, dá razão a quem suspeita do seu empenho no caso e, o pior de tudo, desacredita a própria justiça.

18 de Outubro de 2018, 6:13

O juiz Carlos Alexandre levantou suspeitas numa entrevista à RTP sobre o modo como a fase de instrução do processo Marquês foi entregue ao seu único colega do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC). Aparentemente, Carlos Alexandre suspeita que o algoritmo que determina o sorteio dos processos judiciais foi ou pode ser manipulado (o que vem dar razão à defesa de José Sócrates, que até tentou vigiar o sorteio) e que o seu colega Ivo Rosa poderá ter um entendimento diferente do caso, quiçá mais favorável aos arguidos da Operação Marquês.

O que Carlos Alexandre quer dizer é que a aplicação da justiça em Portugal pode estar dependente de uma probabilidade. Ironicamente, Carlos Alexandre e José Sócrates têm algo em comum: os dois não confiam no sorteio dos juízes e na imparcialidade de alguns deles. A defesa do ex-primeiro-ministro lançou precisamente as mesmas suspeitas sobre a distribuição que ditou, em Setembro de 2014, que o caso fosse inicialmente entregue a Carlos Alexandre, para não falar das dúvidas sobre o próprio: “Manipulação dos procedimentos de distribuição”; “grave violação das regras legais”; e ausência de garantia de imparcialidade do juiz. Só falta que, à semelhança do que queriam os advogados de Sócrates, o juiz do TCIC se faça acompanhar de um especialista em algoritmos no próximo sorteio.

O Conselho Superior da Magistratura não poderia ter feito algo diferente daquilo que fez: abrir um inquérito na sequência da entrevista, com possíveis repercussões disciplinares. A suspeita lançada sobre a atribuição de processos ou sobre um colega revela tanto inveja ou ciúme como uma vontade de zelo, por alguém que fez os comentários que já fez sobre alguns dos arguidos e que parece evidenciar um interesse que vai para além do dever profissional.

Suspeitar que houve gestão dos processos antes do sorteio do caso da Operação Marquês, de maneira que o mesmo fosse entregue a Ivo Rosa, e que este possa arquivar o caso por outros motivos que não decorram de uma decisão jurídica, é de uma gravidade extrema. A ser verdade, isso seria o descalabro. Carlos Alexandre desacredita-se com estas declarações, dá razão a quem suspeita do seu empenho no caso e, o pior de tudo, desacredita a própria justiça. Como se a justiça dependesse de um algoritmo. De repente, até parece que estamos a falar do sorteio de árbitros para jogos de futebol.

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