sábado, 6 de outubro de 2018

Câmara de Lisboa sugere que “vistos gold” sejam dados só a quem invista em habitação com “renda acessível” / Deputado Carlos Peixoto acusado de “conflito de interesses gritante”




Câmara de Lisboa sugere que “vistos gold” sejam dados só a quem invista em habitação com “renda acessível”
Samuel Alemão
Texto
5 Outubro, 2018

Uma situação “grave” e de “clara emergência”, resultado de uma “tempestade perfeita” relacionada com fenómenos de mobilização internacional de capitais e da “especulação imobiliária”. Este é, em linhas gerais, o diagnóstico do estado habitação na cidade de Lisboa traçado pelos vereadores eleitos pelos Cidadãos por Lisboa, Paula Marques (Habitação) e João Paulo Saraiva (Finanças e Recursos Humanos), bem como por Helena Roseta, presidente da Assembleia Municipal de Lisboa (AML) e deputada na Assembleia da República. Por isso, defendem a tomada de medidas urgentes por parte da administração central, pois o que possa ser feito a nível local será sempre insuficiente. “Estamos cientes das dificuldades que as pessoas enfrentam para terem casa e também das responsabilidades das autarquias neste campo. Mas não é só com medidas a nível local que conseguiremos colmatar estas falhas”, disse Paula Marques, na tarde desta quinta-feira (4 de Outubro), durante o encontro com os jornalistas para fazer o balanço do primeiro ano deste mandato autárquico por parte desta força eleita nas listas do PS.

O pedido de mais acção neste campo por parte da administração central constituiu, aliás, a nota dominante da conferência de imprensa realizada pelos eleitos do Cidadãos por Lisboa, quase integralmente dedicada às grandes dificuldades da classe média em encontrar habitação. “A nível nacional está-se a trabalhar isto com pouca acutilância”, considerou o vereador João Paulo Saraiva, ao referir-se ao que considera ser o quadro de flagrante “especulação imobiliária” vivido no país, mas sentida com especial gravidade em Lisboa e no Porto. E deu uma sugestão para ajudar a corrigir o problema: “Temos de legislar para o todo nacional, mas sem deixar de pensar em algumas especificidades locais, como a de Lisboa. Porque não podemos, por exemplo, pensar em só atribuir Vistos Gold a quem queira investir em habitação de renda acessível?”. O vereador das Finanças da capital, que defendeu ainda o alargamento dos limites do endividamento para as autarquia que investem em habitação, salientou a gravidade do problema e disse que “está nas mãos do governo e da Assembleia da República resolvê-lo”.

Uma perspectiva partilhada por Paula Marques e por Helena Roseta, lamentando esta a incapacidade do Estado em dar resposta à “grave crise nacional de habitação, que em Lisboa e Porto é sentida com uma grave urgência, sobretudo por parte dos mais jovens e dos estudantes”. Roseta atribuiu o actual estado de coisas não apenas à “liberalização das rendas”, surgida a partir de 2012 por iniciativa do anterior governo, mas também ao que considerou ser a generalizada falta de empenhamento político em criar instrumentos tão elementares, quanto a Lei de Bases da Habitação. O documento, da autoria da deputada eleita como independente pelas listas do PS, foi entregue no Parlamento em Abril passado, a que se seguiu um período de consulta pública, mas Helena Roseta considera que o processo “se encontra bloqueado por uma evidente falta de vontade dos partidos”, desconhecendo-se ainda quando será agendada a sua discussão no hemiciclo.

A presidente da Assembleia Municipal de Lisboa (AML), que desempenhou as funções de vereadora da Habitação durante o primeiros anos (2007-2013) da presidência do município por António Costa, diz mesmo “não encontrar explicações para que a actual maioria constituída pela ‘Geringonça’ não dê uma maior atenção a esta questão, que deveria ser uma das suas bandeiras”. Salientando que a desejada aprovação da Lei de Bases da Habitação permitirá criar “uma fatia do meio” correspondente ao que se costuma designar por “renda acessível” – destinada preferencialmente à classe média e situada entre as rendas apoiadas (habitação social) e as rendas do mercado livre -, Roseta lamenta que o assunto não leve a uma maior mobilização, não apenas dos partidos, como da sociedade. “A crise é a que toda a gente sente, mas não há um entendimento para fazer as coisas andar, com o sentido de urgência que se exige, sobretudo em Lisboa, que precisa de respostas urgentes”, criticou a deputada, fazendo notar que, por regra, as medidas tomadas no campo da habitação “não têm resultados imediatos”.

Helena Roseta confessou mesmo achar “estranho que no Parlamento não haja uma expressão deste descontentamento geral” das pessoas com o problema da falta de habitação a preços sustentáveis ao alcance da generalidade dos agregados familiares, correspondendo “aquilo que seria um desígnio de todas as forças políticas”. Mas o seu espanto com a falta de iniciativa não se cinge ao partidos. “Se calhar, falta mobilização das pessoas, que deviam vir mais para a rua manifestar-se sobre esta questão”, sugeriu, lembrando que é essa pressão popular que, muitas vezes, leva à acção por parte dos agentes políticos. “Não encontro mobilização, se calhar, é isso que faz falta”.

 Em todo o caso, a presidente da Assembleia Municipal de Lisboa (AML) deixou elogios à Câmara de Lisboa por ter “avançado por vontade própria”, através do lançamento do Programa Renda Acessível (PRA), com a tal “fatia do meio, que é essencial” e permitirá o acesso à habitação a custos controlados por parte da classe média – obrigando a um investimento, por parte do município, comparativamente muito superior ao que a administração central tem previsto gastar com o sector, este ano, em todo o país, que rondará os 100 milhões de euros. Lembrando que tais abordagens são cada vez mais adoptadas a nível internacional, frisou a a importância fulcral da sua aplicação no contexto nacional e de Lisboa, “em que vivemos entalados entre dois traumas, o do congelamento das rendas, durante décadas, e o do seu descongelamento, desde 2012”.

Também a actual vereadora do pelouro, Paula Marques, frisou o facto de “a polarização na questão da habitação ser um fenómeno não apenas de Lisboa, mas internacional”, que obriga as autarquias a um esforço na busca de respostas que se revelarão sempre insuficientes, enquanto não forem tomadas medidas concretas pelo Estado. Dentro desse esforço encetado pela CML, diz, destacou-se a entrega de 750 chaves de casas municipais a igual número de famílias, durante este primeiro ano do actual mandato – entre as quais se inclui a centena abrangida pelo programa de habitação no centro histórico de Lisboa, destinado a pessoas em situação de especial vulnerabilidade e que iriam ser despejadas. Paula Marques apontou ainda como medidas importantes a concessão de apoio a 650 famílias através do subsídio municipal de arrendamento, a reabilitação de património habitacional disperso do município ou o lançamento das operações do PRA da Rua de São Lázaro e da Rua Gomes Freire. Isto para além da melhoria das condições de habitabilidade em 9.000 habitações geridas pela empresa municipal Gebalis.

 Tarefas a que o titular da pasta das Finanças tratou de atribuir um preço. João Paulo Saraiva disse que a CML gastou este ano cerca de 50 milhões de euros nas diferentes rubricas da habitação e que esse número atingirá os 211 milhões de euros, no período até 2021: 52 milhões de euros para o PRA Entrecampos; 25 milhões para o PRA realizado no edificado na Segurança Social; 49 milhões para novo edifícios; 52 milhões para bairros da Gebalis e 23 milhões para a reabilitação de edificado disperso. A isto haverá que somar ainda a disponibilização de terrenos para construção avaliados entre 350 e 400 milhões de euros. “Trata-se se um investimento sem paralelo, numa área que consideramos prioritária. É algo que fazemos dentro das nossas competências e possibilidades e dos nossos limites de endividamento”, garantiu.




VISTOS GOLD
Deputado Carlos Peixoto acusado de “conflito de interesses gritante

O social-democrata, que é consultor numa sociedade de advogados que tem os vistos gold como uma das áreas de interesse, rejeita acusações. Não vê qualquer conflito de interesses.

 Maria João Lopes
MARIA JOÃO LOPES 3 de Outubro de 2018, 18:49


A Transparência e Integridade Associação Cívica (TIAC) considera haver um “conflito de interesses gritante” na escolha do deputado do PSD, Carlos Peixoto, para redigir um parecer sobre o projecto do Bloco de Esquerda que pretende extinguir o programa dos vistos gold. A questão, acusa a associação cívica, é que o social-democrata trabalha para uma sociedade de advogados que tem os vistos gold como uma das suas áreas de interesse. O social-democrata defende-se, insiste ter direito, enquanto deputado, a uma opinião sobre o tema.

“Em primeiro lugar, não sou advogado de uma sociedade de advogados que trabalha nessa matéria. Sou um dos consultores dessa sociedade. Em segundo, esta sociedade não participou nem participa em nenhum projecto legislativo que diga respeito aos vistos gold”, começa por elencar ao PÚBLICO o advogado, para  acrescentar: “Em terceiro lugar, e mais importante, é que conheço o estatuto dos deputados. E a regra é da transparência e não da inibição de direitos. O único dever que tenho é dizer, no debate da Assembleia da República (AR), que sou consultor de uma sociedade de advogados que, como milhares de outras sociedades e de advogados em prática isolada, trata de vistos gold. Não estou inibido de dar a minha opinião sobre esta matéria”, diz.

Em comunicado, a TIAC adianta já ter pedido “explicações” ao Parlamento: “A Transparência e Integridade escreveu hoje [quarta-feira] ao presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Bacelar de Vasconcelos (PS), e ao presidente da Subcomissão de Ética, Luís Marques Guedes (PSD) pedindo explicações sobre a escolha de Carlos Peixoto para redigir este parecer e os óbvios conflitos de interesse que suscita”, lê-se no comunicado enviado à imprensa.

Na nota, o presidente da associação João Paulo Batalha defende que “os deputados da Comissão de Assuntos Constitucionais e da Subcomissão de Ética têm a obrigação de zelar pelo bom funcionamento da AR e de prevenir que deputados com interesses particulares numa determinada lei participem do processo legislativo. Essa responsabilidade ética fundamental falhou em toda a linha. O presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais deve uma explicação sobre este caso e a Subcomissão de Ética tem o dever de analisá-lo e tirar conclusões”.

O presidente da TIAC considera que o deputado “tem interesses pessoais e de negócio na lei que está a ser discutida” e que é “absurdo que a Comissão de Assuntos Constitucionais não encontrasse outra raposa para guardar este galinheiro. O mais comum bom senso recomendaria um mínimo de pudor para preservar a dignidade do Parlamento.”

No comunicado enviado às redacções, a TIAC adianta que a Caiado Guerreiro não só tem especialistas na “assessoria de processos de obtenção de vistos gold”, como “tem até uma parceria com uma agência imobiliária para vender aos seus clientes o pacote completo de vistos, desde a selecção e compra de um imóvel de luxo até todos os serviços jurídicos para a compra da autorização de residência em Portugal”. E não se fica por aqui: “A mesma sociedade de advogados representou pelo menos um cidadão chinês, Xiaodong Wang, detentor de um visto gold que era procurado pela China por fraude, pela qual foi condenado a dez anos de prisão, e alvo de uma investigação em Portugal por suspeitas de branqueamento de capitais.”

No registo de interesse disponibilizado no site do Parlamento, Carlos Peixoto apresenta a advocacia como actividade principal, com escritórios em Gouveia e em Seia, e surge como consultor da Caiado Guerreiro, em Lisboa. Estas duas funções, a par da de deputado no Parlamento, são aquelas em que é remunerado. No site da Caiado Guerreiro, é também possível verificar que a sociedade conta com advogados que prestam informações sobre o programa dos vistos gold.

Ora, recorda ainda a TIAC, o parecer que Carlos Peixoto elaborou não foi favorável aos objectivos do BE e alguns dos argumentos usados – repescados por esta associação – são os de que os vistos gold “contribuem para a melhoria do negócio de diversos prestadores indirectos”, incluindo de “assessoria jurídica”, alerta a associação que faz parte de uma rede internacional que tem como objectivo lutar contra a corrupção.

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“A defesa dos vistos gold que surge neste parecer não é acompanhada de qualquer dado objectivo sobre o real impacto económico do programa, o que só reforça a opacidade em que o sistema tem funcionado”, escreve ainda João Paulo Batalha, lembrando que, há mais de um ano, recomendou que fosse feito um estudo “aprofundado e independente sobre os impactos económicos e sociais dos vistos gold”. A questão, lamenta, é que “nunca foi feito”.

A associação não baixou os braços e, em Abril, pediu ao ministro da Administração Interna que “fornecesse informação crucial para avaliar o custo-benefício dos vistos gold e escrutinar os controlos aplicados aos riscos de lavagem de dinheiro associados”: “Nunca recebemos resposta”, garante João Paulo Batalha, adiantando que a 10 de Outubro em Bruxelas, a Transparency International (a rede internacional) e a Global Witness lançam um relatório sobre os riscos de corrupção e lavagem de dinheiro nos programas de vistos gold e que Portugal será um dos casos abordados.

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