Câmara de Lisboa sugere que “vistos gold” sejam dados só a
quem invista em habitação com “renda acessível”
Samuel Alemão
Texto
5 Outubro, 2018
Uma situação “grave” e de “clara emergência”, resultado de
uma “tempestade perfeita” relacionada com fenómenos de mobilização
internacional de capitais e da “especulação imobiliária”. Este é, em linhas
gerais, o diagnóstico do estado habitação na cidade de Lisboa traçado pelos
vereadores eleitos pelos Cidadãos por Lisboa, Paula Marques (Habitação) e João
Paulo Saraiva (Finanças e Recursos Humanos), bem como por Helena Roseta,
presidente da Assembleia Municipal de Lisboa (AML) e deputada na Assembleia da
República. Por isso, defendem a tomada de medidas urgentes por parte da
administração central, pois o que possa ser feito a nível local será sempre
insuficiente. “Estamos cientes das dificuldades que as pessoas enfrentam para
terem casa e também das responsabilidades das autarquias neste campo. Mas não é
só com medidas a nível local que conseguiremos colmatar estas falhas”, disse
Paula Marques, na tarde desta quinta-feira (4 de Outubro), durante o encontro
com os jornalistas para fazer o balanço do primeiro ano deste mandato
autárquico por parte desta força eleita nas listas do PS.
O pedido de mais acção neste campo por parte da
administração central constituiu, aliás, a nota dominante da conferência de
imprensa realizada pelos eleitos do Cidadãos por Lisboa, quase integralmente
dedicada às grandes dificuldades da classe média em encontrar habitação. “A
nível nacional está-se a trabalhar isto com pouca acutilância”, considerou o
vereador João Paulo Saraiva, ao referir-se ao que considera ser o quadro de
flagrante “especulação imobiliária” vivido no país, mas sentida com especial
gravidade em Lisboa e no Porto. E deu uma sugestão para ajudar a corrigir o
problema: “Temos de legislar para o todo nacional, mas sem deixar de pensar em
algumas especificidades locais, como a de Lisboa. Porque não podemos, por
exemplo, pensar em só atribuir Vistos Gold a quem queira investir em habitação
de renda acessível?”. O vereador das Finanças da capital, que defendeu ainda o
alargamento dos limites do endividamento para as autarquia que investem em
habitação, salientou a gravidade do problema e disse que “está nas mãos do
governo e da Assembleia da República resolvê-lo”.
Uma perspectiva partilhada por Paula Marques e por Helena
Roseta, lamentando esta a incapacidade do Estado em dar resposta à “grave crise
nacional de habitação, que em Lisboa e Porto é sentida com uma grave urgência,
sobretudo por parte dos mais jovens e dos estudantes”. Roseta atribuiu o actual
estado de coisas não apenas à “liberalização das rendas”, surgida a partir de
2012 por iniciativa do anterior governo, mas também ao que considerou ser a
generalizada falta de empenhamento político em criar instrumentos tão
elementares, quanto a Lei de Bases da Habitação. O documento, da autoria da
deputada eleita como independente pelas listas do PS, foi entregue no
Parlamento em Abril passado, a que se seguiu um período de consulta pública,
mas Helena Roseta considera que o processo “se encontra bloqueado por uma
evidente falta de vontade dos partidos”, desconhecendo-se ainda quando será
agendada a sua discussão no hemiciclo.
A presidente da Assembleia Municipal de Lisboa (AML), que
desempenhou as funções de vereadora da Habitação durante o primeiros anos
(2007-2013) da presidência do município por António Costa, diz mesmo “não
encontrar explicações para que a actual maioria constituída pela ‘Geringonça’
não dê uma maior atenção a esta questão, que deveria ser uma das suas
bandeiras”. Salientando que a desejada aprovação da Lei de Bases da Habitação
permitirá criar “uma fatia do meio” correspondente ao que se costuma designar
por “renda acessível” – destinada preferencialmente à classe média e situada
entre as rendas apoiadas (habitação social) e as rendas do mercado livre -, Roseta
lamenta que o assunto não leve a uma maior mobilização, não apenas dos
partidos, como da sociedade. “A crise é a que toda a gente sente, mas não há um
entendimento para fazer as coisas andar, com o sentido de urgência que se
exige, sobretudo em Lisboa, que precisa de respostas urgentes”, criticou a
deputada, fazendo notar que, por regra, as medidas tomadas no campo da
habitação “não têm resultados imediatos”.
Helena Roseta confessou mesmo achar “estranho que no
Parlamento não haja uma expressão deste descontentamento geral” das pessoas com
o problema da falta de habitação a preços sustentáveis ao alcance da
generalidade dos agregados familiares, correspondendo “aquilo que seria um
desígnio de todas as forças políticas”. Mas o seu espanto com a falta de
iniciativa não se cinge ao partidos. “Se calhar, falta mobilização das pessoas,
que deviam vir mais para a rua manifestar-se sobre esta questão”, sugeriu,
lembrando que é essa pressão popular que, muitas vezes, leva à acção por parte
dos agentes políticos. “Não encontro mobilização, se calhar, é isso que faz
falta”.
Em todo o caso, a
presidente da Assembleia Municipal de Lisboa (AML) deixou elogios à Câmara de
Lisboa por ter “avançado por vontade própria”, através do lançamento do
Programa Renda Acessível (PRA), com a tal “fatia do meio, que é essencial” e
permitirá o acesso à habitação a custos controlados por parte da classe média –
obrigando a um investimento, por parte do município, comparativamente muito superior
ao que a administração central tem previsto gastar com o sector, este ano, em
todo o país, que rondará os 100 milhões de euros. Lembrando que tais abordagens
são cada vez mais adoptadas a nível internacional, frisou a a importância
fulcral da sua aplicação no contexto nacional e de Lisboa, “em que vivemos
entalados entre dois traumas, o do congelamento das rendas, durante décadas, e
o do seu descongelamento, desde 2012”.
Também a actual vereadora do pelouro, Paula Marques, frisou
o facto de “a polarização na questão da habitação ser um fenómeno não apenas de
Lisboa, mas internacional”, que obriga as autarquias a um esforço na busca de
respostas que se revelarão sempre insuficientes, enquanto não forem tomadas
medidas concretas pelo Estado. Dentro desse esforço encetado pela CML, diz,
destacou-se a entrega de 750 chaves de casas municipais a igual número de
famílias, durante este primeiro ano do actual mandato – entre as quais se
inclui a centena abrangida pelo programa de habitação no centro histórico de
Lisboa, destinado a pessoas em situação de especial vulnerabilidade e que iriam
ser despejadas. Paula Marques apontou ainda como medidas importantes a
concessão de apoio a 650 famílias através do subsídio municipal de
arrendamento, a reabilitação de património habitacional disperso do município
ou o lançamento das operações do PRA da Rua de São Lázaro e da Rua Gomes
Freire. Isto para além da melhoria das condições de habitabilidade em 9.000
habitações geridas pela empresa municipal Gebalis.
Tarefas a que o
titular da pasta das Finanças tratou de atribuir um preço. João Paulo Saraiva
disse que a CML gastou este ano cerca de 50 milhões de euros nas diferentes
rubricas da habitação e que esse número atingirá os 211 milhões de euros, no
período até 2021: 52 milhões de euros para o PRA Entrecampos; 25 milhões para o
PRA realizado no edificado na Segurança Social; 49 milhões para novo edifícios;
52 milhões para bairros da Gebalis e 23 milhões para a reabilitação de
edificado disperso. A isto haverá que somar ainda a disponibilização de
terrenos para construção avaliados entre 350 e 400 milhões de euros. “Trata-se
se um investimento sem paralelo, numa área que consideramos prioritária. É algo
que fazemos dentro das nossas competências e possibilidades e dos nossos
limites de endividamento”, garantiu.
VISTOS GOLD
Deputado Carlos Peixoto acusado de “conflito de interesses
gritante”
O social-democrata, que é consultor numa sociedade de
advogados que tem os vistos gold como uma das áreas de interesse, rejeita
acusações. Não vê qualquer conflito de interesses.
Maria João Lopes
MARIA JOÃO LOPES 3 de Outubro de 2018, 18:49
A Transparência e Integridade Associação Cívica (TIAC)
considera haver um “conflito de interesses gritante” na escolha do deputado do
PSD, Carlos Peixoto, para redigir um parecer sobre o projecto do Bloco de
Esquerda que pretende extinguir o programa dos vistos gold. A questão, acusa a
associação cívica, é que o social-democrata trabalha para uma sociedade de
advogados que tem os vistos gold como uma das suas áreas de interesse. O
social-democrata defende-se, insiste ter direito, enquanto deputado, a uma opinião
sobre o tema.
“Em primeiro lugar, não sou advogado de uma sociedade de
advogados que trabalha nessa matéria. Sou um dos consultores dessa sociedade.
Em segundo, esta sociedade não participou nem participa em nenhum projecto
legislativo que diga respeito aos vistos gold”, começa por elencar ao PÚBLICO o
advogado, para acrescentar: “Em terceiro
lugar, e mais importante, é que conheço o estatuto dos deputados. E a regra é
da transparência e não da inibição de direitos. O único dever que tenho é
dizer, no debate da Assembleia da República (AR), que sou consultor de uma
sociedade de advogados que, como milhares de outras sociedades e de advogados
em prática isolada, trata de vistos gold. Não estou inibido de dar a minha
opinião sobre esta matéria”, diz.
Em comunicado, a TIAC adianta já ter pedido “explicações” ao
Parlamento: “A Transparência e Integridade escreveu hoje [quarta-feira] ao
presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Bacelar de Vasconcelos
(PS), e ao presidente da Subcomissão de Ética, Luís Marques Guedes (PSD)
pedindo explicações sobre a escolha de Carlos Peixoto para redigir este parecer
e os óbvios conflitos de interesse que suscita”, lê-se no comunicado enviado à
imprensa.
Na nota, o presidente da associação João Paulo Batalha
defende que “os deputados da Comissão de Assuntos Constitucionais e da
Subcomissão de Ética têm a obrigação de zelar pelo bom funcionamento da AR e de
prevenir que deputados com interesses particulares numa determinada lei
participem do processo legislativo. Essa responsabilidade ética fundamental
falhou em toda a linha. O presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais
deve uma explicação sobre este caso e a Subcomissão de Ética tem o dever de
analisá-lo e tirar conclusões”.
O presidente da TIAC considera que o deputado “tem
interesses pessoais e de negócio na lei que está a ser discutida” e que é
“absurdo que a Comissão de Assuntos Constitucionais não encontrasse outra
raposa para guardar este galinheiro. O mais comum bom senso recomendaria um
mínimo de pudor para preservar a dignidade do Parlamento.”
No comunicado enviado às redacções, a TIAC adianta que a
Caiado Guerreiro não só tem especialistas na “assessoria de processos de
obtenção de vistos gold”, como “tem até uma parceria com uma agência
imobiliária para vender aos seus clientes o pacote completo de vistos, desde a
selecção e compra de um imóvel de luxo até todos os serviços jurídicos para a
compra da autorização de residência em Portugal”. E não se fica por aqui: “A
mesma sociedade de advogados representou pelo menos um cidadão chinês, Xiaodong
Wang, detentor de um visto gold que era procurado pela China por fraude, pela
qual foi condenado a dez anos de prisão, e alvo de uma investigação em Portugal
por suspeitas de branqueamento de capitais.”
No registo de interesse disponibilizado no site do
Parlamento, Carlos Peixoto apresenta a advocacia como actividade principal, com
escritórios em Gouveia e em Seia, e surge como consultor da Caiado Guerreiro,
em Lisboa. Estas duas funções, a par da de deputado no Parlamento, são aquelas
em que é remunerado. No site da Caiado Guerreiro, é também possível verificar
que a sociedade conta com advogados que prestam informações sobre o programa
dos vistos gold.
Ora, recorda ainda a TIAC, o parecer que Carlos Peixoto
elaborou não foi favorável aos objectivos do BE e alguns dos argumentos usados
– repescados por esta associação – são os de que os vistos gold “contribuem
para a melhoria do negócio de diversos prestadores indirectos”, incluindo de
“assessoria jurídica”, alerta a associação que faz parte de uma rede
internacional que tem como objectivo lutar contra a corrupção.
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“A defesa dos vistos gold que surge neste parecer não é
acompanhada de qualquer dado objectivo sobre o real impacto económico do
programa, o que só reforça a opacidade em que o sistema tem funcionado”,
escreve ainda João Paulo Batalha, lembrando que, há mais de um ano, recomendou
que fosse feito um estudo “aprofundado e independente sobre os impactos
económicos e sociais dos vistos gold”. A questão, lamenta, é que “nunca foi
feito”.
A associação não baixou os braços e, em Abril, pediu ao
ministro da Administração Interna que “fornecesse informação crucial para
avaliar o custo-benefício dos vistos gold e escrutinar os controlos aplicados
aos riscos de lavagem de dinheiro associados”: “Nunca recebemos resposta”,
garante João Paulo Batalha, adiantando que a 10 de Outubro em Bruxelas, a
Transparency International (a rede internacional) e a Global Witness lançam um
relatório sobre os riscos de corrupção e lavagem de dinheiro nos programas de
vistos gold e que Portugal será um dos casos abordados.
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