segunda-feira, 1 de outubro de 2018

"É grave que os partidos não percebam que a exigência imposta ao povo tem que ser acompanhada por idêntica exigência imposta a si mesmos"




Cinco anos de ilegalidades dos partidos em “gravíssimo risco” de prescrever

Entidade das Contas declara-se em “situação de quase ruptura” e dá prioridade à fiscalização dos processos desde 2015. Nova lei de financiamento dos partidos já levou à prescrição das processos relativos a 2009.

Leonete Botelho
LEONETE BOTELHO 29 de Setembro de 2018, 6:43

A Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP) publicou esta semana uma deliberação onde se declara em “situação de quase ruptura” e decide dar prioridade aos processos de fiscalização das contas anuais dos partidos e das campanhas desde 2015. Isto apesar do “gravíssimo risco de prescrição” dos 14 processos que estavam nas mãos do Tribunal Constitucional e que este acabou por não julgar, enquanto esperava pela nova lei de financiamento dos partidos.

A deliberação é inédita e muito clara. A ECFP decidiu “concentrar os seus esforços e a alocução dos recursos humanos disponíveis” nos processos instruídos desde a tomada de posse da nova direcção, em Outubro do ano passado, “com prejuízo da análise das contas anuais dos partidos” que estavam pendentes. A Entidade refere-se especificamente às contas de 2010 (que prescrevem em Dezembro) e 2011, que já foram devolvidas. Mas avisa que, sem a criação de uma equipa de recuperação de pendências, não será possível dar conta do resto dos processos que irá receber.

Em causa estão os 14 processos que estavam pendentes no Tribunal Constitucional (TC) antes da entrada em vigor da nova lei de financiamento dos partidos. As contraordenações detectadas nas contas anuais de 2009 já prescreveram. Nas mãos do TC, ainda sem decisão (que será de devolução à Entidade por força da nova lei), estão ainda as contas anuais de 2012, 2013 e 2014, as omissões das contas de 2015 e 2016, e as contas das campanhas das regionais dos Açores de 2012, das autárquicas de 2013, do Parlamento Europeu de 2014, das regionais da Madeira de 2015, das presidenciais de 2016 e da câmara de S. João da Madeira desse mesmo ano.

Sem reforço de meios, a nova lei pode resultar, na prática, numa amnistia de seis anos aos partidos, contando com as de 2009, cuja prescrição o TC já declarou em Julho. Só em relação a estas, a última decisão do Tribunal Constitucional antes da prescrição datava de Janeiro de 2015. O Ministério Público determinou a aplicação das coimas, mas quem determinava os valores a pagar era o TC. E isso nunca aconteceu.

Nos cinco anos anteriores, entre 2005 e 2009, as coimas aplicadas ascenderam a 2,26 milhões de euros, com as contas dos partidos a representarem multas sempre acima dos 330 mil euros por ano.

Pesada herança
Na deliberação, a Entidade refere-se em particular ao risco de prescrição das irregularidades nas contas de 2010 e 2011, que o TC já devolveu para reanálise, agora que esta estrutura ficou com a responsabilidade total de decidir sobre os processos. Se antes a ECFP apenas fiscalizava e fazia um relatório para o Constitucional, que por sua vez julgava as irregularidades e aplicava as multas (coimas) aos partidos, por proposta do Ministério Público, com a nova lei todas essas fases competem à Entidade, ficando o TC como mera instância de recurso.

Como se não bastasse, a lei que entrou em vigor em Abril determinou também que as novas regras para o financiamento dos partidos e campanhas se aplicam retroactivamente, a todos os processos que ainda se encontravam por julgar no TC. Ou seja, o trabalho já efectuado pela anterior ECFP de pouco vale, pois tudo tem de ser reanalisado de início. Uma pesada herança à qual não correspondeu nenhum reforço de meios.

“Se a extrema limitação da ECFP em termos de recursos humanos já era evidente antes da remessa dos processos pendentes no TC, com a efectivação dessa remessa a mencionada limitação atingiu um ponto crítico, impedindo a Entidade de dar resposta aos procedimentos já a decorrer e aos agora remetidos pelo TC”, escrevem os membros da direcção, o presidente José Eduardo Figueiredo Dias e as vogais Tânia Cunha, magistrada, e Carla Curado, revisora oficial de contas.

“Necessidades imperiosas”
A deliberação recorda que, em Março, ainda antes da publicação da actual lei, enviou ao presidente do TC, Manuel da Costa Andrade, um memorando sobre os recursos humanos em que identificou “duas necessidades imperiosas”: a definição de um “quadro de pessoal próprio, reforçado” para dar resposta adequada às “significativamente reforçadas atribuições e competências”. A ECFP tem apenas três técnicos superiores e duas assistentes técnicas, tendo neste momento uma sexta pessoa emprestada pelo TC, que ali presta serviço esporádico.

A segunda necessidade consiste numa “equipa de recuperação” com três técnicos superiores durante dois anos para permitir “em tempo útil a resolução das situações pendentes junto do TC”, ou seja, os 14 processos de prestação de contas anteriores a 2015 que deverão ser devolvidas pelo Tribunal por força da nova lei. A Entidade estima que só estes processos “darão origem a várias centenas de procedimentos”.

Primeiro-ministro foi informado
Segundo o texto publicado no site da ECFP, o presidente do TC “assumiu como suas as preocupações da Entidade” e transmitiu-as ao primeiro-ministro. Seis meses depois, nada aconteceu.

Neste momento, a ECFP tem em mãos as contas dos partidos de 2015, 2016 e 2017, bem como as contas das campanhas legislativas de 2015, regionais dos Açores de 2016, autárquicas de 2017 – só estas últimas incluem mais de 1500 processos de prestação de contas. Para estas últimas, foi contratada uma empresa de auditoria externa que começa o seu trabalho a 1 de Outubro.

A Entidade está ainda preocupada com o que vai acontecer em 2019, ano que vai ser marcado por três actos eleitorais, pelo que tem de começar a elaborar as recomendações.

tp.ocilbup@ohletobl


 Nós, os tansos fiscais, e eles, os partidos

É grave que os partidos não percebam que a exigência imposta ao povo tem que ser acompanhada por idêntica exigência imposta a si mesmos

Paulo Ferreira
30 Setembro 2018

Sei que me vou repetir em relação a artigos recentes – como este ou este – mas em minha defesa tenho a dizer que a realidade é que teima em ser tristemente repetitivo. Há pouco mais de dois meses ficámos a saber que o Tribunal Constitucional deixou prescrever multas de 400 mil euros que 12 partidos e 24 dirigentes partidários tinham que pagar ao Estado por irregularidades no financiamento da campanha eleitoral de 2009. Nada aconteceu, porque quando se trata do cartel partidário nada acontece.

Este sábado, o Público contou-nos que multas semelhantes por irregularidades nas contas dos partidos e das campanhas eleitorais, não quantificadas, correm o sério risco de prescrever para o período de 2010 a 2015. Os partidos decidem para si próprios uma permanente amnistia no cumprimento das regras financeiras.

Como fazem?

Primeiro, contam com a cumplicidade do Tribunal Constitucional, cujos juízes são por si nomeados. Depois, colocam a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos numa conveniente falta de meios para que esta não consiga actuar dentro dos prazos. Por fim, fazem frequentes alterações à lei que decidem aplicar a si próprios, obrigando os processos a regressar ao início, para garantir que os prazos são mesmo ultrapassados e que as multas ficam por pagar.

Compare-se este regime que os partidos políticos escolhem para si com o que impõem aos cidadãos, sobretudo através da Autoridade Tributária. Basta recordar a recente tentativa de imposição de multas aos contribuintes que não tinham aderido ao Via CTT ou a passagem para a AT da cobrança de dívidas a algumas ordens profissionais.

Já para não falar do que acontece diariamente com milhares de contribuintes individuais ou empresariais que se atrasam um dia no cumprimento das suas obrigações fiscais. É certinho que a multa vai chegar, que não é pequena e, sobretudo, que nunca beneficia de qualquer prescrição na secretaria.

Se o Estado conseguiu resolver o problema da fuga ao fisco, criando para isso uma máquina legislativa e informática implacável, só por premeditação mantém cirúrgicas zonas onde reina a impunidade, a lentidão de processos e a eterna falta de meios para fazer cumprir a lei. Sem surpresa, os partidos políticos e seus dirigentes que tomam estas decisões são os principais beneficiários deste vergonhoso regabofe.

Há poucas décadas a fuga ao fisco era um desporto nacional de que alguns até se gabavam nas páginas dos jornais. A impunidade era então relativamente generalizada e o sentimento de injustiça por tratamento diferenciado era muito mais atenuado.

Foi nessa altura que Leonardo Ferraz de Carvalho, nas páginas do Independente, cunhou a expressão “tansos fiscais”, precisamente para sublinhar a diferença de estatuto entre os que tinham que pagar e os que podiam fugir impunemente.

Mas hoje somos todos “tansos fiscais”, sempre à disposição para pagar bancarrotas, suportar as cargas fiscais mais elevadas de sempre, estar sujeito a multas e taxas por tudo e mais alguma coisa e, claro, para pagar do nosso bolso aquilo que outros, como os partidos, recusam pagar.

É grave e representa um enorme tiro no pé que os dirigentes políticos não percebam que os tempos mudaram e que, a prazo, isto lhes cairá violentamente em cima.

É grave que não percebam que a exigência imposta ao povo tem que ser acompanhada por idêntica exigência imposta a si mesmos.

É grave que não entendam que a sua legitimidade política é minada pela imoralidade que escolhem para si, perpetuando comportamentos abjectos como este.

Fácil é darem-se ao papel de virgens ofendidas, querendo passar por vítimas dos seus próprios comportamentos.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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