Quando os povos mergulham na noite
Viriato Soromenho-Marques
14 Outubro 2018 — 06:11
No mesmo dia em que o eleitorado brasileiro colocou Jair
Bolsonaro à entrada do Palácio do Planalto, foi divulgado um inquietante
Relatório Especial do IPCC - órgão da ONU encarregado de monitorizar a marcha
global das alterações climáticas. A mensagem é dupla. Primeiro, as alterações
climáticas estão a crescer a um ritmo que a ciência, importa confessá-lo, não
foi capaz de antecipar. Segundo, o limite antes considerado aceitável de 2ºC
para o aumento da temperatura média até ao final do século afinal seria
catastrófico, Devemos, por isso, usar a próxima década para mudar
aceleradamente o nosso sistema de produção e consumo (de civilização, em
geral), de modo a impedir que esse aumento ultrapasse 1,5ºC. Imaginemos
Bolsonaro a ler o relatório do IPCC, o homem que quer destruir a Amazónia e que
alardeia a sua ignorância e preconceito! O seu problema, como o de Trump, como
o de Duterte e de todos os outros tiranetes é que nem sequer têm a literacia
elementar para perceberem aquilo que recusam. A política foi inventada,
acreditamos, para corporizar a força comum na superação das ameaças que só em
comum podem ser vencidas. Se assim é, então, ao eleger líderes ignorantes,
moralmente niilistas e semeadores da discórdia e do conflito - que nos levam
para o abismo que deveriam evitar - estamos a colocar a antipolítica no lugar
da política. De onde se deveria esperar a salvação vem, afinal, o maior
perigo...
O que poderá levar os brasileiros a escolher para presidente
um homem que fala e se comporta como um delinquente? Ou os norte-americanos a
suportarem e, eventualmente, a reelegerem uma criatura totalmente indigna de
crédito e confiança como Trump? Quando dizemos que Bolsonaro e Trump são a
morte da política, corremos o risco de confundir causas com efeitos, de
esquecer o que se passa na cabeça de cada eleitor em favor de um excesso de
sociologia política. Na sua obra maior, O Princípio Esperança (1959), o
filósofo Ernst Bloch analisava as diferenças entre o "sonho acordado"
ou devaneio (Tagtraum) e o "sonho noturno" (Nachttraum). Com razão,
Bloch destacava o facto de escassa atenção ter sido dada ao primeiro, enquanto
o estudo do segundo até serviu de base para a construção da psicanálise. O
devaneio, que não se esgota na idade juvenil, cumpre uma função de antecipação
do futuro, constitui uma espécie de ensaio utópico quotidiano à escala
individual. É um ato de higiene do espírito, em que, ao contrário do sonho
noturno, nunca perdemos o controlo da efabulação nem a identidade própria. O
devaneio raramente remete para o passado, como ocorre com o sonho noturno, mas
visa o futuro, o mundo concreto partilhado com os outros. Voltando ao início.
Os povos só se entregam à noite dos ditadores e populistas quando os indivíduos
deixam de ter capacidade de sonhar acordados. Só entrega o seu destino nas mãos
de um monstro certificado como tal quem trocou o sonho acordado pelo medo
paralisante e/ou pelo ódio cego que alimenta a violência indiscriminada. Quando
os eleitores desistem de imaginar o seu futuro, trocam a incerta aposta na
esperança, que implica sempre um esforço individual, pela inevitabilidade do
anónimo e impositivo pesadelo coletivo. No dia 28, os brasileiros vão escolher
entre serem cidadãos racionais, capazes de ponderar o gradiente dos interesses
e valores em jogo, ou cúmplices imputáveis dum golpe, possivelmente letal,
contra a sua frágil ordem democrática.
Professor Universitário
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