Margarida Saavedra. “A Torre de Picoas é um elefante na
cidade de Lisboa”
BEATRIZ DIAS COELHO CARLOS DIOGO SANTOS
02/10/2018 20:40
Deixaram-lhe um envelope com dinheiro em cima da secretária.
“Abri, vi o que era e devolvi”, recorda
Numa altura em que os projetos e obras da cidade estão sob
fogo cruzado, Margarida Saavedra, arquiteta com um percurso de mais de 30 anos
na Câmara Municipal de Lisboa, fala com o i sobre os bastidores do município.
Defende que quem está na câmara está ao serviço das pessoas e que pode haver
rapidez nos processos, se os funcionários assim o quiserem. Denuncia a pequena
corrupção que existe na CML e procedimentos menos regulares de alguns
responsáveis, como autos de embargo de boca. É particularmente crítica em
relação ao mono do Rato - designação de que não gosta -, por “incumprimento de
regulamento” e não por questões estéticas, que lamenta terem tomado conta do
caso.
Que função destaca como fundamental no seu percurso pela
CML?
Acho que a função que me define melhor, inclusive a minha
entrada na política, foi o facto de em 1979 ter entrado para a CML por concurso
público. Tenho imenso orgulho em dizê-lo e toda a minha vida eu fiz gestão
urbanística na CML.
Já desde essa altura?
Entrei logo para a gestão urbanística e aí continuei sempre.
Por um lado, isso deu-me um conhecimento enorme da cidade, por outro
desenvolveu imenso o gosto que tenho pela cidade e criou-me sensibilidade para
determinadas áreas e mercê disso foi a fase de que mais gostei na minha vida.
Tive muitos desgostos, mas isso faz parte do percurso. Outra fase que me marcou
também muito foi aquela em que fui diretora municipal de gestão urbanística.
Quando entrei tinha cerca de 12 mil processos atrasados. Na sala onde eu fiquei
só tinha o lugar da minha cadeira, estava tudo cheio de processos até cima.
Havia uma sala com processos fechados à chave. Reuni com pessoas da CML e nós
em dois anos limpámos aquilo tudo. E não dei um euro a mais a ninguém, dei
liberdade de horário, marquei objetivos e todos cumpriram. Foi das fases mais
interessantes da minha vida porque pude comprovar que, de facto, quando os
funcionários querem, e com toda a câmara, é possível prestarmos um serviço
público em condições e de modo a satisfazer as pessoas. Quem está na câmara e
na política autárquica está ao serviço das pessoas. E sobretudo daqueles que
não tendo visibilidade, precisam exatamente de nós para resolver os problemas.
Isso deu-me uma sensibilidade muito grande para perceber que a maioria das
pessoas não quer saber muitas vezes de grandes projetos, quer que lhe resolvam
os problemas do dia-a-dia porque são esses que as chateiam. E acho que essa é a
função da Câmara.
E esses pequenos problemas às vezes demoram mais a resolver
do que grandes projetos.
Esses problemas não são resolvidos muitas vezes porque não
têm importância nenhuma. E muitas vezes quem decide e está lá em cima nem
sequer sabe o que eles exigem ou menorizam-nos. E é isso que torna a qualidade
de vida má.
Deu particular ênfase quando disse que entrou por concurso
público. Deu a entender que foi um processo de justiça. Esse tipo de processos
na CML é uma exceção?
Neste momento não sei quantas pessoas entraram por concurso
público. Na altura, tinha acabado de me formar e conhecia o engenheiro Abecassis
e nunca lhe pedi nada. E ele um dia - ele tratava toda a gente por tu - veio-me
dizer ‘então tu entraste na CML e não me disseste nada?’ e eu disse ‘gostei de
entrar por concurso, porque acho que é por mérito’. E ele ficou chateado
comigo, nunca mais me falou, mas a verdade é que acho que isso nos dá
autoridade.
Mas acha que falta essa cultura do mérito na CML?
Acho que neste momento a cultura do mérito é muito relativa.
Até porque existe uma coisa que não existia no meu tempo: os lugares de chefia
são muitas vezes de nomeação. E as pessoas muitas vezes são chamadas a chefiar
departamentos dos quais não conhecem nada, cuja estrutura não conhecem e de
facto não têm autoridade. A autoridade advém-lhes é do poder que lhes têm dado,
mas de facto quem tem de lhes obedecer não lhes reconhece autoridade. No tempo
do doutor João Soares foi nomeado um chefe de divisão que era o arquiteto mais
recente que tinha entrado na câmara. Foi nomeado dois meses de ter acabado o
estágio e de ter entrado no quadro e pôs-se um problema muito complicado quando
ele ia de férias: é que a lei diz que quando o chefe vai de férias é
substituído pelo graduado imediatamente inferior, ora ele era o graduado mais
inferior de todos. (risos)
Era substituído pelo mais antigo?
Não, porque ele não queria, porque o mais antigo sabia mais
do que ele. E, portanto, acho que ele nunca chegou a ir de férias por causa
disso. Isso prova a perversão que existe nos serviços. Por outro lado, também
começaram a aparecer nos últimos anos do engenheiro Abecassis assessores.
Entraram dois assessores e depois passaram a aparecer uma série de assessores,
que levantam dois problemas do meu ponto de vista: ganham muito mais do que
qualquer funcionário de carreira e depois têm uma função paralela que não se
assume porque não podem fazer despachos nem pareceres. O mérito é uma coisa que
conta muito pouco.
É interessante essa questão dos assessores. Acha que
funcionam quase como um poder paralelo na CML?
Acho que há vários tipos de assessores. Há assessores que
são exteriores às funções da câmara. Agora, não se pode é criar uma
sobreposição paralela de funções, porque isso desautoriza quem lá está.
E ganha sempre aquele que é colocado por nomeação?
Ganha sempre até porque não tem responsabilidade nenhuma
porque não pode assinar. E isso cria uma desconfiança em relação aos serviços,
porque ou se confia ou não se confia numa máquina. E quando não se confia
cria-se uma estrutura paralela. A máquina reage sempre mal: pode não reagir com
greves, mas reage por inércia que é a pior coisa que pode acontecer.
É o pior passivo, não é?
É o pior passivo. Isso acontece e qualquer um de nós percebe
porque que é que isso tem de acontecer. Outra coisa que acho má é o outsourcing.
Quando deixou as funções de diretora municipal?
Deixei de o ser no tempo do presidente Carmona Rodrigues.
Fui requisitada para a Assembleia Municipal para trabalhar com a doutora Paula
Teixeira da Cruz.
Quando sente que essa criação de um poder paralelo de um
número excessivo de assessores começa a ganhar peso? Ou isso sempre foi assim?
Não foi sempre assim. Começaram a aparecer alguns assessores
no tempo do engenheiro Abecassis, julgo que eram dois. No tempo do doutor Jorge
Sampaio eles começaram a aparecer imenso e a partir daí foi sempre em
crescendo.
Durante todos estes anos que exerceu diversas funções na CML
encontrou certamente questões que eram eticamente mais questionáveis ou
ilegais. Disse em determinado momento que lhe deixaram um envelope com dinheiro
em cima da secretária. A corrupção é generalizada dentro da CML?
Não tenho essa ideia. Acho que há de facto pessoas que se
aproveitam do sistema.
Muitas?
Admito que alguma parte, porque essas pessoas de um modo
geral têm muito mais necessidade de ocupar o cargo do que outras. Todos nós,
que temos capacidade de decisão, somos sempre na nossa vida sujeitos a
situações dessas. Há os que o fazem e há os que não o fazem. E encontrei ao
longo da minha vida muita gente que o não fez.
Não me referia apenas e só a grandes negócios, falava até da
pequena corrupção, dinheiro debaixo da mesa.
Não julgo que seja generalizada, aliás, se tivesse
encontrado algum caso de corrupção óbvio eu tê-lo-ia denunciado.
Esse envelope em cima da mesa não seria?
Foi com certeza um mal entendido que foi rapidamente
resolvido [risos]. E a partir daí nunca mais fui incomodada.
Mas percebeu qual o sentido desse envelope?
Claro, toda a gente percebe qual o sentido, não é?
Não chegou a revelar qual era o valor desse envelope.
Abri, vi o que era e devolvi, não contei.
Devolveu a quem?
Ao próprio, como é evidente.
Qual foi a reação?
‘Muito bem, desculpe, foi engano. Não sei o que é que me
passou pela cabeça.’
Não era ninguém da câmara.
Não, era um munícipe.
Que precisava de uma autorização.
Sim. Foi muito simples: abri, vi o que era, fui atrás dele e
disse-lhe ‘olhe, esqueceu-se de uma coisa’.
Para um munícipe ter uma atitude dessas, não significa que
isso é a normalidade com outros profissionais?
Julgo que muitas vezes essa ideia pode passar, mas acho que
não se aplica a todos. Conheci muita gente que faria exatamente o que eu fiz.
Porque acha que as autoridades, que nos últimos anos têm
investigado políticos - ex-primeiros ministros, ex-líderes de bancadas
parlamentares - não têm uma atitude mais concreta e não tomam medidas em
relação a essa pequena corrupção que sabemos que existe?
A nível de câmara, a medida contra a corrupção não pode ser
a repressão mas a incrementação de boas práticas. Por exemplo: em termos de
projetos urbanísticos - tentei fazer isto quando era diretora de departamento e
acho que resultou - a lei prevê prazos e qualquer dirigente neste momento com
os sistemas informáticos que foram implementados no tempo do doutor Santana
Lopes na CML sabe perfeitamente, ao carregar num botão, onde está um processo e
há quanto tempo é que lá está. E, portanto, no momento em que se insistir no
cumprimento de prazos e em recusas devidamente fundamentadas, essas práticas
começam a ter muito pouca capacidade de existir.
Têm-se adensado as críticas àquilo que o vereador Manuel
Salgado tem feito nos últimos anos e até escreveu sobre isso no “SOL”. Os
mecanismos internos que deveriam existir de combate ao abuso de poder não
funcionam.
Neste caso não funcionam. Aliás, funcionariam porque eles
são votados. A Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) foi votada, toda a gente
sabia que ao passar para a SRU determinados assuntos, naturalmente se abriria a
porta a adjudicações diretas, à escolha de arquitetos, está claríssimo. E
portanto o mecanismo que poderia obstar a isso era o voto das pessoas que não
concordariam .
Está a falar da Assembleia Municipal?
Na Assembleia Municipal e na câmara. Mas, de facto, quando
as pessoas votaram na câmara sabiam que estavam a abrir a porta a essa
situação.
E porque é que abrem?
Foi criada uma série de mecanismos urbanísticos,
nomeadamente o Plano de Urbanização e os Planos de Pormenor, que mercê das
circunstâncias e da própria inércia das estruturas, se tornaram muito pesados.
Um Plano de Urbanização demora anos a ser aprovado e os Planos de Pormenor
também. Criou-se uma figura muito usada neste PDM que é o chamado projeto
urbano que é uma coisa expedita que não é sufragado nem pela câmara nem pela
Assembleia Municipal. E, portanto, divide-se um plano grande em bocadinhos e
esses bocadinhos vão rapidamente ser resolvidos. Eu acho que à custa dessa
agilização de processos que seriam lentos, foram-se criando maneiras de fugir a
essa lentidão. Por outro lado, acho que se criou uma coisa má para a cidade: é
que todos os planos são feitos com base num calendário eleitoral e portanto
quem está nesse calendário eleitoral tem quatro ou três ou dois anos em ordem
decrescente para implementar uma ideia ou um projeto. Portanto, utiliza os
mecanismos expeditos que estão ao seu dispor para o fazer, à custa daquilo que
a lei pretendia salvaguardar com esses planos que era exatamente o escrutínio,
a discussão pública e a discussão pelos órgãos competentes. Com a utilização
sistemática do chamado projeto urbano, a Assembleia Municipal tem as
competências reduzidas numa percentagem extraordinária. E isso é muito mau,
porque é o órgão fiscalizador.
A SRU é quase como se fosse uma segunda câmara?
Neste momento, a SRU é uma segunda câmara para os assuntos
que a câmara quer resolver de modo expedito. Porque para a SRU só vão processos
ou partes que a câmara considera estratégicas.
Ou seja, é como se fosse uma via verde.
Exatamente, é uma espécie de via verde para os assuntos
considerados prioritários.
E esses assuntos serão os grandes negócios imobiliários?
Os assuntos são aqueles que são óbvios, é o Plano Integrado
de Entrecampos e toda aquela parte que a SRU resolve gerir sozinha, sempre
ligados aos grandes negócios imobiliários porque normalmente a SRU atua em
terrenos que não estão construídos ou que vão ser para construção. E
curiosamente incidem sobre uma parte da cidade que é nobre, ao longo do eixo
central.
Como olha para o Plano Integrado de Entrecampos?
Sou muito crítica. Olhando para o plano em si acho que é
muito interessante, mas depois escalpelizando aquilo o que se começa a ver? Uma
perspetiva muito bonita que toda a gente gosta e depois em baixo diz assim:
‘esta perspetiva pode vir a ser totalmente diferente de acordo com as
circunstâncias’. E portanto estamos perante aquilo que se chama publicidade
enganosa. Há quatro lotes que vão ser vendidos em hasta pública, a CML não tem
projeto nenhum para aquilo, tem uma volumetria, e portanto é expectável que
haja quatro entidades diferentes que vão comprar os quatro lotes diferentes. A
possibilidade daquela fotografia fantástica que mostra quatro lotes homogéneos
o vir ser é praticamente nula. A menos que a CML diga - o que não pode - em
hasta pública que sejam feitos pelo mesmo arquiteto, é natural que cada um
encontre o seu arquiteto e aqueles quatro lotes que hoje aparecem todos iguais
sejam diferentes. Em nome da honestidade intelectual não podemos fazer esse
tipo de publicidade. Além disso, como depois desses lotes toda a outra parte
vai ser dividida nos chamados projetos urbanos a desenvolver pela SRU, a
verdade é que eles não vão estar dentro do escrutínio público, vão ser
desenvolvidos de acordo com um calendário que a SRU vai entender, quando
entender e do modo que entender. Não acho que se possa passar um cheque em
branco a quem quer que seja, independentemente das intenções. Não posso
subscrever uma coisa dessas.
E em relação ao mono do Rato?
Não gosto da palavra mono. Acho que deliberadamente estão a
colocar a questão do edifício do Rato numa questão estética, numa questão
meramente de projeto e não é nada disso que está em causa. Fui a primeira
pessoa a votar contra o dito edifício no tempo do doutor António Costa. Aliás,
com o Fórum Cidadania foi metido um processo em tribunal, que ainda está
decorrer no tribunal civil, exatamente por causa deste edifício. As questões
que se colocam são de incumprimento de regulamento, posso dar três exemplos.
Primeiro: a volumetria que foi arranjada para o edifício do Largo do Rato teve
como base a volumetriedade da Rua Alexandre Herculano e o Plano de Urbanização
da Avenida da Liberdade. Ora, esse plano acaba exatamente no lote do lado e
exclui expressamente o edifício do Largo do Rato porque entende que o Largo do
Rato é uma realidade urbanística completamente diferente e que teria de ser
objeto de um Plano de Pormenor próprio, o que significa que se isso tivesse
acontecido, a volumetria que se tinha de achar para este edifício era a que
estaria no Largo do Rato e não a da Alexandre Herculano, portanto partiu logo
de uma premissa errada - justificou volumetria com base num plano que
expressamente exclui este edifício, é inadmissível.
E que mais?
A outra questão, é que aquilo que na altura se chamava
Regulamento Geral de Edificações Urbanas e que hoje se chama RJUE - Regime
Jurídico de Urbanização e Edificação - dizia que em qualquer edifício onde há
uma ocupação do terreno como era esta que se previa, deveria ser feita uma
vistoria para verificar se essa ocupação afeta ou não os edifícios do lado em
termos de exposição ao sol e em termos de ventilação. Sabe o que dizia essa
vistoria, que eu vi? Diz exatamente isto: ‘fomos ao local, verificámos que o
edifício do lado tem um logradouro (leia-se ‘um jardim’) totalmente permeável e
que portanto este terreno pode ser totalmente impermeabilizado porque o do lado
garante o escoamento das águas da chuva. Nem uma palavra sobre uma parede de 17
metros de altura ao longo de toda a largura, que vai criar uma zona de
ensombramento total ao lote do lado e uma zona de sombra na sinagoga. Outra
questão que foi levantada referia-se ao acerto de empenas e eles afirmam que
fazem um acerto de empenas com o edifício amarelo da Alexandre Herculano. Ora a
empena do edifício da Alexandre Herculano, que é esquinado, está em cima do
logradouro do lote do lado. A menos que vão para cima do lote do lado, não é
possível fazer um acerto de empenas. Outra questão que também levantámos é que
os alçados que eram apresentados, as construções existentes estavam
sobredimensionadas, isto é, eram maiores do que efetivamente existiam de modo a
enquadrar o edifício. Se o edifício tivesse quatro pisos, se tivesse respeitado
a questão dos logradouros e se a lei aplicável na altura fosse cumprida, esta
discussão não existia.
Nada tem sido dito também sobre o outro edifício que lá
estava antes.
O outro edifício que lá estava antes, que curiosamente era
uma das construções mais antigas do Largo do Rato e que o Fórum de Cidadania se
fartou de avisar, foi demolido porque estava obsoleto. Ninguém falou da idade
que ele tinha, da integração que ele tinha.
Não é uma questão apenas de regras do novo edifício.
Não, mas isso faz parte das regras, porque dizia exatamente
que devia ser objeto de uma vistoria prévia e às tantas há uma vistoria, mas
essa vistoria foi tomada como uma mera opinião. E o edifício foi abaixo. A
questão que se prende com o edifício do Largo do Rato é sobretudo uma questão
de violação de regras urbanísticas.
Independentemente de este novo inquérito na Justiça poder ou
não travar a construção do novo edifício do Largo do Rato, já se perdeu património
ao deitar-se abaixo o anterior para agora se estar a avaliar se este cumpre ou
não as regras?
Digo-lhe uma frase de um assessor do presidente Jorge
Sampaio: é um ato nulo de efeitos não anuláveis. O que se vier a construir tem
de seguir as regras e se a câmara não o fez na primeira fase, podia tê-lo
travado na segunda, quando o projeto foi a sessão de câmara no tempo do doutor
António Costa, era eu vereadora. E agora verifico, com enorme surpresa, que a
respeito do edifício do miradouro de Nossa Senhora do Monte, o presidente da
câmara veio garantir que será cumprido o projeto e que não serão afetadas
vistas, não referindo que já existe um PIP aprovado e que é constitutivo de
direito exatamente como acontecia no Largo do Rato, apesar de ser um processo
de licenciamento em que os direitos são os mesmos. E o nosso presidente vem
dizer ‘estejam descansados que aquilo vai cumprir’. Eu não conheço o projeto,
mas parece-me que não cumpre, de acordo com o abaixo-assinado que circula.
Portanto, de acordo com as declarações que o presidente fez, está disposto a
passar por cima de direitos adquiridos.
O que se diz é que do miradouro já não será possível ver
pelo menos o Martim Moniz.
Mas o que o presidente diz é que nada disso vai acontecer e
que portanto vai baixar, com um PIP aprovado. Lá estamos outra vez perante o
mesmo.
Acha que será mais um caso de Justiça, daqui a uns anos?
Não, o que acho é que a CML só deve e pode licenciar coisas
quando tem a certeza de que primeiro todas as normas são cumpridas. Se não
cumpre essa obrigação, das duas uma: ou lesa a cidade porque faz construções
que prejudica a cidade ou lesa o erário publico. E sai do nosso bolso.
Uma das obras que o engenheiro Nunes da Silva criticou, em
entrevista ao “SOL”, foi a expansão do metro. O que acha desse projeto?
Nem eu nem o PSD concordámos. E independentemente das
considerações que o engenheiro Nunes da Silva possa ter feito e do que
anteriormente o vereador Manuel Salgado veio dizer, há factos. E o primeiro
facto é que não há dúvida nenhuma de que há uma estação ao pé do quartel de
bombeiros na Dom Carlos I, não há dúvida nenhuma de que há uma estação a 50
metros de profundidade no hospital da Estrela, não há dúvida nenhuma de que o
metro vai acabar no Aterro da Boa Vista, são factos. E são factos que o metro
poderia ser expandido para outras zonas, como inicialmente se previa para Campo
de Ourique, onde existem populações que estão muito mal servidas de transporte
público. Se é para favorecer este ou aquele, não sei. Mas estrategicamente esta
linha amarela vai desembocar exatamente nas próximas grandes operações
urbanísticas da CML. Cada um conclua aquilo que tem de concluir. E atenção: o
metro anda a 50 metros de profundidade, com uma subida extraordinariamente
perigosa e na margem dos limites de segurança das carruagens de metro. Eu li a
entrevista, vi a resposta do vereador Salgado, mas o que eu gostaria é que ele
explicasse concretamente porque é que o metro sai exatamente ali e porque é que
não foi para sítios mais populosos. Aliás, o presidente da Junta de Freguesia
da Estrela não quer lá o metro nessas condições.
Teve oportunidade de trabalhar com o vereador Manuel
Salgado?
Li alguns processos dele enquanto arquiteto do Risco, mas
nunca trabalhei com o vereador Manuel Salgado. Fui para a Assembleia Municipal,
depois fui para a EPUL e quando pretendi voltar para a CML, nunca mais fui
afeta a nenhum serviço, a não ser agora, quando me colocaram na Direção
Municipal de Cultura, onde gosto muito de estar, mas que de facto para o
Urbanismo isso nunca foi posto. Não me colocaram em lugar nenhum durante três
anos. Desde que fui vereadora nunca mais me foi permitido voltar, mesmo tendo
pedido para regressar ao meu lugar de origem.
Porque é que não lhe é permitido voltar?
Não sei, a verdade é que pedi para regressar ao meu lugar de
origem e estive quase quatro anos afeta ao serviço de pessoal, sem me colocarem
em lugar nenhum da CML. Nenhum. Não tinha nenhum posto de trabalho. Este ano,
decidiram colocar-me na Direção Municipal de Cultura. Fiquei de castigo durante
quatro anos.
Apesar de não ter trabalhado com o vereador Salgado, no seu
percursona CML teve conhecimento de situações menos regulares relacionadas como
vereador?
As situações que têm estado hoje a ser levantadas
passaram-se enquanto eu era vereadora e deputada municipal e foram levantadas.
Nomeadamente em relação ao edifício das Picoas. Em primeiro lugar, é um facto
que o vereador Manuel Salgado quando levou à Assembleia Municipal a alienação
da parte subterrânea da Fontes Pereira de Melo omitiu que aquela parte já
estava ocupada. Levou uma autorização para ocupar a Fontes Pereira de Melo no
subsolo, omitindo que já tinha sido ocupada. E quando foi confrontado disse:
‘Eu fiz um auto de embargo, mandei embargar a obra’. Nós, na comissão de
urbanismo, fomos ver o processo e não havia auto de embargo nenhum. Isto é um
facto, consta nas atas, consta em todo o lado. Chamámos o vereador Manuel
Salgado, que com o diretor municipal disse que o auto de embargo tinha sido
verbal. Aí eu lembrei-o que o Código do Procedimento Administrativo obriga a
que dez dias depois de uma ordem verbal ela seja passada para escrito. E não
constava. Eu nunca vi esse auto de embargo.
Ou seja, o que existiu foi um auto de embargo informal?
Bom, mas explique-me como é que um auto de embargo é um
procedimento informal...
Essas práticas são normais na câmara?
Não só não é normal, como o Código do Procedimento
Administrativo não o permite. É um ato que não existe.
Mas houve mais alguma situação que se recorde relacionada
com esta torre?
Quando isso foi levantado na Assembleia Municipal, entre
outras coisas, nomeadamente a questão das mais valias, a câmara disse que iria
proceder a uma sindicância a todo este processo. Passado uns tempos apareceu o
resultado, que ilibava a fiscalização. Eu em nome do PSD, questionei: ‘Então e
a parte de gestão urbanística? Isso é que eu quero saber: dos autos e da
licença de escavação antes de estar aprovado’. E a câmara comprometeu-se a
pedir um inquérito a uma entidade externa. Mas até hoje... Verifico com
surpresa que quando nos últimos dias o PSD veio insistir nesse relatório que a
câmara tinha prometido e foi chumbado. O que é que uma pessoa normal conclui de
uma situação destas? Não houve auto de embargo, houve uma proposta de venda de
uns terrenos sob um ato que estava consumado e que o senhor vereador omitiu.
Houve uma intenção da câmara de proceder a um inquérito que nunca fez.
Com isso que diz, fica claro que há opacidade dentro da CML.
Se não existe, a câmara deveria ser a primeira a querer
clarificá-lo.
Mas há possibilidade de este procedimento todo que narrou
poder não ser produto de uma instituição onde reina a opacidade?
A lei é para ser cumprida e quando não se cumpre a lei, quem
tem de justificar o não cumprimento é quem entra nesse incumprimento.
Alguma vez estas coisas poderiam acontecer com um cidadão
comum? Ou seja, em processos onde não estão em causa grandes interesses
imobiliários é normal embargos de boca?
O incumprimento da lei é sempre anormal - Dura Lex, Sed Lex.
Nos anos em que estive na câmara nunca vi um auto de embargo que nunca
estivesse escrito, aliás é muito simples, nem podia ver. Porque se o vereador
dá uma ordem para fazer um auto de embargo e ele não consta no processo escrito
como é que eu podia adivinhar que ele existia? Nunca dei com nenhum auto de
embargo informal.
Até porque a fiscalização numa situação dessas não poderá
funcionar...
Não pode, o interessado não pode assinar, nem ser autuado.
Portanto, isto que estou a dizer em relação à Torre das Picoas são factos.
Factos que qualquer análise o comprova.
Quanto ao edifício do Rato disse que se estavam a misturar
questões estéticas com outras. No caso da Torre das Picoas que dimensões estão
em causa, estética, volumetria, o facto de outro proprietário ter tentado fazer
ali um edifício menor e não ter sido aprovado?
Eu acho que as dimensões que estão ali em causa o atual
Plano Diretor Municipal prevê. O Plano Diretor atual, nomeadamente nas quotas
para reabilitação, coloca a utilização das quotas numa discricionariedade muito
grande. Na realidade, essas quotas que fizeram com que o projeto fosse
aumentado depende exclusivamente do critério de quem as aplica. E do meu ponto
de vista o que é mau nesse momento - e isso vê-se em toda a cidade e choca-me -
é que o grau de discricionariedade é extraordinariamente grande, apesar de o
PDM o permitir. Eu vou dar um exemplo: O PDM diz que em Lisboa tudo é para
manter e portanto não se pode demolir nenhum edifício, exceto se se apresentar
um projeto de valoração do local. A questão é: o que é um projeto de valoração
do local? Pode apresentar 20 projetos que acha que são para valoração do local
e a câmara recusá-los sistematicamente sem nunca dizer como é que o há de
fazer.
Quem é que determina em última instância essa valoração hoje
em dia?
A valoração de todos os processos que eu vi está escrita nos
serviços que analisam e muitas vezes em conjunto com o IGESPAR numa única
frase: ‘Entende-se que isto é um projeto de valoração do local’. Ao fim e ao
cabo nenhum lisboeta pode olhar com franqueza para um edifício e saber
exatamente o que lá pode construir. E isso é a pior coisa que pode acontecer...
Mas pode dar um exemplo?
Posso, o de um pequeno edifício da 24 de Julho, que foi
objeto de uma permuta. O edificiozinho por trás tem o Museu Nacional de Arte
Antiga. Os proprietários em 2013/2014 fizeram um pedido de informação prévia em
que perguntavam se podia fazer caves ou deitar abaixo o edifício. A câmara
disse o seguinte: ‘caves nem pensar porque pode afetar a estrutura do Museu,
construções em logradouros também nem pensar’. Assim, o edifício foi posto à
venda, não estou certa mas julgo que por um valor à volta dos 200 mil euros,
tendo sido perguntado à câmara se queria exercer o direito de preferência e a
câmara disse que não. O que é que aconteceu depois? Em 2016 este mesmíssimo
edifício com um parecer assinado exatamente pelos mesmo técnicos permite a
construção de duas caves, e muitas outras coisas, com base na ruína iminente do
edifício, seis meses depois. E sabe mais? Os promotores decidiram vendê-lo e
obrigatoriamente tiveram de perguntar às câmara e a câmara aceitou o direito de
preferência por 857 mil euros. A câmara pagou 857 mil euros, quando seis meses
antes não o quis comprar por cerca de 200 mil euros.
Pelo que descreve trata-se de um caso de polícia?
Eu levantei a questão ao presidente e o que é que ele me
veio dizer? A ruína iminente do edifício. Em seis meses, a menos que aconteça
um drama não se passa a um estado de ruína iminente, se passar por lá o
edifício mantém-se...
E a questão das caves foi alterada e isso a ruína iminente
não deveria ser justificação, ou estou errado?
É, a questão das caves manter-se-ia, tendo em conta o
argumento que utilizaram. Mas eu questionei o facto de a câmara estar a perder
quase 500 mil euros e ainda por cima era uma compra para o Ministério da
Cultura, o que também é outra coisa fantástica...
Mas o que justificaram quando questionou o porquê de a
construção de caves ter deixado de afetar o museu?
Disseram: ‘Ah mas as caves está escrito que têm de ser
seguidas por um engenheiro e por uma pessoa especializada’. O problema é que
todas as caves têm de ser seguidas por um engenheiro e pessoas especializadas,
em Lisboa não é qualquer pedreiro que faz uma cave. Isto é uma situação
inexplicável.
Um proprietário perdeu, a câmara perdeu, mas houve alguém
que ganhou com essas duas perdas.
Vou dizer-lhe: em todos estes casos quem perde sempre é a
câmara, ou seja, nós. Aqui quem perdeu foi a câmara. Na própria Avenida Fontes
Pereira de Melo, independentemente do preço que se der por aquilo, a verdade é
que aquilo compromete qualquer obra que venha a ser feita numa via que é
estruturante e principal. Havia uma disponibilidade numa avenida como essa que
deixou de haver.
Acha que fazia sentido Fernando Nunes da Silva e Manuel
Salgado serem ouvidos devido às declarações de um e de outros, as suspeitas...
Acho que quando há dúvidas deve ser tudo esclarecido, porque
não há nada pior que a dúvida pairar. Ontem vi que o deputado Duarte Cordeiro
se riu imenso, dizendo que eram coisas de há dez anos. Eu não me riria, porque
uma câmara que demora dez anos a esclarecer uma coisa que a maioria das pessoas
põe em dúvida, é o pior que pode acontecer. Quem não deve não teme. O vereador
Manuel Salgado foi ouvido em comissão de urbanismo e disse que ia promover a
sindicância e essa sindicância nunca mais apareceu. Uma pessoa que demora dez
anos a explicar uma coisa é porque não quer explicá-la.
Acha que o edifício das Picoas é um elefante não só na sala
de Manuel Salgado, como também no gabinete de Fernando Medina?
Acho que aquele edifício é um elefante na cidade de Lisboa e
nós vamos ter de o suportar durante as gerações vindouras. Se fosse só no
gabinete de Manuel Salgado e de Fernando Medina eu ficava contentíssima,
infelizmente é um elefante na vida de todos os lisboetas e de todos os que
passarem por ali.
Manuel Salgado na sua opinião tem tanto poder como o
presidente da câmara?
Acho em primeiro lugar que houve um presidente de câmara em
termos de facto e de direito, que foi o atual primeiro-ministro, António Costa.
Quando pôs como número dois um deputado por Viana do Castelo, que não conhecia
Lisboa e não tem nenhuma função de peso dentro do PS, ele sabia-o e por algum
motivo o fez. Isso explica o poder que Manuel Salgado tem neste momento.
O que está a dizer é que António Costa acumula hoje as
funções de primeiro-ministro com as de presidente da câmara municipal de
Lisboa?
Olhe, se não é assim, veja: esta questão do passe não é
fantástica? A questão está levantada e vi incidir sobre Lisboa, que é dos
sítios mais populosos, e sobre o Porto. O presidente da Câmara de Lisboa não
tem qualquer possibilidade de fazer uma proposta dessas, quando isso está
dependente do governo, uma vez que a câmara não gere o metro. Naturalmente que
Fernando Medina não se teria lembrado disso se não tivesse falado com António Costa.
Outra coincidência: o caso Ricardo Robles. No momento em que ele meteu aquele
processo na câmara, a câmara sabia que o processo existia. Curiosamente ele foi
lançado nos jornais numa altura em que o Bloco estava a negociar o Orçamento do
Estado e isso desacreditou o BE. A câmara neste momento tinha uma relação
pacificada com Ricardo Robles, a quem é que interessou o descrédito?
Pergunto-lhe eu a si: a quem foi?
A quem acha que foi? Quem é que neste momento tem o BE tão
cordato? E mais, porque é que a câmara comprou com seu dinheiro um edifício
para secretaria de Estado da Cultura [o da 24 de Julho]? Porquê? Que há uma
situação privilegiada com o governo isso há. Se não há, são muitas
coincidências.
Mas acha que há uma situação de promiscuidade, de confusão
de poderes?
Não sei se é promiscuidade, mas que curiosamente há uma
relação entre a ação e a reação, lá isso há. Chame-lhe o que quiser, isto são
factos. Como são factos as estações do metro virem exatamente para terrenos que
são do Estado e que com isso vão ser privilegiados. Não vi nenhuma ação desta
câmara que pudesse por em causa o atual governo. E, como sabe, os presidentes
de câmaras muitas vezes são obrigados a questionar o governo.
Acha que se está a pessoalizar muito as coisas?
Para mim é irrelevante quem aprova isto ou aquilo, o que
importa é se beneficia os lisboetas. Neste momento, a linha amarela vai ou não
beneficiar certos empreendimentos? Vai, é um facto. E a cidade ganharia ou não
ganharia mais se o metro fosse para outro sítio? Campo de Ourique fica a
perder, Alcântara fica a perder, é um facto. Os efeitos dessas ações fazem-nos
sofrer a todos. Muitas vezes discute-se pessoas, quando o que se tem de
discutir são decisões que nos vão afetar a todos.
Acha que hoje no país há menos oposição?
Subscrevo totalmente a frase de Pérez-Reverte: Há uma
asquerosa tendência para o politicamente correto, que perturba alternativas e
não deixa definir vias diferentes. E eu acho que isso prejudica a democracia. A
existência de caminhos diferentes é o serviço que os partidos prestam à
democracia.
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