Estudantes desalojados e um Governo despreocupado
Não é aceitável que em 2018 uma das principais barreiras na
progressão do ensino secundário para o ensino superior seja o alojamento
“Portugal está na moda, mas não podem ser os portugueses a
pagar essa factura.”
João Pedro Videira
Presidente da Federação Académica do Porto
10 de Outubro de 2018, 7:00
https://www.publico.pt/2018/10/10/p3/cronica/estudante-desalojado-e-um-governo-despreocupado-1846681
Quase no fim de todas as fases do concurso nacional de
acesso, cerca de 45 mil estudantes ingressam no ensino superior. A ânsia e o
nervosismo de outrora, fruto do início de uma nova fase das suas vidas —
principalmente para aqueles que se viam a viver sem os seus pais pela primeira
vez e com uma casa “nova” —, têm hoje outra causa: não conseguirem encontrar um
quarto na cidade onde estudam. Por esse motivo, têm de fazer viagens
infindáveis para voltar às suas casas e assim continuam a viver com os seus
pais.
No Porto, temos 23 mil estudantes deslocados para 1300 camas
disponíveis nas residências dos serviços de Acção Social. Em 2014, um estudante
arrendava um quarto por cerca de 150 euros, muitas das vezes com despesas
(água, luz e gás) incluídas. Volvidos quatro anos, os anúncios têm um preço
médio de 400 euros, sem despesas e muitas das vezes sem recibo e contrato de
arrendamento, o que faz com que o estudante não possa auferir do mísero
complemento de alojamento (caso seja estudante bolseiro) ou então deduzir essa
despesa nas várias sedes elegíveis.
Não é aceitável que em 2018 uma das principais barreiras na
progressão do ensino secundário para o ensino superior seja o alojamento. Fica
ainda mais grave quando o problema está sinalizado há bastante tempo. Todos os
agentes responsáveis, começando numa primeira instância pelo Ministro da
Ciência Tecnologia e Ensino Superior – recorde-se que faz jus ao lema do
Governo “palavra dada, não é palavra honrada” — terminando nas autarquias
locais, teimam em não dar respostas imediatas e não podem negligenciar o seu
papel nesta fase de urgência. Paralelamente a este vazio de acções na vida
real, a situação torna-se cada vez mais insustentável, havendo mesmo estudantes
a dormirem no carro para não perderem aulas.
“Há estudantes que não equacionam sequer ingressar no ensino
superior, ainda que seja um desejo seu e das suas famílias — quando a decisão
recai entre ter um filho no ensino superior ou pagar as contas da casa, a
realidade dita o destino.”
Na falta de soluções, as famílias portuguesas, com salários
médios no fundo das tabelas europeias, não se podem dar ao luxo de pagar preços
por metro quadrado das capitais europeias mais trendy. Portugal está na moda,
mas não podem ser os portugueses a pagar essa factura.
Há estudantes que não equacionam sequer ingressar no ensino
superior, ainda que seja um desejo seu e das suas famílias — quando a decisão
recai entre ter um filho no ensino superior ou pagar as contas da casa, a
realidade dita o destino. Mas também encontramos estudantes a viver em
condições indignas ou mesmo alguns que não abrem mão da sua educação a troco de
terem de pernoitar nos seus carros ou em estações de comboio. Com esta dura
realidade, as nossas soluções — entre elas o aumento do complemento de alojamento
para beneficiários da bolsa de acção social; o benefício fiscal para
arrendatários a estudantes; a abertura às IES para construção em parceria com
entidades privadas de alojamento estudantil — caem em saco roto.
Como forma de protesto e solidariedade com os seus pares,
houve estudantes que dormiram em tendas em frente à reitoria da Universidade do
Porto, no final do mês de Setembro. Infelizmente, temo que seja mesmo esta a
opção para o alojamento estudantil.
EDITORIAL
Estas cidades não são para estudantes
Para estudantes e famílias, à luta pela média suficiente
para chegar à universidade pretendida, soma-se agora o pesadelo da procura de
um local para viver enquanto se estuda.
10 de Outubro de 2018, 6:54
Não vai muito tempo, era presidente da autarquia Rui Rio, e
o Porto queria ser “A cidade da Ciência”. No mercado do marketing territorial,
era um bom slogan tendo em conta o prestígio da universidade como produtora de
conhecimento e a vontade de continuar a captar estudantes para uma cidade onde
abundavam as casas degradadas e o centro se esvaziava de habitantes.
Não foi há muito tempo, mas já parecem ser palavras de outra
era porque, entretanto, a explosão turística mudou radicalmente a cidade e o
singelo convite inserido nesse slogan só pode ser escutado hoje com alguma
amarga ironia. No Porto, como em Lisboa ou em Coimbra e mesmo em Braga ou Faro.
Para estudantes e famílias, à luta pela média suficiente
para chegar à universidade pretendida, soma-se agora o pesadelo da procura de
um local para viver enquanto se estuda. Como mostram hoje as reportagens dos
jornalistas do Público, a escassez de espaços e os elevados preços criam um
entrave objectivo a que muitos possam cumprir o seu ciclo académico em
condições aceitáveis. Num país que continua a precisar de elevar o nível de
formação dos seus cidadãos esta é uma situação a precisar de ser debelada.
Não chega ao Governo anunciar linhas de investimento para a
construção de residências universitárias quando os estudantes de hoje não têm
onde dormir. Deveria haver já um reforço dos apoios a estudantes que lhes
permita custear parte dos elevados preços que são pedidos. Não tem o charme de
uma Web Summit mas é capaz de fazer bem mais pela modernidade do país
As universidades têm de ser mais activas na procura de
investimento em residências universitárias e no estabelecimento de parcerias,
nomeadamente com os municípios circundantes aos grandes centros onde ainda é
possível fintar a pressão do mercado. Não podem é perder tempo com medidas
efabulatórias como “recorrer ao aluguer de quartos a terceiros para
disponibilizar aos estudantes”, como defendeu recentemente o reitor da
Universidade do Porto.
Por fim, as cidades devem olhar para isto como um enorme
desafio ao seu futuro. O turismo é uma grande oportunidade, mas é cegueira
apostar todas as fichas no mesmo número e acreditar que o mercado chega para
resolver tudo. As cidades fazem-se com diversidade, com multiplicidade e
felizes as que podem contar entre os seus activos com um batalhão de
estudantes. É imperativo regular e influenciar para que continue a ser possível
viver decentemente enquanto se tira o diploma.
tp.ocilbup@setnop.divad
Senhorios sem lei, estudantes sem casa: a vida em suspenso
dos universitários
As residências universitárias são insuficientes, arrendar um
quarto é cada vez mais complicado. Preços exorbitantes, más condições,
requisitos ilegais. Fraudes e irregularidades. A angústia e os dramas dos
universitários deslocados
MARIANA CORREIA PINTO 10 de Outubro de 2018, 7:00
Ainda a entrevista não começou e já Daniela Ferreira se antecipa:
“Tenho de apanhar o autocarro daqui a 20 minutos, se não perco o comboio.” E se
perder o comboio que sai de São Bento dali a coisa de uma hora não tem outro
depois. Se perder o comboio, a boleia da estação de Paredes até à casa dos
pais, nos arredores da cidade, fica também comprometida. A vida da estudante de
23 anos é como um dominó de peças alinhadas, debaixo da angústia de um
desajuste. Basta um para que a rotina desabe.
Anda num vaivém diário desde o início do ano lectivo. Um
déjà-vu do sucedido há um ano quando se estreou na Universidade do Porto e na
batalha campal do alojamento universitário. Dessa vez, viu a habitação na
residência universitária ser recusada por “lotação” e só conseguiu arrendar um
quarto meses depois, já o Outono se transformava em Inverno. Partilhava-o com
uma colega de curso e cada uma pagava 187 euros. Não era incomportável. Mas os
problemas com o senhorio rapidamente ganharam volume: as despesas estavam
incluídas no preço, mas a conta da luz nem sempre era paga. Um dia ficaram sem
electricidade em vésperas de um exame.
Sabia que tinha de sair. Em Junho já andava em busca de
outro quarto, a pensar no novo ano lectivo que iniciaria dali a três meses.
Parecia tempo mais do que suficiente para encontrar um espaço. Mas não foi. As
aulas já decorrem e Daniela continua sem casa. Faz viagens diárias até Paredes.
Ao final do dia, são no mínimo duas horas e meia roubadas ao estudo, mais de
uma centena de euros tiradas à carteira dos pais. O que tem encontrado no
mercado imobiliário ora é muito caro ora demasiado mau. Na Avenida da Boavista,
visitou um T0 com cama de casal e cozinha no mesmo sítio, onde tinha de
atravessar uma varanda para chegar à casa de banho, partilhada com vários
hóspedes desconhecidos. Noutra zona, encontrou um quarto por 200 euros, onde a
senhoria lhe pedia que assegurasse a renda de toda a casa e gerisse os restantes
arrendatários. Tudo o resto, ascendia aos 300 e 400 euros. Uma impossibilidade,
diz: “Não posso pagar esses valores.”
Daniela não está no epicentro dos preços impossíveis. Mas
não anda longe disso. De acordo com dados da plataforma Uniplaces, é em Lisboa
que se encontra a renda média de um quarto mais elevada em 2018: são 485 euros
mensais (mais 26 do que no ano anterior). O Porto é a segunda cidade mais cara
para universitários: o valor médio anda nos 407 (mais 24 do que em 2017). E
quem pensa que é coisa de cidades grandes, desengane-se: o valor médio nacional
no primeiro semestre do ano andou nos 451 euros.
Alice Rodrigues trocou Coimbra por Lisboa para terminar o
mestrado em Direito. No centro do país, pagava 200 euros por um quarto, em
Lisboa o melhor que encontrou foi um no Areeiro por 330. Divide o apartamento
com a própria senhoria, sem contrato assinado. E obedece às suas estranhas
leis: se chegar tarde a casa deve tirar os sapatos para não fazer qualquer
ruído, se quer ir à casa de banho de noite é certo que terá sermão na manhã
seguinte. Ligar um aquecedor é proibido e levar alguém a casa está fora de
questão. Alice só tem autorização para se movimentar entre o quarto, a cozinha
e a casa de banho. A sala está interdita.
Há coisa de três meses cansou-se. Voltou aos sites de
imobiliário, à busca permanente. E aumentou o espanto com aquilo que ia vendo.
Ao anúncio de um quarto em Alvalade por 650 euros — quase mais 100 do que o
salário mínimo em Portugal — nem se deu ao trabalho de responder. Encontrou um
por 400 que teria de partilhar com mais três raparigas e onde era proibido ter
visitas. Quartos sem janela viraram “tendência”. Visitou outro, sem mesa na
sala de jantar, apenas na varanda, e com patelas de remédio para ratos
espalhado em todo o lado. 350 euros. A procura continua, mas a esperança é
pouca: "O turismo e alojamento local estão a tornar a vida em Lisboa
insustentável. Estamos a ser escorraçados da cidade."
Os relatos multiplicam-se. Um quarto com varanda e vistas
para a Torre de Belém custa 650 euros. Um T3+1 “excelente para estudantes” por
2500 euros. Um T7 em Coimbra por 250 ou 300 euros por quarto, sem ou com ar
condicionado. Em Aveiro, uma divisão por 380 euros. Em Braga, por 300. Às vezes,
quartos que são “vãos de escadas”. Ao email do P3 chegaram denúncias de
geografias variáveis — alguns não querem revelar o nome verdadeiro, quem aceita
falar não quer ser fotografado. Carolina Malhão, já licenciada em Ciências
Biomédicas e a preparar a candidatura a Medicina no próximo ano, estende o mapa
até ao sul: “Aqui no Algarve as coisas também não estão fáceis.”
Está no sul há cinco anos e já mudou de casa várias vezes.
Na primeira moradia onde viveu, casa enorme dividida em várias, havia 15 pessoas,
com senhoria incluída e gente a viver num anexo no jardim. A 160 euros por mês
a cada uma, sem conta da luz incluída, “é só fazer as contas”: 2400 euros
mensais de rendimento. E as regras eram de gabarito semelhante ao preço: não se
podia tomar banho depois das 22 horas, não se podia convidar ninguém para
jantar. Muito menos para dormir. Noutro apartamento, onde pagava 250 euros por
um quarto, e a utilização da caixa de correio estava interdita, o senhorio era
visita habitual na casa. Um dia, estava Carolina de roupa interior e t-shirt e
ele abriu a porta. Foi a gota de água.
Há tempos, viu um anúncio de uma divisão por 330 euros sem
despesas. Contactou a senhoria. E de resposta recebeu um questionário onde,
entre outras coisas, se pedia que o candidato ao espaço se “descrevesse numa
frase”. Passou a primeira fase. Mas a casa não passou a seguinte. Se Carolina
Malhão, 23 anos, quisesse levar lá alguém durante o dia, uma “visita externa”
como lhe chamava a proprietária, teria de pagar cinco euros. Se quisesse
pernoitar, o preço subia aos 10 euros. No “contrato ilegal”, havia ainda a
indicação de que podia visitar a casa, para verificar a limpeza, duas a três
vezes por semana. No centro de Faro, contou a proprietária a Carolina com toda
a naturalidade, tinha um T2 por 900 euros. O quarto com cama de casal seria
arrendado por 500 euros a duas pessoas — mas casais não eram aceites.
Inês Lopes, natural de Setúbal, costuma dizer que encontrou
“um achado” em Lisboa: são 350 euros por um quarto numa casa com cinco divisões
e seis pessoas. Quando ali foi parar, a mãe ainda tentou regatear o preço. Sem
sucesso. Quando pediu recibo, comunicaram-lhe o que parece ser habitual: nesse
caso eram mais 23%. “Se não quiser temos uma lista de espera enorme: é pegar ou
largar”, avisou o proprietário. Embarcou numa situação de irregularidade por
não ter outra hipótese.
A apenas um ano de terminar o curso de Engenharia Física
Tecnológica, no Técnico de Lisboa, Inês vê-se mergulhada na desesperança. Há
algum tempo que se inscreveu em tudo o que são grupos de arrendamento de casas
e quartos — e isso foi a confirmação de um futuro pendente. “Mesmo depois de
entrar no mercado de trabalho a minha única solução será partilhar casa.
Possivelmente voltar a Setúbal”, lamenta. Chamam-lhe “a inflação”, diz Inês,
mas essa “lei do mercado que se tornou aceitável” deixa todos “desprotegidos”:
“Não há contratos, não há legislação. Isto não pode continuar assim.”
As residências universitárias contam com 13.971 camas — e
isso garante alojamento para apenas 12% dos 113.813 alunos a estudar afastados
de casa. Lisboa, Coimbra e Porto são as regiões com mais carência de oferta,
revelou o diagnóstico do próprio Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino
Superior. No Plano Nacional de Alojamento do Ensino Superior, lançado em Maio,
prevê-se que até 2021 haverá mais duas mil camas disponíveis.
Graça Pacheco foi estudante de Matemática Aplicada na
Universidade do Porto há quase 40 anos. Era uma outra cidade, uma outra
realidade. Teve um lugar numa residência universitária, mas lembra-se bem de
isso já ser poiso apenas para alguns. E de muitos colegas terem problemas para
encontrar casa. A diferença, aponta, “é que não havia tanta ganância”. Palavra
de mãe de três, dois ex-estudantes e uma ainda nas salas de aulas.
Quando há 12 anos a primeira lhe seguiu as pisadas, trocando
Mirandela pelo Porto, encontraram solução na casa de uns familiares. Mas seis
anos depois, quando o irmão do meio se fez caloiro, já não cabiam todos.
Pensaram até em comprar, mas só encontravam “cubículos com condições
miseráveis”. Viraram-se para os quartos, com a ajuda de agências imobiliárias.
“Mostraram-me coisas que me fizeram entrar em pânico só de imaginar os meus
filhos lá dentro”, recorda. “Nem para animais dava, quanto mais para pessoas!
Um cheiro a mofo e humidade impossíveis. Viviam lá dois rapazes, não sei como não
ficavam doentes”. Ela protestou com o agente:
— Não têm vergonha de mostrar isto?
— É aquilo que temos.
A filha mais nova de Graça está agora no terceiro ano de
Medicina na Universidade de Coimbra. Vive num “quarto minúsculo” por 200 euros,
sem despesas. Até surgir algo melhor. Se surgir algo melhor. Graça Pacheco
põe-se a pensar nas “dificuldades que muitos estudantes devem enfrentar” com os
custos impossíveis da habitação. Com os salários mínimos e médios de Portugal,
ter filhos na universidade tornou-se uma equação para a qual a matemática não
vê solução. Serão os senhorios sem leis o início da narrativa dos estudantes
sem futuro?
tp.ocilbup@otniP.anairaM
Sem comentários:
Enviar um comentário