Cais do Sodré tem assistido ao regresso do mau ambiente e da
insalubridade nos últimos meses
Samuel Alemão
Texto
30 Outubro, 2018
Após a acalmia sentida no último par de anos, ouvem-se de
novo queixas relativas à decadência urbana num bairro que conheceu grandes
mudanças na última década. Insegurança, ruído, sujidade, tráfico e consumo de
droga na via pública e vandalismo têm contribuído para uma sensação difusa de
degradação e insalubridade. No jardim do Largo Dom Luís I, cada vez mais gente
dorme ao relento, depois de grandes noitadas. No Largo de São Paulo, o chafariz
passou a ser ponto de confluência de jovens sem ocupação conhecida e que logo
de manhã consomem álcool e estupefacientes. Há quem diga que os problemas se
acentuaram a partir do momento em que fechou o Miradouro de Santa Catarina, em
Julho. Comerciantes, residentes e junta de freguesia pedem mais policiamento.
Os sinais são contraditórios, mas o crescente coro de vozes
descontentes deixa adivinhar uma tendência. “Isto tem piorado bastante,
sobretudo nos últimos seis meses, desde que começaram a fechar o comércio deste
quarteirão”, informa Vítor Barrinhana, gerente do quiosque existente num dos
cantos do Largo de São Paulo, referindo-se ao imóvel delimitado a sul pela Rua
dos Remolares, em breve a ser convertido em empreendimento de luxo. “Temos
assistido aqui ao surgimento de um clima de mau ambiente e de falta de
segurança, com roubos, cenas de pancadaria e tráfico de droga. As coisas
pioram, sobretudo, a partir das seis da tarde, mas é de madrugada que isto fica
mesmo impossível. Há muitos desacatos causados por indivíduos alcoolizados. O
que vale é que temos um segurança”, conta o responsável pelo estabelecimento de
venda de bebidas, parte de uma rede de quiosques espalhados pela cidade.
Apesar do unânime reconhecimento de que a zona do Cais do
Sodré está bem diferente daquilo que foi, durante décadas, tanto pela ampla
reabilitação do espaço público como pela revolução observável na actividade
comercial dos anos mais recentes, começa a ser voz corrente por ali que “as
coisas estão bem piores nos últimos meses”. Tanto que há mesmo quem receie um
retrocesso do profundo processo de reabilitação daquela parte da cidade,
verificado ao longo da última década. “Com o boom turístico, instalou-se outro
tipo de problemas, que têm crescido a um ritmo incessante. As autoridades não estão
a ser capazes de lidar com isto. A polícia nunca aparece, porque diz não ter
meios, e a Câmara de Lisboa e a Junta de Freguesia da Misericórdia parecem não
ter uma estratégia para resolver os problemas desta zona, a começar pela falta
de limpeza”, critica Isabel Sá da Bandeira, presidente da direcção da
associação Aqui Mora Gente.
O Largo de São Paulo é, cada vez mais, um local visto como
"problemático", mesmo durante o dia
É verdade que o próprio processo de mudança do bairro, outrora
associado à “má-vida”, aos marinheiros e à prostituição, foi tudo menos
pacífico, como o atesta o período seguinte à conversão da Rua Nova do Carvalho
na “rua cor-de-rosa”, em Setembro de 2011. A mudança, trazida com a abertura de
alguns estabelecimentos, que rapidamente ficaram na moda, atraiu uma clientela
mais abrangente para alguns dos clássicos bares da zona e insuflou de
vitalidade uma parte da cidade antes vista com desconfiança por quem a olhava
de fora. O Cais do Sodré saía assim da sombra e deixava de ser associado a uma
certa imagem de marginalidade, entrava nos roteiros turísticos e, sobretudo nas
noites de fim-de-semana, passava a ser o local de romaria de milhares de
pessoas. Tantas que, em pouco tempo, se percebeu que aos problemas de sempre se
juntavam outros.
Lixo, barulho e
violência passaram a fazer parte do quotidiano, numa dinâmica negativa que,
estranhamente, parecia contrariar os sinais de regeneração que acompanhavam a
movida, com a abertura de lojas e restaurantes e a regeneração do espaço
público. Deram que falar, nesses primeiros anos da década, as queixas dos
moradores sobre o mau-ambiente e a insegurança – quer os residentes mais
antigos como os mais recentes diziam não conseguir dormir devido ao ruído e
sentir medo de sair à rua. Tanto a Câmara de Lisboa e a Junta de Freguesia da
Misericórdia, como a polícia eram, com frequência, acusadas de nada fazerem
para controlar tal espiral descendente. Passado o sobressalto inicial, e dada a
consistência da abertura de novos negócios, um clima de normalidade parecia,
por fim, instalar-se no último par de anos. “A movimentação em torno da rua
cor-de-rosa acalmou um pouco, porque também passou de moda. As pessoas
cansaram-se da novidade e quem ali vai, sobretudo, são os estrangeiros”, diz
Isabel Sá da Bandeira.
O problema é que, considera a residente e dirigente
associativa, nos últimos seis meses a um ano, nas ruas à volta, se voltou a
intensificar a sensação de insegurança e a percepção difusa de insalubridade –
as quais, na verdade, nunca abandonaram por completo o bairro. Muito do “que se
passa” e contribui para aumentar essa percepção negativa tem por cenários o
Largo de São Paulo e a Praça Dom Luís I. “A sexta-feira é o dia mais crítico,
quando vejo aí mais gente. Mas isto acontece toda a semana, logo às 8h30,
quando chego para abrir a loja, já se vê aí pessoas sentadas a beber e a
consumir outras coisas”, diz Nádia, 26 anos, funcionária da Óptica Central do
Calhariz, referindo-se a uma crescente população de indivíduos jovens que
passam grande parte do dia sentados junto ao chafariz do Largo de São Paulo,
sem ocupação aparente. “O problema é que parece não haver controlo sobre quem
consome álcool, o supermercado aqui ao lado vende cerveja a indivíduos que
passam aí o dia todo embriagados, de garrafa na mão”.
As garrafas partidas
ou deixadas abandonadas no espaço público são visíveis pela zona, tal como
muita sujidade. Mas, ao contrário desta, aquelas representam uma ameaça
concreta à segurança pública. Para Paulo Graça, gerente do café Quatro Estações,
situado mesmo ao lado do quiosque e a poucos metros da óptica, o problema das
garrafas está relacionado com o facto de alguns estabelecimentos as venderem
durante a noite e de haver quem as traga de outros sítios. “Na sexta e no
sábado à noite, é uma vergonha. Anda para aí montes de gente com minis na mão.
E isso tem consequências na sujidade das ruas, que tem aumentado bastante”,
queixa-se, num lamento ouvido com frequência entre moradores e comerciantes.
“Está tudo sujo, porque os funcionários dos restaurantes e dos bares arrastam
os sacos de lixo pela calçada e fica neste estado”, diz Cecília Ferreira, 66
anos, empregada de uma loja de electrodomésticos da Rua de São Paulo, apontando
para o passeio encardido.
Uma opinião partilhada por Ilídio Pereira, 70, funcionário
da sapataria mesmo ao lado. “As ruas estão muito mais porcas, sem dúvida. Há
garrafas por todo o lado e um cheiro a urina permanente. As pessoas vão para os
copos e depois urinam em qualquer lado, mesmo contra as montras e a porta da
minha loja”, conta, salientando que a vida nocturna do Cais do Sodré de outros
tempos, apesar da reputação duvidosa, não apresentava tantos danos colaterais.
“Há outro tipo de fauna que nos procura. E nesse aspecto até lhe posso dizer
que ambiente de rua melhorou. Venda de droga? Por todos os cantos e esquinas
isso acontece”, diz. Algo que passa ao lado de Maria Teresa Vicente, 74, que
atende à porta fechada a clientela da alfaiataria João Bento Vicente, instalada
na Rua dos Remolares desde 1897. Existem outras preocupações. “O nosso
gradeamento é constantemente pintado e grafitado. Mas nós pintamo-lo de novo,
quase todos os dias”, assegura.
Problema recorrente no resto da cidade, a profusão de tags e
de graffiti também ali se faz sentir com intensidade. “Não há uma parede que
não esteja suja. A última limpeza que fizeram foi antes das eleições. Isto vai
ter um custo brutal”, alerta Isabel Sá da Bandeira, do Aqui Mora Gente,
movimento formado há mais de uma década por um conjunto de pessoas que, no
início deste século, viu no Cais do Sodré um local com potencial para habitar e
investir. Muito antes da zona ficar na moda. As mudanças aconteceram,
entretanto, e estão à vista de todos. Mas muitos não resistiram. “Das famílias
que investiram aqui há 15 ou 20 anos, a grande maioria foi-se embora”, informa
a dirigente associativa, sentada numa das esplanadas do Largo de São Paulo, na
manhã de um dia de semana. A poucos metros, sentados no chafariz, jovens vão
bebendo cerveja e fumando ganzas, ouvindo música saída de colunas portáteis.
“Estão aí todo o dia. Mas, à noite, são mais”.
Quem quiser comprar droga sabe que, ali, a vai encontrar com
facilidade. “Os traficantes andam por aqui, sempre a rondar, parecem
predadores. Aliás, há uma máfia organizada que vem ali para rua cor-de-rosa
para roubar os turistas e vender droga. As poucas pessoas que ainda aqui moram
ficam com a vida um pouco constrangida. Há gente com medo. Eu, por exemplo,
evito sair de casa à noite. É um problema grave, se tivermos em conta que a
PSP, sempre que chamada, diz não ter meios”, constata Isabel Sá da Bandeira,
criticando ainda o que considera ser a “aparente falta de estratégia da câmara
e falta de competência da junta” para resolver os muitos problemas da
freguesia, sobretudo ao nível da gestão do espaço público. Entre eles conta-se
um “aumento brutal” do número de sem-abrigo, a que se junta uma população
heterogénea que por ali deambula dia e noite. “No período nocturno, há gente
acampada no jardim da Praça Dom Luís I. Isto não pode continuar, tem de mudar”,
apela.
Nos últimos tempos,
todavia, as alterações verificadas são em sentido contrário ao desejado por
quem ali vive e trabalha. “O que estamos a assistir em toda esta zona é à vida
nocturna a estender-se pelo dia. Há pessoas a beber na rua, logo pela manhã.
Existe insegurança e gente a tentar vender droga. Observa-se também um
crescente número de pessoas a dormir na rua, como na Praça Dom Luís I”,
descreve Nuno Santos, presidente da A Voz do Bairro – Associação de Moradores
de Santa Catarina e Misericórdia, que se tem destacado nos seus cinco anos de vida
– foi criada a 30 de Outubro de 2013 – na luta pela melhoria do ambiente na
zona do Miradouro de Santa Catarina. Tal como sucede com esse local, que desde
Julho passado se encontra encerrado para requalificação, numa decisão camarária
que tem sido muito contestada, também na zona do Cais do Sodré a Voz do Bairro
considera “necessária mais vigilância, mais policiamento”. Mas o défice
operacional da PSP é assunto recorrente, admite Nuno Santos.
O fecho do miradouro de Santa Catarina está, de resto, a ser
visto na zona do Cais do Sodré como uma das possíveis causas para a degradação
sentida nos últimos meses. “Pelo que tenho ouvido, o mau ambiente tem-se
acentuado desde que fecharam o Adamastor”, diz a O Corvo Paulo Graça, do café
Quatro Estações. Uma versão confirmada por Tomás Gomes, 34 anos, gerente do
quiosque existente no Jardim Dom Luís, na Praça Dom Luís I. “Isto está pior,
nos últimos seis meses, caiu muito. E isso aconteceu de forma acentuada desde
que baixou para aqui muita da gente que andava pelo Miradouro de Santa
Catarina. Há sempre indivíduos alcoolizados no jardim, alguns vêm para a
esplanada, importunam os clientes ou vêm para aqui só provocar. Às vezes, tenho
de chamar o segurança do mercado”, diz, referindo-se ao Mercado Time Out, zona
comercial a funcionar no Mercado da Ribeira.
Recentemente, Tomás teve de retirar um indivíduo que,
alcoolizado, veio dançar para o meio da esplanada. “A malta da noite vem para
aí, muitos deles dormem no jardim, onde calha. Mas para o nosso estabelecimento
o período da manhã é aquele em temos mais problemas, é pior do que a noite”,
afirma o gerente do quiosque, para quem a falta de limpeza do espaço público é
outro dos aspectos que muito tem contribuído para o “retrocesso” que considera
estar a pôr em perigo a “evolução dos últimos anos”. “Está sempre tudo muito
sujo”, constata.
A presidente da Junta
de Freguesia da Misericórdia, Carla Madeira (PS), reconhece a existência de perturbações na
qualidade de vida naquela zona, as quais diz serem “consequência da pressão
causada pela grande frequência nocturna”. “As pessoas que andam na noite
concentram-se muito ali e temos verificado que, muitas vezes, essa vivência se
estende pelo dia”, diz, referindo-se ao Largo de São Paulo, cujo chafariz
histórico a junta tem sentido dificuldades em manter limpo de graffiti, devido
aos constantes actos de vandalismo, admite. Mas o vizinho Largo Dom Luís I é
também motivo de preocupação. “Há muita gente que fica por ali. Não estamos a
falar de sem-abrigo, mas sim de pessoas que, por opção ou resultado de consumos
que fazem, acabam a dormir na via pública. Estamos a falar de portugueses, mas
também de estrangeiros, que trazem a sua mochila e ali ficam”, explica a
autarca, reconhecendo a crescente dificuldade de intervenção nestes casos.
“Isto é o resultado dos excessos da noite”, constata.
Carla Madeira lembra,
contudo, que na zona do Cais do Sodré “verificou-se uma grande melhoria, nos
últimos anos”. “O ambiente urbano melhorou muito. Quando assumi funções, em
2013, a zona estava quase em estado de sítio”, afirma, sugerindo que, apesar
dessas notáveis melhorias, aquela área da cidade estará a ser vítima do seu
próprio sucesso. “O problema é que, antigamente, os clientes estavam dentro dos
estabelecimentos a consumir e agora muitos vêm para a rua, o que tem
consequências”, considera a presidente da junta, reafirmando a O Corvo o desejo
antigo de que seja criada legislação proibindo o consumo de álcool na via
pública. Além de defender um aumento do policiamento, Carla Madeira diz ter
expectativas em relação ao anunciado alargamento aquela zona do sistema de
videovigilância, que em 2019 poderá entrar em funcionamento ali, bem como
noutras áreas da cidade. Além disso, considera ter chegado a altura de se fazer
a “avaliação” da aplicação do novo regulamento de horários de funcionamento dos
estabelecimentos nocturnos, em vigor desde Março de 2017.
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