terça-feira, 8 de março de 2016

Viriato Soromenho Marques: “Só um milagre poderá salvar a Europa”


Viriato Soromenho Marques: “Só um milagre poderá salvar a Europa”
ANA SÁ LOPES
07/03/2016 / Jornal I online

Viriato tem dúvidas sobre um acordo de governo que não discutiu uma política face à Europa, a “principal questão doméstica”

José Viriato Soromenho Marques nasceu em Setúbal, a 9 de Dezembro de 1957. Continua a viver em Setúbal. É professor catedrático na Universidade de Lisboa e um dos cérebros mais brilhantes que o país tem. Foi militante ecologista (dirigente do Setúbal Verde e da Quercus) mas nunca quis ser militante de um partido, porque não gosta de ambientes com “excesso de testosterona” que lhe travem o pensamento crítico em favor da lealdade partidária. Esta semana vai apresentar o livro de António José Seguro – a tese de mestrado que o ex-secretário-geral do PS concluiu quando já tinha sido derrotado no partido depois daquilo a que Viriato chamou “a guerra civil”.

Uma conversa com Viriato Soromenho Marques é um murro na cabeça para quem, como tantos de nós, se sente mais confortável com o processo de negação coletiva que atinge o país e a Europa.

Antigamente as pessoas dividiam-se entre europeístas e eurocéticos. Sempre foi um europeísta, mas parece cada vez mais eurocético...

Não me situo nessa dicotomia. Para mim, o federalismo europeu surgiu sempre como uma escolha estratégica e racional que iria favorecer o futuro dos milhões de pessoas que vivem na União Europeia. Nunca tive uma visão excessivamente positiva ou mitológica da Europa como portadora de um destino especial, como muitos europeístas têm. Conheço demasiado a história da Europa para ter essa visão. Quando percebemos que nos últimos 100 anos a grande força de instabilidade do sistema mundial foi a Europa e que os maiores crimes contra a Humanidade foram cometidos na Europa não é possível ter uma boa consciência, a não ser que seja uma consciência com alguma falta de informação. Simplesmente, a vida é como é, as coisas são como são e cada geração tem direito a viver para lá do peso das memórias. Sempre pensei que para a minha geração a Europa seria claramente o quadro de referência. O que teríamos de fazer como europeus era construir uma casa política onde pudéssemos viver com as nossas diferenças, com os nossos pontos de contacto, com as nossas assimetrias, com as nossas desigualdades. Para mim o projeto europeu sempre foi um projeto que seria federal ou não seria, como infelizmente está a acontecer. O euroceticismo dominante é uma atitude negativa, intelectualmente muito rígida, muito dogmática, que parte de um princípio quase antropológico de que os europeus não têm emenda. A realidade está a dar alguma razão aos eurocéticos. Acho a dicotomia errada mas sou o primeiro a reconhecer que, no momento em que estamos a falar, vivemos uma situação muitíssimo complexa em que existe também uma euforia da negação. Numa análise desapaixonada da realidade temos que reconhecer que nunca a União Europeia esteve tão ameaçada. Neste momento não é apenas a União Monetária que está em causa. Está tudo em causa! E se analisarmos os discursos políticos de quem toma decisões vemos que há uma incapacidade de traduzir, na palavra, este estado de coisas. Há um impulso para a negação.

Há um denial coletivo?

Há um denial coletivo que se encontra no senhor Juncker, no Draghi, nos principais líderes europeus, na Alemanha. E na Alemanha já não falo na senhora Merkel, que neste momento está numa situação totalmente defensiva. Mas um dos políticos europeus mais frívolos, David Cameron, caminha em cima de um campo de minas alegremente. Certamente porque não percebe que está em cima de um campo de minas.

Acha mesmo que há uma possibilidade real do Reino Unido sair da Europa?

O meu palpite é o de que o Brexit, in extremis, não acontecerá.

Mesmo com o Boris Johnson a apoiar a saída da União?

Sim, mas chamo a atenção que muitos analistas que respeito muito, como Wolfgang Munchau, dizem que ninguém pode ter qualquer certeza racional. Portanto, eu estou a falar de fé. É um palpite. O debate sobre o Brexit vai ser o debate típico europeu dos últimos cinco, seis anos: é o debate sobre o medo. Ver qual o partido que mete mais medo aos eleitores.

Mas os banqueiros da City estão assustados...

O medo é muito palpável. Quando foi o referendo da Escócia percebia-se que havia uma dimensão de medo, de pânico, e foi esse pânico e esse medo que levou a Escócia, contra a vontade dos escoceses – quem conhece bem a Escócia sabe que os escoceses querem separar-se do Reino Unido – a votar contra a independência. As pessoas votam também a pensar na sua qualidade de vida, nas suas expetativas de estabilidade económica. Vamos ter toda a imprensa económica, todas as entidades internacionais a fazer pressão e o próprio Cameron a fazer campanha pela permanência. Mas continua a haver um risco real. Cameron, primeiro, diz que a Europa é uma ameaça para o Reino Unido, e depois de simular que conseguiu o que queria vem dizer que o Reino Unido está melhor dentro da Europa. Há um limite para a paciência do eleitor que, mesmo pouco esclarecido, percebe certas coisas. E percebe a incoerência do discurso. Se isto for combinado com uma ideia – que seria falsa – de que a vaga de refugiados seria uma responsabilidade da União Europeia, isto pode levar a resultados absolutamente perversos. Estamos a chegar a uma situação em que temos que ter a humildade de reconhecer que, provavelmente, vamos a caminho de uma singularidade. Temos a União Monetária que continua desconcertada, o Brexit, o Grexit, a Marine Le Pen e a possibilidade de um acontecimento sistémico no sistema financeiro. O Deustche Bank perdeu 40% em bolsa, o sistema bancário europeu perdeu 20% na entrada do ano. O Deustsche Bank não é um banco só alemão, é um banco com repercussões mundiais. A exposição que o Deustche Bank tem aos produtos derivados, aos produtos tóxicos, é astronómica. Evidentemente que um banco só entra em falência, tal como um Estado, quando deixa de cumprir as suas obrigações. Mas o Deustche Bank tem sido alimentado por esta crise! Pela ilusão que os europeus têm de que a Alemanha é um país muito sólido!

A crise de 2008 foi devastadora. Achas que podemos estar na iminência de uma crise ainda pior?

Há analistas do setor financeiro que dizem que em termos de impacto no sistema global o Lehman Brothers corresponde a um 1/5 do Deustche Bank. A questão fundamental é que não criámos nada desde 2008 nem na Europa nem fora da Europa que seja capaz de criar qualquer espécie de resposta a uma crise.

Não se aprendeu nada com a crise de 2008?

Rigorosamente nada. Os analistas têm considerado que o que aconteceu no Deustche Bank é uma reacção à entrada em vigor da União Bancária... A União Bancária o que faz é copiar mal, pessimamente, alguma coisa que qualquer união monetária séria deveria ter. Uma união monetária que implica circulação de trabalhadores e capital tem que ter um sistema de seguro para os bancos. Uma das coisas que mais pena me dá é perceber que esta crise europeia também é uma crise de inteligência, de formação, de incompetência. A nossa crise europeia combina uma visão ideológica – que geralmente é uma visão sempre pobre porque a ideologia substitui o pensamento crítico – com incompetência técnica. Ou seja, peritos, experts, pessoas formadas que deveriam acompanhar os decisores políticos não tinham capacidade para o fazer e deram receitas totalmente erradas. E depois a frivolidade política. As pessoas andam na política para ganharem as eleições, para se manterem no poder e o interesse público é a última coisa que aparece na agenda.

E isso aconteceu em todos os países europeus?

Será dramático se viermos, daqui a um ano, a ter saudades da senhora Merkel. Mas isso pode acontecer perfeitamente! E não há ninguém mais frívolo que o senhor Hollande, que só depois dos atentados terroristas. É um homem cuja popularidade depende dos atentados à segurança das franceses. Numa situação normal, Hollande está sempre abaixo da linha de água.

Há quem diga que Sarkozy fazia mais frente à senhora Merkel...

Sarkozy, apesar de tudo, penso que e noutro campeonato. É um homem muito perigoso. Não nos podemos esquecer que Sarkozy é um dos pais da crise dos refugiados, na medida em que, deliberadamente, foi o patrocinador da destruição da Líbia. Fez um crime contra a Humanidade, que foi destruir um Estado sob o pretexto de retirar de lá um ditador. Agora, veja-se o que está lá. A Líbia, hoje, é o Mad Max. Uma pessoa que vá à Líbia hoje pode levar um tiro, pode ser violada, pode ser raptada. Aquilo é o feudalismo dos petro-dólares e dos grupos terroristas. Nós, europeus, só podemos ter vergonha! A aviação da NATO, a pedido da Grã-Bretanha e da França, andou durante sete meses a bombardear as tropas do Kadhafi. A maior aliança militar do mundo participou numa guerra em que grupos terroristas ganharam!

Mas fala-se como se isso não tivesse acontecido...

Como se não tivesse acontecido! Aliás, não há culpa, ninguém faz autocrítica. Só não estamos piores em relação à Síria devido ao parlamento britânico. Em Setembro de 2013 esse jovem frívolo chamado David Cameron propôs que a campanha de bombardeamentos que foi usada dois anos antes contra Kadhafi fosse usada contra Assad! E houve um grupo de 30 e tal deputados conservadores que disse “não”. E felizmente a coisa não aconteceu. Senão o Estado Islâmico teria tomado conta da Síria toda!

Acha que Assad é mesmo assim um tampão?

Do ponto de vista meramente egoísta europeu, Assad tem assegurado a defesa das comunidades religiosas cristãs. E há outra coisa muita estranha: o silêncio sobre o massacre de milhares e milhares de cristãos nos países que o terrorismo vai ocupando devido aos erros do Ocidente. Temos a destruição de comunidades que estavam há séculos... O regime de Saddam Hussein protegia os cristãos. Saddam tinha um ministro dos Negócios Estrangeiros, o Tarek Aziz, que era um cristão iraquiano. Hoje, em dia não há cristãos no Iraque. Haverá cristãos escondidos ou exilados.

Portanto, o Ocidente é o culpado da ascensão do Estado Islâmico?

Mas absolutamente! Tudo isto é uma história trágica que começa com uma resposta errada ao 11 de Setembro. Uma resposta que provocou o agravar da situação. Na altura do 11 de Setembro escrevi que os Estados Unidos tinham todo o direito de intervir no Afeganistão na medida em que os talibãs e a al-Qaeda estavam sedeados no Afeganistão. Mas a legitimidade terminava aí. O ataque ao Iraque é completamente senil! Nem sei como em Portugal tanta gente o apoiou.

Teve o apoio de Durão Barroso, de metade do nosso país, de Tony Blair, de vários países europeus...

É impressionante. Mas uma multidão pode aplaudir uma coisa errada e essa coisa continua a ser errada independentemente da multidão a apoiar.

Mas não houve qualquer autocrítica...

Isso é uma coisa que me deixa desgostoso relativamente a uma ética pública. Hoje em dia não temos a obrigação de termos um código de moralidade universal porque vivemos numa sociedade que é, do ponto de vista axiológico, do ponto de vista dos valores, bastante fragmentada. Não temos hoje uma derivação cristã na moral universal, não temos uma ética kantiana universal baseada nos princípios... Hoje, no fundo, a ética mais dominante é uma ética utilitarista e essa ética utilitarista permite, ela própria, muitos cálculos relacionados com o benefício e a utilidade para cada um dos sujeitos. Acaba por ser o utilitarismo que convida a uma certa anomia moral, ou seja, uma ausência de lei moral. No entanto, a ética pública deveria ser garantida nas profissões e sobretudo na actividade pública.

E temos a União Europeia ameaçada

Temos um projecto europeu ameaçado por um conjunto de forças mais complexas. Já falámos do Brexit, temos o Grexit. Temos Schengen, temos a Marine Le Pen...

Estamos a dias de ver acabar a liberdade de circulação europeia?

Se cada um destes problemas fosse o único que a Europa tivesse já seria grande. Mas tudo isto é muito difícil. Só um milagre é que nos poderá salvar, qualquer coisa de inesperado.

Só um milagre poderá salvar a Europa?

Só um milagre poderá salvar a Europa. A posição alemã é confrangedora. Vemos as pessoas agarradas a uma visão que demonstrou estar errada. O diagnóstico desta crise, a da crise das dívidas soberanas, é completamente patético. Quando verificamos que por cada euro que foi colocado nos resgates dos países tivemos mais de 10 euros dados ao sistema financeiro! É a mesma coisa que o Bush a decidir: 19 terroristas no 11 de Setembro, 17 das quais da Arábia Saudita, vamos atacar o Iraque! Não se iria atacar um país amigo, o país que financia quase todos os congressistas nos Estados Unidos, a Arábia Saudita!

Não quero fazer de um cientista político um astrólogo. Mas a Europa aguenta-se então até quanto?

Julgo que estamos num terreno de grande incerteza. Não se podem fazer previsões nem prognósticos. Dado que não resolvemos as crises antigas e acumulámos novas – e existe uma mudança de perfil económico na China, que também é importante para nós, a mudança da política americana – é provável que já tenhamos passado o ponto de não-retorno. Isto é, aquele ponto em que, como estávamos em 2014, ainda teríamos tempo para encontrar uma solução engenhosa que pudesse evitar o abismo. E que caso ele acontecesse, tivessemos uma resposta. Mas neste momento a Europa é um navio sacudido e amotinado e há uma tempestade no exterior. Qual vai ser a singularidade: o Brexit? O Deustche Bank? Os refugiados? Acho que vamos ter um acontecimento, um cisne negro. Mas depende da dimensão que vai ter. Pode ser um cisne negro de tal forma poderoso que desencadeia um processo sistémico de implosão. Penso que isso aconteceria com uma nova crise do sistema financeiro, que criasse um pânico global. Qualquer crise europeia vai ser sempre uma crise mundial. A Europa continua a ser a principal ameaça à estabilidade mundial, como em 1914 e em 1939. Não é o Daesh, não é a China. Nós somos o centro do furacão. Se a União Europeia se desmoronar as ondas sísmicas vão sentir-se em todo o mundo. Imagine-se o que é a União Monetária implodir, os países regressarem às suas moedas nacionais. O que vai acontecer aos banqueiros centrais em Tóquio, em Moscovo, em Washington que têm centenas de milhares de milhões de euros? Infelizmente somos demasiados grandes na Europa para que a coisa passe despercebida. O que pode acontecer, e é a minha esperança, é que a visão do abismo permita uma iluminação no sentido de evitar o pior.

E temos dirigentes para isso?

Essa é que é a questão. Em qualquer dos casos também podemos dizer o seguinte: há muitas forma de cair. Quando os aviões caem alguns têm sobreviventes. Nós, como país, temos que estar preparados para a queda. Portugal que estar preparado para a queda. Não se deve colocar a jeito. Não gostei da forma como este governo andou durante várias semanas a dizer que estava tudo bem quando a nossa dívida pública estava nos 4%. Não é assim que vamos longe.

Vai apresentar o livro do ex-líder do PS António José Seguro esta semana...

É um livro muito interessante, academicamente muito bem feito, um trabalho muito sério. E é curioso verificar que a reforma do parlamento que ele liderou de alguma forma antecipa um bocadinho esta situação de haver um parlamento, pela primeira vez na III República, no centro da vida política.

Seguro era um líder sério, que foi injustiçado?

Max Weber dizia uma coisa em que penso sempre: “Quem quiser salvar a sua alma vota nas eleições mas não se mete na política”. O que parece em relação ao que aconteceu na guerra civil no PS, como eu lhe chamei, foi uma vontade de poder. Penso que não foi uma reacção espontânea a um resultado eleitoral que ainda por cima foi uma vitória. Havia já uma estratégia de tomada de poder. Para quem, como eu, desde miúdo nunca mais me envolvi na política partidária, porque não gosto de ambientes onde haja demasiado suor nem demasiada testosterona à minha volta, foi um espetáculo lamentável.

Porque é que nunca entrou na vida política? Foi mesmo só por não gostar de ambientes com excesso
de testosterona?

De alguma forma, aquilo que eu faço como professor, autor, comentador, é um trabalho político. É muito importante ter pessoas que obedecem a um código fundamental que é o de serem capazes de pensar contra as suas convicções. É uma coisa que pouca gente aceita, lendo os comentários aos meus artigos, quer à direita, quer à esquerda. As pessoas acham que a verdade tem que ser leal, que há uma verdade de esquerda e uma verdade de direita. Eu penso que não. É fundamental termos a capacidade de respeitarmos os factos, a verdade factual. E a partir do momento em que eu envergasse um uniforme é evidente que isso não seria possível. Quando estamos na guerra lutamos pelo nosso exército, pelo nosso lado.

Quer continuar a poder ser fiel ao seu pensamento?

Fiel à capacidade de dizer “enganei-me”. Ou, apesar da minha simpatia ser de esquerda, poder dizer “a esquerda está a seguir um caminho errado” ou um partido de direita está a dizer uma coisa que faz sentido.

Também há uma grande crise da esquerda... Apesar da euforia com o orçamento à esquerda ele mantém a austeridade...

Exactamente. Como é possível este governo ter uma perspectiva de sustentabilidade séria quando em relação à questão fundamental que é a de “como nos vamos conduzir em relação à política europeia”, que é a grande questão política doméstica, não existe consenso! E nem sequer houve discussão!

O Bloco e o PCP aceitaram que o PS cumpra os compromissos europeus...

O que também é uma ironia. Se saíssemos agora do procedimento por défice excessivo, a partir de 2019 entrávamos num terreno de redução absoluta de dívida pública, de 5% ao ano. O país começava a partir-se! Isto é impossível. Só com uma guerra civil ou pondo as pessoas a pão e água. Infelizmente estamos numa altura em que a diferença entre mentira e verdade é muito ténue. A política utiliza as representações não com o seu valor de verdade mas com o seu valor de funcionalidade. É funcional simular que se acredita nisto, mesmo que não se acredite. Mas António Costa é um génio. Do ponto de vista tático, da luta corpo a corpo, não há ninguém como ele. Mas nós precisamos só de pugilistas? Nós precisamos de mais qualquer coisa. Mas o país está numa situação tão complicada que temos não só de desejar boa sorte ao governo como deveremos apelar a que os partidos centrais do sistema percebam a delicadeza do momento em que estamos. Há uma parte da direita que julga ainda que o tempo volta para trás. Estou convencido que Passos Coelho ainda acredita que pode regressar aos ombros do novo resgate, como em 2011!

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