Também
tu, Maria Luís?
José Manuel
Fernandes
6/3/2016, OBSERVADOR
O problema com Maria
Luís Albuquerque não é legal, porventura nem é ético. O problema
é político, pois em política o que parece, é. E, em tempos
difíceis, parece mal e promíscuo. Isso não tem desculpa
É verdade: tudo
indica que, como disse Passos Coelho, Maria Luís Albuquerque “não
infringiu a lei” ao aceitar o convite para ser administradora não
executiva da financeira britânica Arrow Global.
É verdade, mas
lamento: não é isso que me interessa. O argumento de Pedro Passos
Coelho pode interpretar bem a lei, mas erra em dois pontos que me
parecem cruciais.
O primeiro, é que,
ao contrário do que em tempos defendeu um outro ex-ministro das
Finanças, Pina Moura, a ética não é a lei. A ética é muito mais
exigente que a lei e assim deve continuar a ser. No dia em que
quisermos prever na lei todos dilemas éticos estaremos a criar uma
sociedade em que o livre arbítrio deixará de fazer sentido. Ninguém
o deve desejar.
O segundo, é que
nunca se deve esquecer a ideia, várias vezes sublinhada por Salazar,
de que “em política, o que parece é”. Por isso o comportamento
da ex-ministra das Finanças pode ser legal, nem discuto; admito
mesmo que não viole nenhum princípio ético, se se comprovar a
pertinência do esclarecimento entretanto divulgado pela empresa; mas
tudo isto não chega para iludir o essencial, e esse essencial é que
“parece muito mal” uma ex-ministra aceitar, menos de três meses
passados sobre a sua saída do governo, um lugar numa empresa
financeira que gere dívidas. Isso mesmo: dívidas.
Eu sei que há
situações muito mais nebulosas, para não dizer muito mais
duvidosas, naquele mesmo Parlamento. Suspeito até que a relativa
moderação com que o PS reagiu à notícia deriva de conhecer os
seus telhados de vidro. Mais: também sei que bem mais complicado do
que estar na administração de uma empresa é dividir o seu tempo
entre o Parlamento e os escritórios de advogados por onde passam os
grandes negócios do país (há suficientes dados no livro de Gustavo
Sampaio Os Facilitadores para termos uma ideia do que se passa nesses
corredores). Ao menos o caso de Maria Luís é mais transparente.
Ainda sei mais
coisas. Sei, por exemplo, que os nossos políticos e governantes (ao
contrário de muitos dos administradores de empresas públicas) são
relativamente mal pagos. Ao olhos de muitos portugueses ganham muito,
porque em Portugal a maior parte dos salários são muito baixos, mas
isso não impede que ganhem pouco quando pensamos nas
responsabilidades que têm. Este é um dos tabus do nossos sistema
político, e um dos motivos pelo qual é muitas vezes melhor ser
ex-ministro do que continuar a ocupar funções políticas.
Podia continuar por
aqui adiante, e muito do que escreveria seria visto como atenuantes
capazes de ajudar a perceber a opção de Maria Luís Albuquerque.
Por isso mesmo não sigo esse caminho: a ex-ministra das Finanças
não só fez mal, como se auto-condenou à irrelevância como
deputada eleita pelos portugueses. Eu, que não compreendi porque se
manteve na última fila da sua bancada durante a importante discussão
do Orçamento, suspeito que agora não vai sair de lá por muito
tempo. O que significa que não será apenas Maria Luís a ser
penalizada pelo seu passo errado – serão também o seu partido e
os eleitores que representa e nela confiaram.
É injusto e
excessivo? Porventura. Mas a política é cruel. Pior: a política é
um campo minado especialmente perigoso nos dias que correm.
E assim chegamos ao
que realmente se inquieta: a opção de Maria Luís facilita a vida a
todos os que, na política e no espaço público, vestem a pele de
justiceiros e exploram a menor oportunidade para lançar campanhas
populistas. E não estou a falar dos Marinhos e Pintos ou dos Paulos
Morais desta vida, que esses são principiantes: estou a falar dos
campeões da demagogia fácil e preconceituosa, isto é, do Bloco de
Esquerda.
Este foi um brinde
que as Catarinas e as Mortáguas não podiam deixar de abocanhar. Com
insinuações sobre factos inexistentes? Isso é-lhes indiferente,
pois apenas exploram a suspeita (feita certeza no pelourinho das
redes sociais) de que políticos e banqueiros estão todos feitos uns
com os outros. Com chicana política? A oportunidade é óbvia, pois
já estava à vista de todos que a comissão de inquérito ao Banif
vai ser um longo comício político, bem diferente do que foi a
comissão do caso BES.
Os tempos que
vivemos são difíceis para os políticos responsáveis e moderados,
pois a crise abriu espaço aos políticos de protesto, mesmo quando
estes se mascaram de políticos preocupados com a governação. Pior
ainda: os sucessivos escândalos (e os casos de gestão ruinosa) no
sector financeiro aconselham a que se mantenham distâncias, sob pena
de qualquer proximidade ser explorada por todos os que, na verdade,
preferiram que não houvesse nem bancos, nem políticos com opiniões
diferentes das suas.
Nestes tempos
difíceis ainda é mais verdadeira outra velha máxima: à mulher de
César não basta ser séria, tem de parecer séria. É por isso que
não discuto a seriedade de Maria Luís, pois nada me leva a duvidar
da sua rectidão ou que de algum modo tenha tenha beneficiado os seus
novos patrões – o que condeno é não ter percebido o peso que
hoje cai sobre os ombros dos políticos.
Caso ainda tenham
dúvidas de que assim é, olhem aqui para o lado para Espanha, vejam
a arrogância (e o sucesso) do Podemos e tenham medo. É que essa
arrogância cresceu muito à conta de os eleitores terem perdido o
respeito pelos políticos – e Maria Luís Albuquerque, mesmo
podendo ter agido no quadro da lei, mesmo podendo não ter qualquer
conflito ético ao aceitar o cargo que aceitou, não se deu ao
respeito. Pelo contrário: deu o flanco a todos os que andam de casa
em casa em busca de novas vítimas para os seus “autos de fé”.
São estes os tempos
que vivemos, tempos perigosos. Daí que, como César nas escadarias
do Senado, só me ocorra lamentar: “Também tu, Maris Luís?”
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