O
fecho iminente da drogaria Pereira Leão, na Rua da Prata, marcado
para o último dia do mês, tem levado ali muita gente. As montras
anunciam promoções. No interior, até há uma antiga colecção de
frascos de fragrâncias. Mas, na verdade, o ar que ali se respira é
mais o de uma elegia por uma certa Lisboa que se apaga. O prédio vai
para obras, tendo como destino a conversão em mais um hotel. Nos
últimos dias, muitos têm sido os que ali vão numa espécie de
turismo de mais uma “vítima do turismo”. “É como ir a um
velório”, confessa uma das clientes.
Texto: Samuel
Alemão / O CORVO /
http://ocorvo.pt/2016/03/30/encerramento-de-drogaria-historica-da-baixa-leva-a-romaria-nos-ultimos-dias/
“Isto tem 40% de
desconto?”, pergunta uma mulher, segurando um pincel de barbear que
aproxima do rosto para observar com maior detalhe. “Sim, nessa
prateleira, os produtos expostos são todos a 40%”, informa a
funcionária, com uma paciência perene. À volta, gente entrava e
saía, contemplava, mexia, perguntava sobre os despojos do inventário
da centenária drogaria S. Pereira Leão, que deverá encerrar a
actividade nesta quinta-feira (31 de março). O prédio onde está
instalada, no 223 da Rua da Prata, vai para obras, que o
transformarão em mais uma unidade hoteleira no coração de Lisboa.
Ontem, o tom geral dentro desta loja fundada há pouco mais de um
século era de uma melancolia conformada.
Mesmo admitindo não
serem clientes habituais, os que franqueavam a porta confessavam
tristeza pelo iminente encerramento. Estavam ali como que num acto de
solidariedade. Mas também a testemunhar o fim de uma era que se
esvai a ritmo acelerado. “É raro vir para aqui para esta zona,
mas, como li no Diário de Notícias que a loja ia fechar na
quinta-feira, pensei ‘já agora, vou lá ver’”, diz ao Corvo
José Oliveira, 60 anos, homem de pose discreta e mala com documentos
numa das mãos. Frente aos produtos em promoção expostos em cima do
balcão, denota alguma indecisão. “Gostava de levar qualquer
coisa, mas não um produto que se gaste, queria algo que durasse”,
diz.
Para este potencial
cliente de última hora, é pena que se tenha chegado a tal situação.
Utilizador confesso do comércio tradicional, considera que não
havia necessidade de se chegar a esta situação. “O prédio podia
ir para obras, na mesma, faziam o hotel no andar de cima e mantinham
o estabelecimento no rés-do-chão, como está”, sugere, criticando
o que vê como uma alteração dramática do perfil comercial da
Baixa, apontado agora à captação de receitas do crescente número
de turistas que chegam a Lisboa. “É uma coisa que podia ser
evitada”, considera
O mesmo pensa Filipa
Pereira, 28 anos, que ali estava com uns amigos. Quiseram vir após
terem lido a notícia do encerramento. “Parece mal o que lhe vou
dizer, mas sinto-me como se tivesse vindo a um velório. Isto é uma
coisa que sufoca”, desabafa. Habitante na zona da Graça, Filipa
Pereira diz-se cliente habitual do pequeno comércio – “é onde
faço as minhas compras, sempre que posso” – e confessa-se
preocupada com a vaga de encerramentos de estabelecimentos
tradicionais que sucede um pouco por toda a capital, sobretudo nos
bairros históricos como a Baixa.
“Isto está a
descaracterizar imenso a cidade”, considera, antes de revelar que
poderá sair dali com um dos belíssimos frascos de essência
relevados, nos últimos dias, pelos donos da drogaria. Expostos em
cima de um balcão de madeira situado atrás do balcão principal,
eram eles que atraiam mais atenções de quem entrava. “Uma
descoberta arqueológica”, graceja Jonas Leão, 27, filho da
proprietária, que antes havia dito a uns eventuais clientes: “É
aproveitar agora, antes que venha a ASAE”. Ao Corvo, Jonas explica
que tais vasilhas de vidro têm mesmo de ser vendidas, “para pagar
aos funcionários e aos fornecedores”.
Entre eles está
Dina, 62 anos. Funcionária da casa há 47 anos, tenta conter o peso
das emoções, atrás da sua impecável maquilhagem. “Vim para aqui
fazer os 14. Como calcula, isto para mim não é só um emprego. É
muito amor, muito trabalho, muita entrega. É uma vida”, resume,
antes de dar atenção a um cliente. Sobre este interesse súbito das
pessoas em entrar na loja, Dina não faz por o romantizar. “Sabe, é
óptimo ver aqui as pessoas neste dias. Mas há aqui muita fumaça.
Muita gente entra, vê, mas não compra. Nós sempre tivemos uma
clientela muito fixa”, diz. Sobre o seu futuro não guarda ilusões.
“Não vou arranjar trabalho. Então, se a juventude não arranja…”.
Conformada também
estava Maria Fernanda Silva, 69 anos, a gerente do estabelecimento.
Ontem, dividia o seu tempo entre as solicitações da clientela, o
telefone a tocar incessante e a necessidade de atenção por parte
dos jornalistas que ali acorreram a traçar o epitáfio desta
drogaria que conserva o mobiliário em madeira – o qual lhe confere
o travo vintage tão ao gosto dos tempos correntes, mas cujo destino
é ainda incerto. “É uma tristeza enorme, claro. Para mim, isto
foi mais que uma casa”, assente. A necessidade de remodelação do
edifício associada aos planos imobiliários desenhados pelo senhorio
tornaram o fim numa inevitabilidade, admite.
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