OPINIÃO
A
pele de Cavaco e os milagres de Marcelo
ALEXANDRA LUCAS
COELHO 13/03/2016 - PÚBLICO
Portugal,
que não é um fado, continua a viver com a ilusão dos eleitos
1. Portugal largou
Cavaco como se mudasse de pele. Nenhuma transição desde o fim da
ditadura gerou este alívio, quase uma libertação nacional. Marcelo
tomou posse do momento, impaciente de optimismo e ecumenismo:
apaziguar, unir, sorrir, curar. Descendo a minha rua, vi lágrimas no
meio do povo, aos pés da Assembleia. No item empatia, foi a passagem
do zero para a maioria absoluta. E aí vai Portugal para a Primavera
de 2016, cheio de fé renovada.
2. Fé em cima de
amnésia, toda uma tendência. Portugal erra entre aquilo que larga e
aquilo a que se agarra, de qualquer das formas sem pensar muito. Um
exemplo daquilo a que se agarra é a aventura épica dos séculos
XV-XVI. Um exemplo do que larga é a violência ainda encoberta do
Império. As navegações não deixam de ser épicas porque o Império
foi violento e vice-versa, os prismas têm várias faces, mas
Portugal teme que um ângulo anule o outro, então tapa um e mitifica
o outro, em glorificações não apenas ultrapassadas, tendo em conta
o que é hoje o conhecimento histórico, como sobretudo sem coragem.
Celebrar os Descobrimentos será um suplemento de ânimo sempre à
mão; já ir ao fundo do que foi o Império implica enfrentar o que
os portugueses também foram/são, ou afinal não. Eis o que o
discurso oficial continua a falhar, nas escolas, na política,
perante os países de língua portuguesa e a vocação universal de
que falou Marcelo.
3. O presente faz e
refaz a História, para a frente, para trás. Seremos fontes da
história futura, que resultará da forma como Cavaco for pensado
agora, do que estes 10, aliás, 20, aliás, 36 anos dizem sobre
Portugal. Cavaco foi ministro, primeiro-ministro e presidente com
milhões de votos em múltiplas eleições. Não é uma breve pele do
acaso que a história há-de ler nas calendas. Os milhões que
votaram nele constituem uma grande parte deste país. Várias vezes
escolheram um homem baço, sério, rígido, desconfiado, conservador,
autoritário, espécie de âncora, o contrário da aventura. Na
cronologia, e por feitio, Cavaco estabelece o grande arco entre a
figura de Salazar e a era democrática, com a inserção na União
Europeia. E, desde o 25 de Abril, simbolizará como nenhum outro
governante uma limitação portuguesa. Nas fabulosas oportunidades de
contacto com outros, os portugueses tentaram muito mais
transformá-los ou buscar rendimento do que transformarem-se,
aproveitarem para ser outros: mais. A proverbial acomodação
emigrante reforça isto. Saudosa e idealmente temporária, a diáspora
molda-se mais do que muda. Mas Cavaco tinha pouco de maleável e essa
resistência à transformação encontrou nele um expoente, foi-se
sedimentando ao longo de 36 anos. Não tanto uma pele do país,
Cavaco será um fóssil, a petrificação daquilo que limita os
portugueses, os impede de mudar, e portanto é preciso ler.
4. Dos manuais
escolares à política, o Portugal passado cobre-se de glória.
Entretanto, quem encara os buracos negros tende a ser comido pelas
formigas. Depois de se doutorar em Direito Canónico, estudar Letras,
traduzir, editar, intervir, ser leitor em Madrid e ter escrito alguns
dos mais lancinantes poemas do século XX, Ruy Belo morreu
desempregado, sem lugar numa universidade. No recente documentário,
Ruy Belo, era uma vez, José Tolentino Mendonça diz que Portugal
precisa de uma refundação, ecoando um apelo que vem da própria
obra de Ruy Belo, e mais do que nunca me parece urgente. Portugal,
que não é um fado, continua a viver com a ilusão dos eleitos, seja
o Quinto Império, o Mundial de Futebol, ou o Michelin do Turismo.
Não mais brando do que os violentos, matou, escravizou milhões,
extraiu riquezas, e isso também tem de ser integrado na narrativa
oficial. Caberá a cada um rodar o prisma o bastante para não
continuarmos a ver apenas uma imagem que nos repete, e repete, e
repete.
5. Apurado
intérprete do momento, Marcelo viu a que ponto Cavaco, o país e o
mundo deixaram de coincidir. E sendo o cristão hiperactivo que é,
ao mesmo tempo empático e solitário, parece haver nele certa
vocação refundadora, começando pela imagem da figura paterna de
todos os portugueses. Um pater saltarico, risonho, maleável, que vai
a pé para a posse, e reza ao lado de evangélicos, ortodoxos,
judeus, baha’is, hindus, ismaelitas, xiitas, sunitas, sikhs,
mórmones. Idealmente, a religião deveria ficar fora dos rituais de
estado, mas a relevância política da cerimónia ecuménica
sobrepôs-se a isso. Se, desta forma, mais gente sentiu que é parte
de Portugal, e tanta gente viu que Marcelo incentiva isso, fica
marcada a diferença. Não será demais sublinhar este gesto
inaugural, com tanta gente à porta da Europa.
6. Mas o discurso da
posse integrou os lugares comuns habituais, uns para a direita,
outros para a esquerda, com a novidade de um tom caloroso, e o recuo
a um saudosismo messiânico. Por exemplo, Marcelo enumerar as
singularidades nacionais, e à pobre da saudade, que mal se aguenta
nas canetas, suceder a “crença em milagres de Ourique”. Imagino
resmas de portugueses sub-40 a pesquisarem milagres de Ourique no
telemóvel. Entretanto, o orador citava já aquele “Herói
Português do século XIX” segundo o qual “este Reino é obra de
soldados”. Mais resmas de portugueses não estariam a ver quem
seria esse herói, mas com certeza o presidente de Moçambique,
saudado no parágrafo anterior, percebeu: porque o tal herói é nada
menos do que Mouzinho de Albuquerque, que no século XIX capturou e
desterrou Gungunhana, futuro mito da resistência para os
moçambicanos. Em resumo, perante o ex-colonizado, Marcelo citou o
colonizador vencedor, não aludindo ao vencido, e Portugal apareceu
como reino e obra de soldados. Tudo isto, rematado pela frase
“converter o Império Colonial em Comunidade de Povos e Estados
independentes, prometendo a paz, o desenvolvimento e a justiça para
todos”, sem uma palavra sobre a violência desse império, cujas
consequências se mantêm vivas até hoje, como sabe quem conhece
países da CPLP. O império passa suavemente a CPLP, nenhum sub-40
terá nada para googlar, em breve ninguém saberá do que aconteceu a
não ser em calhamaços, que em breve ninguém lerá. O irónico é
que, a seguir, abrindo uma longa citação de Miguel Torga, vinha a
chave do problema de Portugal e deste discurso: “Nunca soubemos
olhar-nos a frio.” Mas a parte que Marcelo pretendia acentuar era a
sequência disso, a do povo-eleito em versão Torga: “Somos a
própria inquietação encarnada. Foi ela que nos fez transpor todos
os limites espaciais e conhecer todas as longitudes humanas… Temos
ainda um grande papel a desempenhar no seio das nações, como a mais
ecuménica de todas.” Comentário-síntese de Marcelo: “Valemos
muito mais do que pensamos ou dizemos.” É mesmo? Eu tanto diria
isso como o contrário, porque os portugueses oscilam entre a falta e
o excesso de auto-estima. Talvez o verdadeiro desafio seja pensar
essa perpétua descoincidência. Determinado a apostar todas as
fichas na auto-estima, Marcelo concluiu: “O essencial, é que o
nosso génio – o que nos distingue dos demais – é a indomável
inquietação criadora que preside à nossa vocação ecuménica.
Abraçando o mundo todo. Ela nos fez como somos. Grandes no passado.
Grandes no futuro.” Não acredito nisto, não me parece caminho
justo e não aplaudiria.
7. Grande não seria
Portugal romper o ufanismo? De que adianta suturar, unir e rir, se
por baixo a coisa continuar preta? Enquanto alguém quiser o pastiche
de uma nau ou um museu para “celebrar os Descobrimentos” não
teremos avançado. Portugal continuará a repetir os velhos mitos que
o confortam e adiam, ora desconfiado, ora ufano, nunca mudando o
ponto de vista. Não se trata de celebrar ou largar o passado, mas de
o encarar a partir do que investigadores têm feito e, espera-se,
continuarão a fazer (veio, aliás de um historiador, Diogo Ramada
Curto, o comentário mais interessante que li ao discurso de Marcelo,
incluindo mencionar a ausência de um Jaime Cortesão, ele que,
exilado político no Brasil, tanto pensou a relação com o
ex-Império). Incorporar esse refazer da história nas escolas, na
política, na diplomacia, sem saudade e sem lamento, seria a coragem
que ainda não houve.
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