E
se a demonstração de poder do BCE é antes um sinal de desespero?
SÉRGIO ANÍBAL
10/03/2016 - PÚBLICO
Esta
é a dúvida dos mercados depois de o BCE ter ido mais longe do que o
esperado nas medidas de combate à deflação. Mario Draghi usou
todos os seus trunfos e o euro, surpreendentemente, voltou a subir.
Pagar aos bancos
para lhes emprestar dinheiro, acelerar a máquina de imprimir
dinheiro em mais 20 mil milhões de euros ao mês, começar a comprar
obrigações das empresas e descer as taxas de juro para novos
mínimos históricos. O Banco Central Europeu (BCE) olhou para uma
economia com uma retoma lenta e uma inflação negativa e decidiu
lançar para os mercados praticamente tudo o que tinha, num pacote de
estímulos monetários que foi muito mais longe do que aquilo que
esperavam os analistas. O problema é que passadas poucas horas, e
depois de uma reacção muito fria do mercado, a dúvida subsistia:
aquilo a que se assistiu foi uma demonstração de poder do banco
central ou apenas um sinal de desespero perante o fantasma da
deflação?
A reunião do
conselho de governadores do BCE desta quinta-feira vai ficar na
história como mais um passo bastante significativo do BCE em
direcção a terreno desconhecido.
As taxas de juro de
referência do banco central, que já estavam em mínimos históricos,
foram todas cortadas, numa tentativa de fazer o crédito correr para
a economia. Como já se esperava, a taxa de juro de depósito –
aquela que é aplicada nas reservas acumuladas pelas instituições
financeiras no BCE - passou de -0,3% para -0,4%, aumentando o
incentivo para que os bancos deixem de ter o seu dinheiro parado e o
emprestem às empresas e famílias.
E, de forma mais
surpreendente, a principal taxa de juro de refinanciamento – aquela
a que as instituições financeiras pedem dinheiro emprestado ao BCE
– desceu dos 0,05% em que se encontravam para zero. Assim, nas suas
operações regulares, um banco passa a poder, desde que apresente
garantias adequadas, pedir ao BCE dinheiro emprestado sem ter de
pagar juros.
Mas o BCE não se
ficou por aqui e decidiu mesmo avançar para o passo inédito de
pagar juros aos bancos para lhes emprestar dinheiro. Isso pode
acontecer nos quatro empréstimos de longo prazo que o banco central
irá realizar a partir de Junho às instituições financeiras da
zona euro e onde a taxa de juro praticada pode ser tão baixa como
-0,4%.
Depois, para além
de estimular os fluxos de crédito através do corte das já muito
baixas taxas de juro, o BCE reforçou a sua estratégia de criação
de dinheiro ao aumentar o volume de compra de activos que pretende
realizar nos mercados. Em vez dos 60 mil milhões de euros vão
passar a ser 80 mil milhões de euros mensais injectados nos mercados
financeiros por via da compra de títulos de dívida pública,
créditos titularizados dos bancos e, agora, títulos de dívida de
empresas não financeiras da zona euro.
O objectivo do BCE
com estas medidas é evidente e assumido: combater o risco de entrada
da zona euro numa situação semelhante à vivida pelo Japão desde
os anos 90, em que a deflação mantém a economia estagnada sem
retoma do consumo e investimento.
As seis medidas
anunciadas pelo BCE
E esse risco ficou
ainda mais evidente nas últimas semanas, explicou Mario Draghi na
conferência de imprensa que se seguiu à reunião. Não só a
economia mundial deu sinais de mais fragilidade, como a taxa de
inflação na zona euro caiu para terreno negativo em Fevereiro,
empurrada pelos preços do petróleo, mas também com sinais de
contágio a outros produtos.
O BCE reviu mesmo em
baixa as suas projecções para a inflação, apontando agora para
que a inflação fique em 0,1% em 2016, permanecendo por diversos
meses em terrenos negativo e começando a subir apenas no final do
ano, se as medidas agora apresentadas funcionarem. Para 2017 e 2018,
as taxas de inflação previstas são de 1,3% e 1,6% respectivamente,
o que mostra que atingir de forma clara o objectivo do BCE de uma
inflação que fique "abaixo, mas próximo de 2%" pode ser
uma tarefa bastante mais demorada do que o esperado.
Desconfiança dos
mercados
Entre os
especialistas, poucos discordam que o BCE avançou nesta reunião com
tudo aquilo que se poderia esperar de um banco central com o seu
historial e perfil. Na prática, jogou agora todos os trunfos (e mais
alguns) que se adivinhava poderiam estar nas mãos dos seus
responsáveis.
O problema de pôr
os trunfos todos em cima da mesa é que, em princípio, fica-se com
poucas possibilidades de fazer isso com sucesso uma segunda vez.
“Draghi hoje
atirou tudo o que tinha aos mercados”, afirmava um gestor de fundos
à agência Bloomberg, deixando um aviso: “Em princípio vai ter um
efeito positivo e colocar o BCE à frente da curva, mas será muito
preocupante se não virmos uma grande reacção do mercado. Ele ficou
sem novos movimentos para fazer.”
Esta é a grande
questão que irá pairar nos mercados durante as próximas semanas.
Será que esta demonstração de força do BCE irá produzir efeitos
na economia e no sistema financeiro, ou o banco central da zona euro,
à semelhança do que acontece já noutros pontos do mundo, está a
perder o poder de influência que já teve?
Como seria de
esperar, o presidente do BCE defendeu com todas as forças a
credibilidade do banco. “A resposta [à acusação de falta de
poder dos bancos centrais] foi dada hoje pelas nossas medidas. É uma
longa lista de medidas. Hoje mostrámos que não temos falta de
munições”, afirmou o presidente do BCE.
Para além disso,
garantiu Draghi, as medidas funcionam. “Temos muitos dados que
mostram que as medidas resultam numa retoma. A retoma não é
espectacular, mas está lá”, disse. E para quem quisesse mais
provas, Draghi deixou uma pergunta, que logo a seguir respondeu: “O
que é que teria acontecido, se não tivéssemos feito nada? Uma
deflação desastrosa”.
O presidente do BCE
garantiu ainda que, apesar de assumir que a inflação irá ser
negativa nos próximos meses, a zona euro não está em deflação e
que a economia não caiu para uma situação semelhante à do Japão
nos anos 90.
O que significa a
decisão do BCE para os portugueses
Apesar deste
discurso cheio de auto-confiança, os mercados não deram os sinais
que seriam de esperar depois de um pacote de medidas tão agressivo.
Inicialmente, o euro até começou por cair face ao dólar (a reacção
esperada e mesmo desejada pelo BCE, já que ajuda a criar inflação),
mas passado algum tempo recuperou e começou mesmo a subir face ao
valor antes da reunião. As bolsas, tanto na Europa como nos Estados
Unidos, registaram descidas acentuadas. E para piorar ainda mais as
coisas para o BCE, o preço do petróleo voltou a cair.
Foi só um dia, é
certo, mas o que este tipo de reacção do mercado mostra é que há
investidores que o que vêem na demonstração de força do BCE é
antes um sinal de desespero na luta com a deflação.
E o mais
interessante é que foram provavelmente declarações de Mario Draghi
na conferência de imprensa que se seguiu à reunião que conduziram
a este tipo de resposta dos mercados. É que no meio do discurso
optimista, o presidente do BCE não conseguiu esconder que o banco
pode estar a chegar perto do limite das descidas de taxas de juro.
Draghi disse disse “não esperar que seja necessário voltar a
descer taxas” e reconheceu o impacto negativo sobre os lucros da
banca que novas descidas da taxa de depósitos (a única que se pode
esperar que ainda caia de forma significativa) poderiam ter.
Noutros pontos da
conferência de imprensa, Draghi tentou passar a imagem de que o BCE
ainda tem muitas outras formas de intervir. Em relação a uma
descida de taxas, depois de ter dito que não esperava novas mexidas,
afirmou que “os factos podem mudar”. E, para surpresa de muitos,
não fechou totalmente a porta, num qualquer futuro, à possibilidade
daquela que é vista como uma das mais radicais políticas de
expansionismo monetário: a entrega pelo banco central de dinheiro
directamente às pessoas, uma medida também conhecida como “atirar
dinheiro de um helicóptero”. “É um conceito muito interessante
que está a ser discutido por académicos”, afirmou Draghi,
salientando, porém, que a ideia “tem complexidades contabilísticas
e legais” e que ainda não foi abordada no conselho de governadores
do BCE.
Se os mercados e a
economia continuarem a não reagir às cada vez mais temerárias
medidas do BCE, estas novas e surpreendentes portas abertas, antes
impensáveis, podem começar a sair do mundo académico e a saltar
para a sala de reuniões do conselho de governadores.
O
que significa a decisão do BCE para os portugueses
SÉRGIO ANÍBAL
10/03/2016 - PÚBLICO
Banco
central dá boas notícias aos mais endividados, mas retira
expectativas aos que têm poupanças.
Apesar de tomada em
Frankfurt e a pensar na totalidade da zona euro, a decisão desta
quinta-feira do conselho de governadores do Banco Central Europeu tem
efeitos claros em Portugal, seja, nas famílias, nas empresas, nos
bancos ou no Estado. Alguns dos impactos são certos e imediatos,
outros são potenciais e espaçados no tempo, mas todos juntos podem
ser decisivos para o desempenho da economia portuguesa durante os
próximos anos. E, de uma forma global, para uma economia endividada
como a portuguesa, a capacidade do BCE para combater a deflação é
fundamental para que o país tenha aspirações de sair da crise em
que se encontra desde o início do milénio.
Particulares
Para aqueles que
estão endividados, as decisões do BCE podem representar o
prolongamento e mesmo o acentuar do cenário benigno a que se tem
assistido nas taxas de juro. Ao baixar todas as taxas de juro de
referência e ao reforçar o seu programa de compra de activos, as
taxas de juro de curto prazo do mercado monetário podem, pelo efeito
surpresa das medidas, cair ainda mais.
As taxas Euribor,
apesar de já se encontrarem a níveis negativos na maior parte dos
prazos, podem voltar a registar uma trajectória descendente. E mais
importante que isso, com o reforço da garantia de Mario Draghi de
que as taxas de juro irão permanecer por muito tempo a um nível
baixo, o que os portugueses que têm empréstimos indexados às
Euribor podem esperar é mais alguns anos de taxas muito baixas e
mesmo negativas no cálculo da amortização dos créditos.
O próprio BCE, nas
suas previsões, assume que a Euribor a 3 meses irá situar-se em
-0,3% em 2016 e 2017 e subir apenas ligeiramente para -0,2% em 2018.
Pela positiva, mas
bastante mais incerto, há ainda a perspectiva de a estratégia de
estimulo à concessão de crédito ajudar quem esteja interessado em
contrair um novo empréstimo. Neste cenários, os bancos a operar em
Portugal responderiam às medidas do BCE com mais facilidades e taxas
mais baixos no crédito que ofereceriam.
Um impacto negativo
sofrem certamente aqueles que têm poupanças. As medidas do BCE
significam que o cenário de juros nulos ou quase nulos em depósitos
e outras aplicações financeiras se irá manter por bastante tempo.
Empresas
O cenário é
semelhante ao vivido pelos particulares. As empresas com empréstimos
indexados à taxa Euribor deverão sentir um impacto positivo
imediato e aquelas que precisam de crédito novo para lançar os seus
planos de investimento podem ficar com mais esperança que os bancos
lhes emprestem dinheiro.
O BCE tem também
uma medida que se pode repercutir ainda mais directamente nas
empresas da zona euro, que é o alargamento do programa de compra de
activos aos títulos de dívida emitidos por empresas não
financeiras. Neste caso, apenas as maiores empresas nacionais fazem
emissões de dívida deste tipo e neste momento têm o problema de
apresentar ratings abaixo do nível de investimento, que é exigido
pelo BCE para que os títulos sejam elegíveis.
Bancos
Para os bancos, o
acentuar de um cenário de taxas de juro reduzidas e mesmo negativas
constitui um desafio, com factores positivos e negativos. A banca
portuguesa, ainda bastante dependente do financiamento do BCE, ficou
a saber que pode contar, por um período longo de tempo, com
empréstimos do banco central a taxas de juro que pelo menos, não
serão superiores a zero, a nova taxa principal de refinanciamento.
Além disso, o BCE
vai realizar empréstimos a quatro anos em que as taxas aplicadas
estarão entre zero e -0,4%, dependendo da quantidade de empréstimos
às famílias e empresas que cada banco faz.
A contrapartida,
deste acesso a crédito ultra-barato, é os bancos terem também
dificuldades em fazer render o seu dinheiro. As taxas de depósito
negativas do BCE são um problema e, além disso, os bancos
portugueses estão particularmente expostos à descida das Euribor,
já que uma grande parte dos empréstimos que concederam ao longo dos
últimos anos estão indexados a essas taxas, o que lhes retira a
capacidade para gerarem lucros com as duas operações.
Estado
As taxas de juro da
dívida pública portuguesa têm vindo a ser limitadas no último ano
pelo facto de o BCE estar no mercado como comprador extremamente
activo. Agora, ao reforçar o montante mensal de compras que realiza,
o banco central está a dar uma boa notícia ao Estado português,
havendo assim mais garantias de que as taxas não sobem muito, num
cenário que tem sido recentemente de grande volatilidade.
A única dúvida é
a de saber se, de acordo com as suas próprias regras, o BCE não
ficará limitado no montante de dívida portuguesa que poderá ter
nos seus cofres.
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