E
se o tempo de Marcelo estivesse a terminar?
José Manuel
Fernandes
13/3/2016, /
OBSERVADOR
Marcelo é produto
de um tempo político e mediático que está a desaparecer. É bom
por isso que não se alimentem ilusões sobre afectos, já que estes
novos tempos são sobretudo de crescente tribalização.
Marcelo Rebelo de
Sousa transformou a sua tomada de posse numa longa festa que se
prolongou por quatro dias, da sessão solene na Assembleia à
abertura das portas do Palácio de Belém, passando por uma festa com
crianças em Lisboa e uma “arruada” improvisada no Porto. Muitos
viram nesta “Presidência de afectos” um novo tempo capaz de
reconciliar o país com ele mesmo e os partidos uns com os outros.
Permito-me duvidar. Mais: interrogo-me se aquilo a que assistimos por
estes dias não é mais um sinal do fim de um tempo de normalidade
democrática, um tempo que a pouco e pouco vamos vendo ser
substituído por uma era de surpresas, riscos e divórcios ainda mais
cavados do que os que hoje conhecemos.
O Marcelo que vimos
de boné e manta nos joelhos na Praça do Município de Lisboa ou a
distribuir beijos e autógrafos nas ruas do Porto não é apenas, nem
sobretudo, o político em estado de graça, o líder amado e
reconhecido – é ainda a estrela da televisão, o companheiro dos
domingos à noite, o candidato que fez campanha sem fazer, o
“professor” estimado pela sua simpatia e eterna jovialidade.
Conhecemos casos de
celebridades da televisão que tiraram partido desse seu estatuto
para se projectarem como políticos (o italiano Beppe Grillo, o
americano Donald Trump), não me estou a recordar de nenhum político
que, depois de conhecer alguns fracassos (Marcelo perdeu umas
eleições para a Câmara de Lisboa e demitiu-se da liderança do PSD
antes de disputar umas legislativas), tenha conseguido tornar-se num
fenómeno de popularidade graças a um programa de televisão e
acabar levado em ombros para a Presidência.
Não há nenhum mal
nisto, e este capital de simpatia (e “afecto”) que acumulou até
pode vir a ser-lhe imensamente útil. Mas isso não impede que, ao
olhar para aquelas cenas nas ruas de Lisboa e do Porto, não tivesse
ficado a pensar se não estaríamos perante o último exemplo de
alguém capaz de beneficiar até ao limite de um espaço mediático
relativamente uniforme. Não porque não possa surgir alguém com
idênticos talentos, mas porque esse espaço mediático está a
desaparecer.
Por outras palavras,
estas mais brutais porque vou extremar os termos da dicotomia: o país
que elegeu e está a festejar Marcelo Rebelo de Sousa é o país das
televisões em que ainda existe um palco comum onde todos os debates
se travam; o país a que Marcelo vai presidir será cada vez mais o
país do Facebook, um país onde esse espaço comum tenderá a ser
cada vez mais segmentado e polarizado, um país mais propenso ao
tribalismo do que ao consenso.
Não deixa de ser
uma extraordinária, mas significativa, coincidência que os dias que
antecederam a festa de Marcelo tenham sido marcados por uma
manifestação desses novos tipos de tribalismos, em concreto a forma
como, no Facebook e noutras redes sociais, se procurou linchar
Henrique Raposo por causa do seu livro Alentejo Prometido.
O fenómeno Marcelo
é típico de um tempo em que a televisão cria um espaço público
comum para o debate social e político. O caso Henrique Raposo é
revelador de um novo tempo em que esse espaço público se segmenta e
organiza em torno de “tribos” radicalizadas. Temo que seja este
último o verdadeiro “novo tempo”, mas um “novo tempo” de
contornos menos agradáveis e, sobretudo, mais perigosos para a nossa
vida democrática.
Em Portugal temos
reflectido pouco sobre a segmentação e tribalização dos espaços
de discussão política, pelo que vale a pena deixar duas ou três
breves notas sobre o que pode estar em causa.
Primeiro ponto: a
democracia, para funcionar, necessita de um espaço público comum
onde todos possam trocar argumentos e partilhar decisões. Na
democracia ateniense esse espaço era a ágora onde os cidadãos
debatiam e votavam. Um tal modelo de democracia directa só funciona
em espaços políticos pequenos, onde todos podem falar directamente
com todos. Nas democracias modernas esse espaço comum de debate era,
ainda é, o proporcionado pelos órgãos de informação – primeiro
os jornais, depois as rádios e as televisões. Ora aquilo a que hoje
começamos a assistir é à erosão desse espaço comum, mediado por
jornalistas, e à sua substituição quer por um espaço mediático
mais débil e mais segmentado, quer pela ilusão de que as redes
sociais são uma espécie de substituto moderno da ágora ateniense
(há um artigo muito interessante que permite perceber melhor esta
evolução e os seus perigos, e cuja leitura recomendo vivamente:
Media and Democracy: The Long View, de Marc F. Plattner, na edição
de Outubro de 2012 do Journal of Democracy).
Segundo ponto:
algumas das ameaças que a democracia enfrenta nos dias de hoje
decorrem precisamente da erosão desse espaço comum de debate, onde
a diferença de ideias e propostas é o ponto de partida para
compromissos, por uma realidade comunicacional muito mais segmentada
onde se perde a noção do compromisso e se procura apenas os que
concordam connosco, num processo de crescente radicalização e,
quando chegamos ao terreno da política, numa fácil deriva para
diferentes tipos de populismo. Recentemente Anne Applebaum,
jornalista e historiadora, escreveu um artigo onde, de forma quase
provocatória, descreve os danos que as redes socais estão a causar
em países com democracias menos consolidadas: Mark Zuckerberg should
spend $45 billion on undoing Facebook’s damage to democracies.
Um dos problemas
destes novos espaços mediáticos tribalizados é que, de repente,
ninguém acredita em nada – ou então acredita facilmente em
teorias da conspiração. E não, não me estou apenas a referir
apenas a fenómenos como o ISIS. O mesmo se passa quando pensamos no
caldo de cultura que está a alimentar o sucesso de Donald Trump. Ou
a mobilização de activistas indiferenciados que, no Reino Unido,
permitiu a eleição de Jeremy Corbyn para a liderança dos
trabalhistas. Ou ainda a brusca queda de credibilidade dos órgãos
de informação alemães, paralela ao crescimento eleitoral de
partidos anti-imigração.
Podia multiplicar os
exemplos, mas a verdade é que, se olharmos para dentro de casa,
verificaremos que a tendência não é para criar consensos, pelo
contrário. Percam algum tempo nas redes sociais. Ou nas caixas de
comentários da imprensa online. Pior: assistam aos debates na
Assembleia e registem o grau de acrimónia. Se tiverem um pouco de
memória, recordar-se-ão que este registo político mais radical não
é de hoje: foi inaugurado por José Sócrates e, na altura, apoiado
por grupos que actuavam através de blogues, nomeadamente um famoso
blogue anónimo alimentado por assessores do governo, onde se criava
um clima de confronto permanente. Há gente que vem desses caldos de
cultura e está hoje nas primeiras linhas das lideranças
partidárias, pelo que não devemos ter ilusões: também em Portugal
estamos a assistir à erosão de um espaço público comum e à sua
substituição por um tribalismo que ignora os meios de informação
tradicionais e os substitui por partilhas na internet onde apenas se
conta a sua “verdade”.
Marcelo comentador
era excepção. Chegava a todos. E nunca ofendia ninguém. Não se
comprometia, não revelava o que pensava, falava de factos políticos,
não se pronunciava sobre políticas públicas. Já em tempos escrevi
sobre isso e não me vou repetir. A verdade é que a popularidade
assim granjeada está agora bem à nossa vista. Sendo, insisto, a
popularidade do comentador, mais do que a do político e ainda não a
do Presidente, pois essa acabará por ser condicionada pelas decisões
difíceis que tiver de tomar. Nessa altura há três coisas de que
podemos estar seguros: a primeira, é que a aura de entertainer
ter-se-á desvanecido pouco a pouco; a segunda, que terá de
desagradar a alguém, pois não se pode agradar sempre a todos; e a
terceira que, muito provavelmente, estaremos um pouco mais avançados
neste processo de degradação e tribalização do espaço público.
Nada do parece estar
pela frente (a nossa crise que não acabou, as nossas dívidas que
não desapareceram, o nosso crescimento que não voltou, as nossas
reformas que não se fizeram, a nossa Europa que não se entende e
até pode desfazer-se) indica que os próximos dez anos sejam mais
tranquilos e estáveis do que os últimos dez. As verdadeiras provas
de Marcelo não serão as dos “afectos”, antes as de um país
onde, como em quase todo o mundo desenvolvido, há cada vez mais
gente zangada e mais políticos a falar para e pela gente zangada.
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