“Mais
de metade do comércio da Baixa vai desaparecer”
CARLOS VAZ MARQUES
(Texto) e JOÃO CATARINO (Ilustração)
27/03/2016 –
PÚBLICO
Desafiámos Catarina
Portas a servir-nos de cicerone pela Lisboa que a apaixona e a
preocupa. Percorremos a Baixa e o Chiado de tuk-tuk. Daqui por uns
tempos, se se confirmarem os receios da mulher que se tornou uma
espécie de provedora das lojas com história, a paisagem não será
a mesma.
Catarina Portas
nunca tinha andado de tuk-tuk em Lisboa. Apesar de ser, de acordo com
o mito urbano que lhe faz soltar uma gargalhada sonora, dona de todos
os tuk-tuk da cidade. “Pelos vistos tenho uma fortuna desconhecida.
Aqui há tempos um taxista disse-me: ‘Há dias, vinham aí uns
senhores a falar de si e a dizer que o António Costa lhe tinha
oferecido – a si e ao neto do Humberto Delgado – os quiosques da
Avenida’.” Catarina explora cinco quiosques em Lisboa, nenhum na
Avenida da Liberdade, e não faz ideia de quem é o neto de Humberto
Delgado. De tão repetidas, agora até já acha graça a situações
destas. “Houve alturas em que me enfurecia, hoje em dia acho que
não vale a pena, o melhor é rirmo-nos.”
Combinamos encontro
junto à Sé, a gare improvisada dos tuk-tuk da capital. Mesmo ao
lado fica um dos quiosques geridos por Catarina Portas. A ideia é
darmos uma volta pela Baixa e pelo Chiado, guiados pela empresária
que se tornou nos últimos tempos uma espécie de provedora do
comércio tradicional e das lojas com história. “Eu nunca me
considerei uma pessoa radical, mas hoje olho para os meus posts do
Facebook e pareço uma histérica inflamada. Mas a verdade é que a
situação está a tornar-se tão dramática que tem de se fazer
alguma coisa.”
Contratamos um
ecotuk, de motor eléctrico, menos ruidoso. Catarina Portas não
entende como é que a câmara não impôs, quando a febre dos tuk-tuk
invadiu a cidade, que os pequenos motociclos para fins turísticos
fossem todos eléctricos e mais amigos do ambiente.
A primeira etapa, no
entanto, dispensa o tuk-tuk. Descemos ecologicamente a pé a Rua de
São João da Praça, sob o perfume da flor de laranjeira.
Casa Alves
O número 112 da Rua
de São João da Praça é o primeiro ponto no mapa da visita guiada
por Catarina Portas. A Casa Alves é uma mercearia de bairro à moda
antiga. Percebe-se de imediato que Catarina é da casa, pelo modo
como é recebida. “Então, tem vendido as coisas novas?”,
pergunta ao dono do estabelecimento. “Mais ou menos.” José Luís
Alves, o proprietário, recebeu ordem de despejo dos novos senhorios.
Pediu o realojamento mas se não conseguir pagar a nova renda terá
de deixar a mercearia, que está na família há mais de meio século.
A Casa Alves é o
único inquilino de um prédio devoluto. Vai ter obras em breve e
pode vir a tornar-se mais um hotel. Catarina Portas soube da história
por uma amiga, visitou a loja e achou que tinha de fazer qualquer
coisa. Decidiu-se a intervir depois de perceber que os únicos
clientes eram turistas que tiravam muitas fotografias e que, de vez
em quando, compravam uma pasta dentífrica Couto. “O género pasta
Couto é um género que eu conheço bem. Daí, ocorreu-me que
podíamos fazer uma experiência.” A Vida Portuguesa passou a
fornecer a Casa Alves de coisas que os turistas costumam comprar. Só
produtos que respeitam o espírito da loja e que até já se venderam
ali no passado. "Pus aqui o material a custo zero para eles; nós
só vamos cobrar 10% sobre o preço a que comprámos as coisas.
Porque, obviamente, eu tenho uma equipa de pessoas que esteve a
encomendar, a contar, a embrulhar tudo isto. Mas o lucro fica para
eles.”
O objectivo é
tentar que as vendas aumentem e que a Casa Alves consiga, no futuro,
suportar uma renda mais alta, evitando o despejo e o desaparecimento
de mais uma loja histórica. Na mercearia há agora uma maior
variedade de conservas, há uvada, goiabada e uma quantidade de
outros produtos que vieram trazer novas cores às prateleiras de cor
creme. “Não sei se isto vai dar a algum lado, mas pelo menos dá a
conhecer o que se está a passar. E eu sei bem o que se está a
passar: nos próximos dois anos, metade do comércio da Baixa vai
desaparecer. Metade, se não for mais.”
Enquanto falamos à
porta do estabelecimento, entra um casal de turistas estrangeiros.
Quando saem, minutos depois, Catarina não contém um sorriso e uma
exclamação: “Estão a ver: já ali vai um chocolatinho da
Regina.”
As bugigangas da Rua
da Prata
Regressamos à Sé,
onde nos aguarda Hugo Samora, que trocou a profissão de actor pela
de condutor de tuk-tuk. “Passei de contador de histórias a
contador da História.”
Próximo destino, o
Rossio. Pelo caminho, subimos a Rua da Prata até à Praça da
Figueira e Catarina Portas vai apontando, de um lado e do outro, o
comércio de bugigangas para turistas. “Aqui, na Rua da Prata, há
17 lojas destas, de souvenirs feitos na China; é uma coisa um bocado
bizarra. Adorava perceber como funciona este modelo de negócio. Não
estou a ver como é que 17 lojas iguais, a venderem souvenirs
luso-chineses, sempre vazias, conseguem facturar e pagar rendas na
Baixa.” Está lançada a questão, mas a empresária não quer ir
mais longe nas suspeitas que deixa no ar. “Palavra de honra:
gostava realmente que alguém investigasse isto.”
Catarina Portas é
uma activa subscritora de petições online. Ainda recentemente,
divulgando um abaixo-assinado em defesa do Ateneu, no Facebook,
reconheceu com alguma auto-ironia: “Bem sei que ultrapassei a minha
quota semanal de petições mas a situação está dramática.”
Considera realmente que as petições online e os abaixo-assinados
fazem alguma diferença? “Parece que não, mas as assinaturas são
importantes. Por exemplo, no dia em que a petição do Fórum
Cidadania LX, que pede uma alteração à lei das rendas, tiver
quatro mil assinaturas, o assunto vai ao Parlamento e tem de ser
discutido no hemiciclo.”
A loja mais pequena
de Lisboa
Estacionamos no
Rossio e subimos a pé a Rua do Carmo. Catarina Portas tem dois
objectivos: a loja mais pequena de Lisboa e uma grande marca
internacional. A multinacional sueca H&M está por todas as
grandes cidades do mundo e também tem o seu espaço no Chiado.
“Lisboa também tem de ter H&Ms. Não pode é ter só isso.”
O contraponto à
multinacional de pronto-a-vestir é a charmosa e minúscula Luvaria
Ulisses. “É preciso ver que é a Ulisses e não a H&M que está
nos guias dos turistas. Os turistas vêm à Ulisses, fotografam a
Ulisses, e depois vêem ali a H&M e vão lá fazer compras.
Portanto, a H&M precisa tanto da Ulisses como a Ulisses precisa
da H&M.”
A riqueza de uma
cidade faz-se de uma mistura equilibrada e é isso que Catarina
Portas defende apaixonadamente. “Se houver só lojas de cadeias
estrangeiras – com este retalho obsessivo que anda pelo mundo –,
às tantas já não há diferença, nem carácter, nem
personalidade.”
A Luvaria Ulisses,
que se saiba, não corre perigo. Ainda assim, a pressão imobiliária
é hoje de tal ordem que de um momento para o outro uma loja com 200
anos pode ser posta na rua em seis meses. “Existe, na lei, uma
protecção para os inquilinos idosos, não existe para os inquilinos
comerciais. O que está a fazer com que todo este tecido comercial
esteja a desaparecer.”
Um pouco mais
adiante, Catarina volta a abanar a cabeça em sinal de desconsolo.
Está a lembrar-se da antiga Livraria Portugal, entretanto
desaparecida. Deu lugar à pastelaria Eric Kayser, que também já
ali não está. “Passado um ano foi-se embora e agora é uma loja
daquelas que existem em todas as cidades europeias, com uma vaca à
porta e a vender inutilidades. É para isto que andamos a destruir
lojas que tinham valor patrimonial; muitas delas com trabalhos de
arquitectos que projectaram fachada, interiores e móveis.”
Foi para tentar
evitar situações semelhantes que a Câmara de Lisboa criou o
programa Lojas com História. Catarina Portas faz parte do conselho
consultivo desse programa que começou há um ano, ainda com António
Costa à frente do município. Os trabalhos são coordenados por uma
equipa do curso de Design da Faculdade de Belas-Artes, em articulação
com técnicos de três vereações da câmara. “Tem estado a ser
feito um levantamento e está a ser preparada a classificação das
lojas. Deve estar pronta daqui por uns meses.” Ainda assim,
Catarina Portas não se dá por satisfeita. “O que acontece é que
até agora, enquanto essas lojas não estão protegidas, ninguém
suspendeu qualquer licenciamento. O mais provável é que muitas
delas já tenham desaparecido quando a classificação estiver
pronta. Neste momento, elas desaparecem todas as semanas.”
Um caso exemplar
Voltamos ao tuk-tuk,
descendo por entre os acordes cruzados da carrinha do fado e de um
enérgico cantor de rua. O céu ameaça chuva, daqui a pouco virá
mais um aguaceiro, mas nem isso demove os turistas que se passeiam
tranquilamente pela Baixa. Catarina Portas repete que não tem nada
contra os turistas. São eles, aliás, os principais clientes das
lojas de que é proprietária. O que teme é o efeito a longo prazo.
“Já estragámos o Algarve nos anos [19]70; não aprendemos nada
com isso? A mim, isto faz-me um bocado de impressão.”
Descemos a Rua do
Ouro, espreitando a cidade através da capa de plástico transparente
do tuk-tuk. A capa lateral pode ser retirada, a do tejadilho não.
“Transforma um soft top, que não permite que crianças de menos de
sete anos viajem no veículo, num hard top, onde qualquer criança
pode viajar”, explica Hugo, o actor-cicerone. Chegou a transportar
crianças com o tuk-tuk a descoberto e nunca teve problemas; mas
nunca fiando, a qualquer momento pode surgir o polícia que conhece
esta norma legal. “Há um polícia em Lisboa que sabe disto, depois
há outro que sabe outra coisa. Entre eles, vão sabendo coisas
diferentes.”
Subimos ao Chiado,
agora pelo lado de cima. Estacionamos, e Catarina Portas conduz-nos
ao que considera ser um caso de intervenção exemplar da Câmara de
Lisboa. “Só tenho pena que a câmara não tenha feito pública a
negociação em que interveio aqui.” Estamos à porta da antiga
Ourivesaria Aliança. O número 50 da Rua Garrett continua a ser uma
ourivesaria mas agora de uma marca catalã. A Tous recuperou o espaço
até ao mais ínfimo pormenor, num processo que teve intervenção
directa da autarquia. Aconteceu há cinco anos.
“A Ourivesaria
Aliança fechou, o prédio agora tem alojamento turístico e a loja
era para ser a entrada desse alojamento turístico. A câmara foi
conversando com os proprietários do edifício e conseguiu-se
encontrar um inquilino interessado em preservar o espaço.” Tudo
foi recuperado, nesta loja requintada, com um belíssimo tecto
pintado há mais de um século em estilo rococó. “Conservaram
tudo, incluindo os móveis, e sei que até chegaram a ligar para a
câmara a perguntar se era imprescindível conservarem as alcatifas
dos anos 70, umas alcatifas verdes que não interessavam nada. Foram
de facto extremosos na recuperação.”
Os últimos azulejos
Voltamos a meter-nos
no tuk-tuk, com Catarina Portas sempre entusiástica na defesa dos
seus pontos de vista. A situação é o que é, explica, por três
razões, que isoladamente até podiam ser positivas. A lei das
rendas, que tinha de ser alterada porque era muito injusta para os
senhorios. A explosão do turismo, que trouxe uma nova dinâmica
económica à cidade numa altura de crise. Os fundos de investimento
estrangeiros, que descobriram no imobiliário de Lisboa excelentes
oportunidades de negócio. “As três coisas juntas resultam numa
situação que neste momento é completamente explosiva.”
A última paragem é
no Largo Barão de Quintela. O edifício de esquina entre o Largo e a
Rua do Alecrim foi, nas últimas três décadas, a sede da Vista
Alegre. A empresa de cristal e porcelana foi comprada recentemente
pela Visabeira e essa mudança de propriedade pode ter, em breve,
efeitos drásticos.
Um dos locatários
do edifício do Largo Barão de Quintela é a loja da Fábrica de
Sant'Anna, que cumpre este ano um século de existência. Ali se
vende um dos principais ex-líbris de Lisboa: os azulejos pintados. A
Fábrica de Sant'Anna, onde os azulejos são fabricados, agora
instalada na Calçada da Boa-Hora, já vem do século XVIII. “Nasceu
a fazer azulejos para a reconstrução da cidade, depois do
terramoto”, explica Hugo Samora, o condutor que vem aqui
frequentemente trazer turistas.
A Visabeira tem a
intenção de fazer deste edifício um hotel e já enviou uma ordem
de despejo a todos os inquilinos, incluindo a loja da Fábrica de
Sant'Anna. Catarina Portas não se conforma com a possibilidade de
ver desaparecer, assim, mais um lugar emblemático da cidade. “Esta
loja é muito importante para a fábrica, é responsável por 30% das
vendas da fábrica, onde trabalham 30 e tal pessoas. Faz sentido um
hotel estar a matar a loja da ultima fábrica de azulejos em Lisboa?
Tenho dúvidas.”
Entramos. Catarina
cumprimenta o empregado do estabelecimento e pergunta-lhe como estão
as coisas. Está tudo na mesma, aparentemente, responde Carlos Amaro,
funcionário de longa data. O prazo de despejo já passou, mas os
inquilinos continuam a recusar-se a sair.
O fogo e as cinzas
Começa a chuviscar.
A viagem de tuk-tuk chega ao fim. Hugo Samora faz-nos um desconto. Em
vez dos 60 euros que costuma levar aos turistas, cobra-nos apenas 50,
o preço antigo.
Atravessamos a Rua
do Alecrim e subimos a pé ao Largo Camões. Tomo nota, para não me
esquecer, da frase de Mahler que Catarina Portas descobriu
recentemente e que adoptou como lema: “A tradição é alimentar o
fogo, não é ficar a contemplar as cinzas.”
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