OPINIÃO
O
presidente de tooooodos os portugueses
JOÃO MIGUEL TAVARES
09/03/2016 - PÚBLICO
O
discurso de Marcelo foi um discurso de não-escolhas, quando fazer
política é o contrário disso.
Quanto ao discurso
de Marcelo, sejamos claros: não teve interesse nenhum. Foi
redondinho como uma bola de bilhar e com duas caras como Janus.
Prometeu justiça social e apoio à iniciativa privada. Um poder
económico subordinado ao poder político mas não um Estado
dirigista. Disse que iria “apoiar aqueles que a mão invisível
apagou” sem descurar as “finanças sãs”. Elogiou o Estado
social de direito e a reforma das instituições desajustadas e
ineficientes. Distribuiu cartas à esquerda e à direita. Manteve-se
fiel ao centro. Foi um discurso para todos os portugueses. E quando
digo todos, é mesmo toooodos.
Em resumo, foi uma
chatice. Paulo Portas elogiou a qualidade literária do discurso de
Marcelo. Mentiu. Marcelo sempre foi infinitamente melhor a falar do
que a escrever – é o típico professor de Direito. Nem sequer
faltou a habitual citação foleira de Miguel Torga, que passou
incessantemente nos rodapés das televisões: “Valemos muito mais
do que pensamos ou dizemos.” A sério? Valemos? Mais do que
pensamos e mais do que dizemos? Pelo amor da santa. Nada tenho contra
discursos de miss Universo, mas tenho alguma coisa contra os
discursos que insistem em sublinhar a singularidade portuguesa e a
sua “vocação ecuménica”, como lhe chamou Marcelo. É mais uma
derivação do Quinto Império e desta mania do povo eleito, que
apenas serve para promover uma vida com a cabeça em nuvens
sebásticas. Se nos julgássemos menos singulares, mais iguais a toda
a gente, e arregaçássemos as mangas para trabalhar com os outros,
era tão, mas tão mais útil. Aguardo ansiosamente por um Presidente
da República que troque as citações de António Lobo Antunes e
Miguel Torga pelas de Adília Lopes e Luiz Pacheco. Este país tem
fragas a mais e atrevimento a menos.
Mas esqueçamos tudo
isso, porque o Marcelo que importa não é aquele que discursou no
Parlamento sem dizer coisa alguma, mas aquele que decidiu vir a pé
desde sua casa até à tomada de posse cumprimentando toda a gente
pelo caminho. Não é por acaso que Tino de Rans pediu ao novo
Presidente para não se esquecer das pessoas que estavam na sétima
fila – a fila que o protocolo lhe reservou para assistir à tomada
de posse. Tino, homem eleito pelo povo, não apreciou que estivessem
tantos não-eleitos (seis filas deles) à sua frente, mas não culpou
Marcelo por isso: “O candidato mais parecido comigo é Marcelo
Rebelo de Sousa.”
Em verdade vos digo:
foi o maior elogio que o novo presidente escutou durante todo o dia.
Ali estava a representação do verdadeiro homem do povo a considerar
como sendo dos seus, do povo-povo, um senhor-bem da elite lisboeta.
Tino tem toda a razão. Nesse aspecto, Marcelo faz milagres, e nos
dias de hoje ele é o único político português que consegue
relacionar-se com as pessoas que estão na primeira fila, na sétima
fila e na septuagésima fila. Esse é, sem dúvida alguma, o mais
precioso capital simbólico que transporta consigo para o Palácio de
Belém.
O seu discurso foi
um discurso de não-escolhas, quando fazer política é o contrário
disso – é escolher, e escolher dolorosamente. Mas se Marcelo tiver
conseguido, ao fim de cinco anos de mandato, encurtar as distâncias
entre o “nós” (o povo) e o “eles” (os políticos), e
envolver a sociedade portuguesa na política, então a sua eleição
já terá valido a pena. Consiga ele isso e eu perdoo-lhe tudo. E até
pode voltar a citar Miguel Torga em 2021.
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