sábado, 12 de março de 2016

Maria vai com as outras / PEDRO SOUSA CARVALHO


OPINIÃO
Maria vai com as outras
PEDRO SOUSA CARVALHO 11/03/2016 – PÚBLICO

"Vamo-nos apercebendo bem dos privilégios — para não dizer da falta de ética — de muita gente que vivia entre a política e os negócios e os negócios e a política." A frase foi dita por Pedro Passos Coelho, em Agosto de 2014, na Festa do Pontal do PSD. Na altura, o então primeiro-ministro falava das ligações promíscuas do BES à política e aos políticos. Não estava a falar de Maria Luís Albuquerque, que agora vive entre a política e os negócios e os negócios e a política. Como muitos, Maria Luís tem ambição e tem contas para pagar.

Em 2013, quando apresentou ao Tribunal Constitucional a sua declaração de rendimentos, não declarou qualquer conta bancária acima dos 24 mil euros, nenhuma carteira de títulos ou outra aplicação financeira. Numa entrevista à SIC nessa altura, a então ministra das Finanças também se queixava do impacto que a austeridade estava a ter no seu orçamento: “Tenho rendimentos diminuídos e continuo a ter três filhos pequenos. Neste momento tenho pouca margem para poupar." E mais à frente: “Tenho uma casa, que estou a pagar. Tenho despesas e menos receita, porque somos afectados como todos. Além do mais, sou funcionária pública.”

Quando o salário de ministra passou a salário de deputada, Maria Luís fez-se à vida e resolveu aceitar o cargo de administradora não executiva na Arrow Global, uma empresa que se dedica à gestão de activos financeiros e onde irá ganhar 45 mil libras/ano. Salário que vai acumular com o de deputada da Assembleia da República. Apesar de estar a fazer o que muitos antes dela fizeram (nomeadamente muitos que agora a criticam, como Manuela Ferreira Leite, do PSD, ou Carlos César, do PS), Maria Luís não o deveria ter feito. É um daqueles casos em que a Maria não devia ir com as outras.

O que Maria Luís está a fazer é aquilo a que os anglo-saxónicos chamam "revolving door" e os franceses “pantouflage”, ou seja, é quando um político, um legislador ou um supervisor passa a trabalhar para uma empresa ou uma indústria que antes tutelava, supervisionava ou sobre a qual legislava. Há aqui um dilema de difícil resolução. Por um lado, queremos ter os melhores a gerir a coisa pública e não apenas os homens dos partidos, que vieram das jotas e que subiram nas hierarquias dos aparelhos, e que depois são premiados com cargos para os quais têm pouca ou nenhuma apetência. Alguns vão tutelar ou legislar sobre empresas sem nunca ter posto um pé que seja numa empresa. O reverso da medalha é que também não queremos que a passagem pelo serviço público sirva apenas de trampolim para voos mais altos na carreira, para abrir portas, para engrossar a lista de contactos e de networking e que sirva para acumular informação, muitas vezes sensível e com valor comercial, que depois será posta ao serviço de uma empresa privada a troco de remunerações chorudas.

É para tentar alcançar um equilíbrio entre uma coisa e outra que muitos países regulamentaram e legislaram sobre o tema e impuseram períodos de cooling-off ou períodos de nojo, precisamente para minimizar o risco de promiscuidade e de contaminação entre os negócios e a política. No Canadá, por exemplo, o Conflict of Interest Act pode levar a que um ministro seja multado ou perca o direito à sua pensão de reforma se durante um período de cinco anos após o exercício das suas funções públicas passar informação que não seja de acesso público a uma empresa privada.

Em Portugal, o caso da Arrow Global deveria servir para voltarmos a olhar para a lei das incompatibilidades. Primeiro, o Estatuto dos Deputados já não deveria permitir o regime de não exclusividade. Não faz sentido que a deputada Maria Luís esteja de manhã a discutir e a decidir no Parlamento sobre se um banco deve ou não ser nacionalizado ou alvo de um processo de resolução e à tarde ir recomendar à Arrow Global que compre ou venda activos tóxicos desse mesmo banco. E se numa comissão de inquérito tiver acesso a informação confidencial, vai olhar para quem lhe paga o salário de deputada e lhe pede reserva ou para os patrões que lhe pagam o salário de administradora e lhe pedem lucro?

Além de Maria Luís Albuquerque, há mais 38 deputados que recebem um salário extra por empregos que têm fora do Parlamento, sendo a maioria advogados que de manhã estão na Assembleia a fazer leis e à tarde vão para os seus escritórios de advogados privados aplicar essas mesmas leis.


O caso de Maria Luís Albuquerque tem uma agravante. Além de acumular funções de deputada e administradora, vai trabalhar numa empresa que tutelava há três meses enquanto ministra das Finanças. Aqui entra (ou melhor, deveria entrar) o Regime Jurídico de Incompatibilidades e Impedimentos dos Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos. Esta lei impõe a esses titulares um período de nojo de três anos depois de cessarem as funções públicas, em que ficam impedidos de trabalhar numa empresa privada que tutelaram directamente no passado. No entanto, esta proibição só é aplicável a empresas que tenham sido alvo de processos de privatização ou que tenham recebido incentivos ou benefícios fiscais. Esta lógica era válida na década de 1990, quando se fez a lei, já que nessa altura ainda havia empresas para privatizar e estavam na moda os projectos PIN, que engordavam à custa dos benefícios fiscais. Hoje faz sentido apertar essa malha porque os canais de promiscuidade entre política e os negócios e os negócios e a política evoluíram para caminhos mais sofisticados. E a ética não pode ser uma Maria vai com as outras.

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