OPINIÃO
A
politização da Comissão e a “vingança” de Erdogan
TERESA DE SOUSA
06/03/2016 - PÚBLICO
De
vez em quando a Turquia lembra-se de que é membro da NATO. Quando
lhe convém.
1. Antonio Vitorino
costumava dizer, quando se debatia a última reforma dos tratados,
que não era boa ideia tentar “politizar” a Comissão, um órgão
de características próprias e únicas que foi sempre fundamental
para encontrar um consenso no meio da diversidade europeia. Na altura
a questão da legitimidade democrática da União Europeia (que se
designava por défice democrático) era um tema central dos debates
preparatórios da Constituição e reflectia uma visão de crescente
integração europeia. No resultado final da reforma (o Tratado de
Lisboa), o Parlamento ganhava novos poderes (de co-decisão,
nomeadamente), o Conselho Europeu reforçava o seu papel de liderança
política, a Comissão, mantendo embora o poder de iniciativa
legislativa, passaria a reflectir as preferências políticas dos
europeus, expressas nas eleições para o PE e na composição do
próprio Conselho. Hoje, é fácil de verificar que Vitorino tinha
razão. A União foi em sentido contrário: governamentalizou-se,
concentrando o verdadeiro poder no Conselho Europeu e no Eurogrupo,
onde há países que mandam muito mais do que outros. A Comissão foi
perdendo credibilidade, ao falhar a sua função primordial: garantir
a procura do “bem comum”. A “politização” acabou por ferir
a sua legitimidade. Jean-Claude Juncker foi escolhido porque era
membro do Partido Popular Europeu que, por sua vez, ganhou as
eleições europeias de 2014. Os comissários enviados pelos governos
tinham de merecer a sua aprovação, é verdade, mas a sua margem de
manobra era bastante limitada. Hoje, depara-se com um colégio de
comissários onde a maioria apenas pretende defender as decisões dos
respectivos governos nacionais. É verdade que os comissários
levavam sempre na bagagem a forma como os seus países viam os seus
interesses. Mas isso era até uma vantagem para encontrar consensos
entre a diversidade europeia.
Vimos esta mudança
ao vivo e a cores na forma como a Comissão actuou na avaliação do
draft do Orçamento português para 2016. Portugal teve de enfrentar
uma “barreira” política quase intransponível e predisposta a
fazer vergar um governo cuja composição não agradava ao PPE e aos
seus comissários. A começar pelo alemão, cuja intransigência foi
de tal ordem que acabou por ser desculpada pelo facto de estar a
participar na reunião através de videoconferência. Em alguns
nórdicos, sempre furiosamente contra o Sul, o antigo
primeiro-ministro finlandês Jyrki Katainan cumpriu o seu habitual
papel de ser mais alemão do que os alemães. Os comissários de
Leste foram fiéis ao seu comportamento habitual: se tiveram de fazer
duros sacrifícios para aderir à União e ao euro, que os outros
também os façam. Jean-Claude Juncker, que teve de gerir este
debate, foi ele próprio alvo das pressões do PPE do qual faz parte.
Como aconteceu em relação à Grécia, a única abertura veio do
comissário francês, Pierre Moscovici. Podemos sempre dizer que esta
divisão tem a ver com a ortodoxia orçamental e não com a cor
política. O presidente do Eurogrupo pertence ao Partido Trabalhista
holandês e não é, por isso, mais flexível. Mas as divisões
parecem hoje ir mais fundo do que isso. O PPE, confrontado com
surpresas eleitorais mais do que previsíveis perante o rolo
compressor da austeridade, parece disposto a evitar o contágio. Do
que eles não gostam em Portugal não é apenas a redução da dose
da austeridade. É sobretudo quem a faz. Temem uma reedição
portuguesa em Madrid. Como já foi dito e redito, o Governo português
negociou bem, nesta guerra que está muito longe do fim. O semestre
europeu inclui o chamado Procedimento dos Desequilíbrios
Macroeconómicos que medem o avanço das reformas destinadas, por
exemplo, à correcção dos défices e dos excedentes externos de
cada país ou ao excessivo endividamento, que podem ir até ao
“Procedimento por Desequilíbrio Excessivo”, com as respectivas
penalizações. Vamos ver o que acontece.
2. Entretanto, para
Angela Merkel, o problema número um já não é o euro mas a crise
dos refugiados. A cimeira da próxima segunda-feira com a Turquia,
que é o pilar da sua estratégia, é decisiva. Para bem da Europa, a
política de braços abertos da chanceler contém o que é essencial
numa resposta comum. Para mal dela própria, os alemães não
concordam, os seus rivais erguem a cabeça e os seus parceiros não
estão a colaborar, escancarando à luz do dia divisões que parecem
cada vez mais profundas. Aqui, a culpa é dos governos e não da
Comissão, que tem feito diligentemente o seu trabalho com propostas
sensatas. A Áustria diz que não é a “sala de espera da
Alemanha”, a Grécia, tratada pelos parceiros com uma arrogância
inaudita (mais uma vez, além de Portugal, foi a chanceler que a
defendeu), diz que não pode acarretar sozinha com o fardo dos
refugiados. A França mantém-se silenciosa. Os nórdicos começam a
deixar cair a sua máscara de tolerância. A Itália apoia a
Alemanha, porque, tal como a Suécia e a Grécia, sofrem directamente
na pele uma vaga humana com a qual não podem lidar sozinhas.
Merkel quer um
compromisso firme com Ancara na segunda-feira e está disposta a
pagar caro por ele, politica e financeiramente, desde que os seus
parceiros também estejam. Foi a Alemanha, sob a sua liderança
(apoiada pela França de Sarkozy) que travou as negociações de
adesão com a Turquia, propondo uma “parceria especial”. O seu
antecessor, Gerhard Schroeder e o Presidente Chirac defenderam a
posição contrária. A mudança teve obviamente fortes repercussões
na Turquia, onde a chegada ao poder dos islamistas moderados de Recep
Erdogan, em 2002, com uma opção claramente europeia e a disposição
de cumprir os critérios políticos necessários, entre os quais a
democracia e a protecção das minorias. Foi o que aconteceu durante
algum tempo. O recuo europeu traduziu-se numa elevada descrença da
opinião pública turca na Europa. As sucessivas vitórias de Erdogan
acabaram por revelar um líder autoritário e radical, que não quer
pagar o preço da sua aproximação à Europa, embora a adesão
continue a ser a linha oficial de Ancara.
A Turquia está hoje
a braços com uma crise regional profunda, despoletada pela guerra na
Síria, que pôs fim à sua política de “zero conflitos” com os
vizinhos, mas que não deu ainda lugar à uma política externa
consistente. De vez em quando lembra-se que é membro da NATO, mas só
quando lhe convém. Parece agora disposto agora a aceitar a
oportunidade que a mesma Merkel que lhe barrou o caminho lhe oferece,
com dinheiro (muito), dispensa de vistos, abertura de mais capítulos
nas negociações, que estão há muito congeladas. Muita gente,
antes da deriva autoritária de Ancara, chamou a atenção para o
papel estratégico da Turquia numa região de confluência difícil
entre a Europa e o mundo islâmico. Berlim descobriu agora esta
importância. A Turquia é a aposta mais forte da chanceler para
conter o fluxo migratório que continua a chegar à Grécia. Quer
convencer Ancara a reter os refugiados da Síria, permitindo que a
distinção entre os que fogem da guerra e os imigrantes económicos
seja feita no seu território. Amanhã veremos se os líderes
europeus seguem a vontade de Berlim e se entendem sobre uma agenda
comum. Não será, no entanto, agradável recorrer a um Governo que
todos os dias comete mais um atentado à liberdade de imprensa. O que
é irónico é que o futuro de Schengen esteja hoje nas mãos de
Erdogan. Ou talvez nem seja. O autoritarismo também tomou conta de
alguns países de Leste membros da União, sem que os seus parceiros
se tenham empenhado muito em fazê-los voltar aos valores
democráticos.
Sem comentários:
Enviar um comentário