Simplesmente
Marcelo
MANUEL CARVALHO
13/03/2016 - PÚBLICO
Na
reportagem da manhã de tomada de posse, os jornalistas das rádios
continuavam a falar do “Marcelo” sem lhe colar o pesado cargo
institucional de presidente
Nas ruas, na
mesquita de Lisboa, no ambiente mais freak do concerto na Praça do
Município, na chegada à Câmara do Porto onde uma mulher chorou de
felicidade, no meio do problemático bairro do Cerco, Marcelo Rebelo
de Sousa estreou um ambiente novo na vida política portuguesa. Por
uns dias, há um político que não é visto com a suspeição do
costume. Por momentos, celebra-se uma raríssima união entre o chefe
de Estado e a nação. Se houver uma remota possibilidade de um tempo
novo no país, esse tempo é o de Marcelo. Um tempo feito pelos
portugueses com base na necessidade de terem alguém no poder que
lhes seja próximo, que entendam, em quem confiem, gostem e acreditem
para os retirar das vidas tristes e sem esperança do presente.
Marcelo surge como a versão 3.0 do Presidente-Rei, o líder que,
como Sidónio Pais em 1917, chegou para abrir um novo ciclo de
expectativa e de esperança.
É óbvio que o
presidente se dá bem com o papel de estrela, mas é ilusório pensar
que esse papel é apenas um reflexo da sua personalidade. Não é.
Tudo aquilo foi reflectido, estudado e executado ao milímetro. O
plano de voo é fácil de entender: sobrevoar a influência dos
partidos e procurar a fonte do poder numa relação íntima com o
povo. Tudo o que pudesse aproximar Belém e as ruas foi aproveitado.
Marcelo é afecto, é sorriso, é consenso, é ecumenismo, é
tolerância religiosa, é multiculturalismo, é esquerda e é
direita, é aliado estratégico do Governo, da Assembleia e de todos
os seus partidos, é elo de ligação à Igreja, é promotor da
cultura erudita, do rock ou de manifestações mais suburbanas como o
rap, preocupa-se com o Porto, com a liberdade e com a modernidade sem
descurar a glória do Império nem recusar a crença no milagre de
Ourique, o mito fundador da nacionalidade. Sendo isto tudo e
conseguindo-o ser ao mesmo tempo com apreciáveis doses de
espontaneidade e autenticidade, é normal que queira tornar-se no
íman capaz de agregar o grosso da sociedade.
O discurso de tomada
de posse é a prova eloquente de que o presidente não organizou a
sua investidura com uma festa diversa e longa apenas por ser na
essência um político que adora a frivolidade e o populismo. Marcelo
Rebelo de Sousa percebeu que no actual clima de fractura entre os
dois “hemisférios políticos” há para ele uma oportunidade
única. Como sabe que nem a direita nem a esquerda estão dispostas a
conceder-lhe gratuitamente o papel de conciliador, o presidente tinha
de buscar músculo para essa estratégia nos portugueses. Tendo-os ao
seu lado e deixando à vista de todos essa aliança com o povo na
festa e na felicidade da rua, obtém um poder reforçado. Ele é o
herói convertido em “servidor desta Pátria de quase nove séculos”
que quer recuperar os valores da “identidade nacional feita de solo
e sangue”. Olhem se fosse Cavaco e Silva a dizer isto…?
Marcelo Rebelo de
Sousa tinha ainda assim de afirmar uma ideologia que lhe norteasse a
missão de “cicatrizar feridas destes tão longos anos de
sacrifícios”. Também aí falou mais para a sensibilidade média
do país do que para o Governo ou a oposição – embora seja
impossível não notar que as suas palavras espelhavam muito mais o
discurso da esquerda moderada do que da direita. Nenhum português
médio recusa a ideia de que as “finanças sãs desacompanhadas de
crescimento e emprego podem significar empobrecimento e agravadas
injustiças e conflitos sociais”; não é difícil subscrever a
teses de que o poder político tem de ser “corrector de injustiças”
e de atender com prioridade aos “que a mão invisível apagou,
subalternizou ou marginalizou”; é fácil subscrever a tese segundo
a qual temos “direito a uma sociedade em que não haja, de modo
dramaticamente persistente, dois milhões de pobres, mais de meio
milhão em risco de pobreza, e, ainda, chocantes diferenças entre
grupos, regiões e classes sociais”. Da mesma forma, está hoje
razoavelmente entendido pela maioria dos cidadãos (pelo menos os que
votaram no PS, PSD e CDS), que “sem rigor e transparência
financeira, o risco de regresso ou de perpetuação das crises é
dolorosamente maior”.
Em breve, este
estatuto de Presidente-Rei vai sofrer o teste com a realidade. Um
dia, tarde ou cedo, Marcelo Rebelo de Sousa vai esgotar o seu capital
de festas, solenidades e vistas ao estrangeiro e será convocado a
embrulhar-se nos prosaicos negócios da República. Só aí se verá
como vai aplicar o enorme capital político que acumulou nos últimos
meses. Se for capaz de moderar a crispação, se conseguir fazer
passar a mensagem de que Portugal vive tempos difíceis e que o
precipício continua ali ao lado, se combater a ilusão demagógica e
populista dos que acreditam que a vontade basta para calar os
mercados e pôr Bruxelas em sentido, se mantiver presente a ideia de
que ainda temos de viver em estado de alerta e de urgência, se for
capaz de fazer passar a mensagem de que o país de hoje tem talentos,
energias e competências como nunca teve e que, por isso, a crise não
é uma fatalidade, terá justificado este excepcional estado de graça
e merecido o seu mandato.
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