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OPINIÃO
O
Daesh cresce no multiculturalismo de gueto na Europa
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 29/03/2016 - PÚBLICO
Não
será surpreendente se o Daesh e outros grupos islamistas-jihadistas
continuarem a crescer no interior das sociedades europeias. O
terrorismo é a sua arma política. O gueto o seu habitat.
1. A discussão
sobre as razões mais profundas do terrorismo reemerge sempre que há
um novo atentado. As explicações são muito variadas e reflectem
diferentes visões do mundo. Alguns apontam causas de tipo
político-militar: as intervenções militares do Ocidente no Iraque,
na Líbia, a guerra da Síria, ou a questão da Palestina. Outros
sublinham causas de tipo económico-social: a pobreza generalizada do
Sul do Mediterrâneo face ao Norte, com uma população jovem e sem
perspectivas de futuro. Em qualquer discussão abrangente do
problema, estas explicações merecem uma reflexão séria. Mas o que
pretendo aqui efectuar é uma análise mais restrita. Após os
atentados terroristas do 13/N em Paris e 22/M em Bruxelas, começou a
emergir um padrão relativo ao perfil dos seus autores, que já era
discernível noutros atentados anteriores. Homem, jovem, de
nacionalidade europeia, com origens familiares fora da Europa,
tipicamente no Sul do Mediterrâneo, criado ou exposto a um ambiente
cultural e / ou religioso islâmico, vivendo num gueto nos subúrbios
de uma grande cidade europeia. É sobre esta faceta da questão que
vai incidir a análise.
2. As sociedades
europeias / ocidentais são hoje muito diversas face à realidade de
há meio século atrás. Abandonaram a ideia de uma cidadania
culturalmente homogénea, a qual foi substituída por uma cidadania
multicultural. O ideal é apreciável, especialmente face aos
excessos nacionalistas do passado e a modelos de cidadania pouco
inclusivos. Parece em sintonia com a diversidade do mundo
globalizado. Mas enfrenta um problema delicado. Entre as elites
políticas, empresariais, académicas e artísticas emergiu uma
cidadania cosmopolita e multicultural. Na grande maioria da população
a ideia não teve ressonância. O principal quadro de referência
continua a ser o Estado-nação, como se viu na crise da Zona Euro.
Há, ainda, um terceiro grupo, de crescente dimensão, onde esta
cidadania multicultural também não criou raízes. Esse grupo é a
da população oriunda de migrações não europeias, em especial do
mundo árabe-islâmico a Sul do Mediterrâneo. Em partes
substanciais, vive numa lógica de gueto, fechada sobre si própria,
afastada da sociedade dominante, quer no espaço físico —
tipicamente nos bairros pobres da periferia das grandes cidades, ou
nos centros históricos degradados —, quer culturalmente. Não
partilha dos valores seculares pós-modernos estruturantes da
sociedade envolvente.
3. Estamos perante
uma realidade nova da modernidade europeia. É verdade que a
existência de grandes clivagens económicas e sociais não é
novidade na história europeia. Os guetos de proletários miseráveis
também são bem conhecidos. Após a revolução industrial e o
triunfo do capitalismo, as ideologias políticas modernas surgiram
como resposta a essa nova realidade sociológico-política, dos
processos de urbanização e pauperização das massas anteriormente
rurais. Os confrontos políticos violentos não foram algo de
excepcional. Mas, apesar da profunda clivagem entre o proletariado e
a burguesia — e das lutas sociais e políticas —, existiam,
paralelamente, valores culturais e um passado histórico em comum
razoavelmente partilhados. Geravam um sentimento de pertença a uma
mesma comunidade nacional. Isso não existe no indivíduo que vive na
lógica do gueto, oriundo de uma cultura distante e com valores em
rota de colisão com o grupo maioritário da sociedade onde vive.
Formalmente é cidadão de um Estado europeu. Interiormente, essa não
é a sua identidade. A sua revolta não é em nome de uma ideologia
iluminista e secular.
4. A existência de
uma massa de indivíduos jovens e desintegrados nas grandes cidades
europeias surge como um terreno ideal para a propaganda e o
recrutamento do islamismo-jihadista. Este novo proletariado étnico
incorpora jovens de gueto, os quais se sentem excluídos da sociedade
dominante, desumanizados. Ambicionam o bem-estar material, que não
conseguem obter, mas não se sentem atraídos pelos seus valores.
Justa ou injustamente, culpam-na pela sua falta de perspectivas na
vida. Projectam nesta os seus falhanços pessoais e comportamentos
desviantes. Vêm a sociedade onde deveriam estar inseridos como
responsável pelos males do Islão, com o qual se auto-identificam e
lhes dá um sentimento de orgulho, de superioridade e de missão. O
sofrimento dos muçulmanos, do Afeganistão à Palestina, é também
o deles. Uma ilação parece torna-se cada vez mais nítida: o
multiculturalismo de gueto é uma benesse para o Daesh (Estado
Islâmico) e outros grupos islamistas-jihadistas. As ordens para
atentados terroristas poderão ter vindo de Raqqa, a “capital” do
Daesh na Síria, mas os executantes nasceram na Europa. Têm
documentos de identidade e passaportes europeus. Não se sentem
europeus. Sentem ódio aos europeus.
5. Como se chegou a
esta tragédia europeia? No passado, a obsessão com a homogeneidade
cultural, étnica, religiosa e linguística fazia para do credo
nacionalista, um credo amplamente partilhado por intelectuais e
políticos que endoutrinavam as massas nessa lógica. As
consequências foram desastrosas. Os excessos são hoje bem
conhecidas e amplamente criticados. Ao longo da segunda metade do
século XX e inícios do século XXI entrou-se numa nova fase. A
diversidade cultural, étnica, religiosa, linguística e de estilos
de vida, ocupou o lugar das obsessões nacionalistas do passado. Como
qualquer princípio estruturante de uma sociedade — o capitalismo
de mercado, por exemplo —, a diversidade cultural é boa até um
dado limite. Esse limite está, em qualquer caso, ligado à
capacidade de integração, numa determinada sociedade, de novas
populações. A questão não é apenas de número, de necessidades
da economia, ou de oportunidades no mercado de trabalho. É também
de distância cultural. Quanto mais próxima a cultura, mais fácil e
rápida a integração. Assim, quantidades significativas podem ser
facilmente integradas, e grupos relativamente pequenos podem nunca se
integrar. Com o multiculturalismo e transformar-se em gueto, a
questão em aberto é saber o que falhou. Foram as políticas de
integração, ou os limites de integrar novas populações que foram
ultrapassados?
6. A existência de
uma fractura cultural, em si mesma, não leva, automaticamente à
violência e ao terror, ou mesmo a problemas de segurança. Nem
podemos cair no simplismo distorcedor de considerar todos os não
integrados como radicais, ou propensos à violência. Por vezes, nem
sequer tiveram oportunidade de se integrar. Noutros casos, trata-se
apenas de um encerramento pacífico sobre si próprios, como forma de
autoprotecção. Mas, conjugando-se certas circunstâncias políticas,
internas e internacionais, como acontece actualmente com o Islão, a
probabilidade de alguns penderem para o radicalismo aumenta
significativamente. Os islamistas-jihadistas do Daesh e outros grupos
radicais sabem disso. Usaram-no a seu favor no 13/N em Paris e no
22/M em Bruxelas. Recrutaram gente para a violência e o terror.
Tentam criar um “exército de cidadãos-inimigos”. Preocupante é
o facto de muitos outros já estarem radicalizados pela sua
propaganda. A fronteira para a passagem à violência é ténue.
7. Os governantes
europeus vivem num mundo cosmopolita multicultural à parte, afastado
da realidade do cidadão comum. Ironicamente, o multiculturalismo de
gueto germina há décadas, não muito longe dos locais que
frequentam, perante a sua indiferença, ou ausência de qualquer
actuação eficaz para o reverter. Se, nas cimeiras europeias em
Bruxelas, tivessem de se deslocar aos bairros de Molenbeek ou de
Forest, teriam já percebido a sociedade explosiva que se está a
criar. O problema não é só da Bélgica. Aos guetos da periferia de
Bruxelas, acrescem os de Paris, Marselha, Londres, Birmingham,
Amesterdão, Roterdão, Colónia, Berlim, Malmö, etc. A lista é
longa e tem aumentado. O detonador do mal-estar são as
circunstâncias políticas internacionais e as intervenções
impensadas no Médio Oriente. Não será surpreendente se o Daesh e
outros grupos islamistas-jihadistas continuarem a crescer no interior
das sociedades europeias. O terrorismo é a sua arma política. O
gueto o seu habitat.
Investigador
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Em
Molenbeek recrutadores actuam como "traficantes à porta da
escola"
ANA FONSECA PEREIRA
29/03/2016 - PÚBLICO
SMS
foram enviados a jovens da comuna de Bruxelas incitando-os a
juntarem-se ao "combate aos ocidentais". Habitantes e
responsáveis locais dizem que pouco está a ser feito para travar
recrutamento.
As mensagens
chegaram domingo à noite, horas depois de hooligans ligados à
extrema-direita terem irrompido numa manifestação espontânea de
homenagem às vítimas dos atentados na capital belga. “Meu irmão,
porque não te juntas a nós no combate aos ocidentais? Faz a escolha
certa na tua vida”, lia-se no SMS enviado a jovens de Molenbeek, a
comuna de Bruxelas de onde saiu um terço dos belgas que foram
combater na Síria e que, desde os atentados de Novembro em Paris, se
tornou símbolo do fracasso para prevenir e combater o alastramento
do radicalismo na Europa.
“Esta gente está
a tentar apoderar-se dos nossos jovens de um fôlego”, acusa Jamal
Ikazban, deputado socialista no parlamento regional e conselheiro
municipal em Molebeek, que denunciou o caso às autoridades federais,
numa entrevista ao Guardian. O jornal britânico adianta que a
mensagem foi enviada de um número pré-pago, que não se encontrará
já activo, e é parte de um conjunto de mensagens no Facebook ou de
emails enviados nos últimos dias a um número indeterminado de
jovens – supostamente escolhidos entre as listas de contactos de
novos recrutas do Estado Islâmico.
“Isto é como ter
um grande traficante de droga à porta de uma escola. O sentimento é
o mesmo”, denuncia Ikazban, dizendo que é urgente “tirar esta
gente das ruas”. “Eles são predadores e os nossos jovens são as
suas vítimas.”
Desradicalização:
"Para cada pessoa há uma janela de oportunidade”
Uma semana depois
dos atentados que mataram 35 pessoas e deixaram mais de 340 feridas
na capital política da União Europeia, o grito de alerta pode
encontrar pouco eco junto das autoridades (mais preocupadas em
desmantelar o essencial da célula terrorista) ou da população
belga, indignada ainda com a carnificina provocada por homens
nascidos e criados no país. Mas quem conhece Molenbeek ou viu um
jovem familiar ignorar todos os apelos à razão e partir para a
Síria diz que, apesar das operações policiais anunciadas contra as
redes de recrutamento, pouco tem sido feito para travar o assédio.
A mãe de dois
rapazes que se juntaram às fileiras do Estado Islâmico contou
Guardian que um deles recebeu 140 telefonemas do recrutador nos dez
dias que antecederam a sua partida. Quando avisou a polícia de que o
filho estava prestes a embarcar para a Turquia, os agentes nada
fizeram. O mesmo diz Geraldine, mãe de um combatente que foi morto
na Síria, que alarmada com as intenções do filho avisou a “célula
de anti-radicalização” da polícia em Molenbeek, mas acabou por
descobrir que a magistrada que lhe poderia ter retirado o passaporte
recusou intervir alegando que ele era maior de idade.
Os nossos jovens
“estão a ser expostos a algo parecido com um cancro metastizado”,
alerta Jamal Zaria, imã de uma das mesquitas desta comuna, onde mais
de metade da população tem origem marroquina, o desemprego entre os
mais novos abeira-se dos 60% e o nível de criminalidade supera em
muito a média nacional. Os recrutadores “percebem que há aqui um
desespero que pode ser usado para doutrinar e recrutar estas
pessoas”, lamenta Ikazban, confessando-se “muito zangado” com a
incapacidade belga para estancar esta sangria.
A Bélgica é um
país dividido que não sabe combater o terror no seu interior
Mas há dedos
apontados também aos líderes da comunidade, a começar pelas
mesquitas. Em Novembro, a emissora alemã Deutsche Welle escrevia
que, em 1967, ao abrigo de um acordo que lhe garantiu petróleo a
preços mais baixos, a Bélgica autorizou a Arábia Saudita a formar
boa parte dos imãs que desde então pregam para as comunidades
magrebinas.
“Os imãs aqui [na
Europa] imitam os sauditas, estão empenhados em isolar os muçulmanos
do resto da sociedade. Foram emitindo fatwas como as que dizem que
dar a mão a uma mulher ou desejar Feliz Natal a um vizinho é haram
[pecado]”, disse ao jornal El País Hocine Benabderrahmane,
historiador e imã reformista de Bruxelas, lamentando que seja este o
discurso “que a juventude muçulmana europeia tenha escutado”
desde a infância. Responsável de um centro de reflexão islâmica,
Benabderrahmane, de origem argelina, diz não ter dúvidas de que o
salafismo, corrente que defende uma interpretação literal do Corão,
se tornou dominante no país: “Todos os dias vejo jovens
radicalizados que acreditam que só há uma versão do islão.”
Manifestação da
extrema-direita
Um extremismo que
alimenta outro, como bem demonstraram as centenas de radicais de
direita que no domingo tomaram de assalto o centro de Bruxelas,
interrompendo uma homenagem aos mortos nos atentados. A polícia
dispersou-os com canhões de água, mas pouco depois começou a
circular na Internet um apelo a uma manifestação no próximo sábado
em Molenbeek, “verdadeiro viveiro de islamistas” para exigir a
sua “expulsão da Europa”.
A concentração,
marcada para a mesma praça onde vive a família dos irmãos
Abdeslam, dois dos dez atacantes de Paris, foi convocada pela Geração
Identitária, um movimento de extrema-direita que segundo a rádio
belga RTBF defende a “Reconquista da Europa”. A burgomestre
Françoise Schepmans disse não ter recebido qualquer pedido para a
realização da manifestação, mas assegura que qualquer protesto do
género será proibido. “Quando lutamos contra o extremismo,
estamos a lutar contra todos os extremismos. Está fora de questão
deixar loucos furiosos expressar-se”, afirmou, àquela rádio. Mas
depois dos confrontos de domingo e com a extrema-direita a ganhar
fôlego à custa do terrorismo, ninguém descarta a hipótese de
incidentes violentos entre grupos locais e de hooligans.
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