domingo, 6 de março de 2016

Quer crescer à beira-Tejo? Amplie, não construa de novo, e verá o que ganha


Quer crescer à beira-Tejo? Amplie, não construa de novo, e verá o que ganha
Câmara de Lisboa fez uma interpretação do PDM que permite construir uma frente de betão de dez metros de altura e cem metros de extensão frente ao Tejo. Urbanistas dizem que não faz sentido

José António Cerejo / 7-3-2016 / PÚBLICO

A solução é simples. Se dispõe de um edifício na frente ribeirinha de Lisboa e está a pensar demoli-lo para construir um novo, mais espaçoso, esqueça. Mantenha a fachada daquele que lá está e peça à câmara o licenciamento de uma obra de alteração e ampliação. Nem imagina o que vai ganhar.

Teoricamente, poderá aumentar a área de construção até onde quiser, desde que não ultrapasse dez metros de altura de fachada. Para os lados não há problema. Terá naturalmente a limitação do terreno de que dispõe, certamente por concessão da Associação de Turismo de Lisboa (ATL), a que o município entregou a gestão dos espaços que eram do Porto de Lisboa e que agora são seus.
Também terá as restrições que o Plano Director Municipal (PDM) impõe em relação à proximidade do Tejo, à extensão das frentes edificadas e ao sistema de vistas. Fora isso, é só crescer. E poderá criar tantos pisos quantos os regulamentos autorizarem dentro dos dez metros da altura de fachada — em princípio três.
Mas se se lembrar de requerer o licenciamento de uma construção nova que venha substituir o edifício actual, então ficar-lhe-á cara a ideia: o novo edifício não poderá ir além da área de construção preexistente e terá de ficar pelos dois pisos.
Esta foi pelo menos a interpretação do n.º 2 do art.º 53.º do regulamento do PDM que os serviços de Urbanismo dependentes do vereador Manuel Salgado adoptaram para viabilizar a ampliação dos antigos restaurantes BBC e Piazza di Mare, em Belém.
Graças às propostas aprovadas por maioria numa reunião de câmara em Junho de 2015, os actuais concessionários daqueles espaços (grupo hoteleiro Sana/Azinor) foram autorizados a demolir a quase totalidade dos edifícios térreos existentes, construindo no seu local três pisos com uma superfície de pavimento que quase duplica aquela que lá estava. E se em vez do indicador superfície de pavimento se utilizar o da área total de construção de que fala o art.º 53.º do PDM, o aumento é ainda mais significativo.
Ora essa norma admite, para os espaços ribeirinhos, a “construção de novos edifícios (...) por substituição dos edifícios preexistentes, desde que não se verifique um aumento da área total de construção, os novos edifícios tenham uma altura de fachada máxima de dois pisos e não superior a dez metros (...)”. Relativamente à ampliação dos edifícios aí existentes, o PDM nada diz.
Daí parece resultar que das duas, uma: ou as ampliações não são permitidas, ou, a sê-lo, terão de se conter dentro dos limites fixados na citada norma para os novos edifícios.
Face à verosimilhança desta última leitura, o PÚBLICO perguntou há alguns meses à câmara se tinha aprovado um projecto que viola o PDM, atendendo ao aumento de área aprovado. A resposta, recebida dias depois da publicação do artigo, é taxativa: “Não existe violação do PDM.” Para explicar este entendimento, os serviços de Manuel Salgado sustentam que “as regras do n.º 2 do art.º 53.º referem-se apenas à construção de novos edifícios por substituição dos edifícios preexistentes.”
E acrescentam: “A reabilitação de edifícios existentes é condicionada a que a altura de fachada não ultrapasse os dez metros”, sendo que “no caso em apreço o aumento da área de construção é conseguido através da diminuição dos pés direitos interiores”. Esta interpretação, contudo, é posta em causa por vários urbanistas e arquitectos ouvidos pelo PÚBLICO.
Urbanistas criticam
“Não me parece haver grandes dúvidas de interpretação do n.º 2 do art.º 53.º do PDM de Lisboa”, afirma Pedro George, coordenador da Área Disciplinar de Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. Na opinião deste arquitecto, doutorado em Planeamento Urbano, “as restrições que se aplicam aos edifícios ‘novos’ estendem-se aos preexistentes que desejam requalificar-se a partir de uma demolição parcial do existente e ampliar (áreas ou pisos)”. De resto, acrescenta, “não faria qualquer sentido limitar os edifícios novos e deixar os existentes ampliarse à vontade do freguês...”.
No mesmo sentido pronuncia-se Paulo Correia, professor do Instituto Superior Técnico, antigo presidente da Associação dos Urbanistas Portugueses e antigo director-geral do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Urbano. “Em princípio, não pode haver aumento da área de construção preexistente [seja para edifícios novos seja para reconstruções], embora se preveja um regime excepcional a decidir discricionariamente” pela câmara municipal.
Paulo Correia nota ainda que “a protecção das vistas não deve ser só entendida como limitação da altura dos edifícios da frente ribeirinha, mas também por não se construírem edifícios paralelos ao rio em frente contínua”.
Outros especialistas ouvidos pelo PÚBLICO, que pedem para não ser identificados, entendem mesmo que, nos espaços ribeirinhos de Lisboa, não são permitidas quaisquer ampliações, porque o PDM nem sequer as contempla e porque as obras de alteração não podem implicar aumentos de áreas ou de pisos.
Isso mesmo se depreende do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (DL 555/99) que define “obras de alteração” como sendo aquelas “de que resulte a modificação das características físicas de uma edificação existente, ou sua fracção, designadamente a respectiva estrutura resistente, o número de fogos ou divisões interiores, ou a natureza e cor dos materiais de revestimento exterior, sem aumento da área total de construção, da área de implantação ou da altura da fachada”.
Nesta perspectiva, as obras de alteração nos espaços ribeirinhos só podem ser autorizadas se forem
objecto das mesmas condicionantes previstas para os edifícios novos.
Na hipótese de o entendimento adoptado pela câmara para os restaurantes BBC e Piazza di Mare estar de acordo com o PDM, observam, seria sempre possível evitar as condicionantes impostas aos edifícios novos recorrendo à figura da alteração/ampliação, mesmo que, como é o caso em Belém, da construção preexistente nada restasse a não ser uma parte das fachadas.
A única possibilidade que o art.º 53 do PDM admite para ali se aumentar a área e o número de pisos consiste na declaração, pela câmara, de que as obras previstas “revestem excepcional importância para a cidade”. Além disso, é preciso que “respeitem o sistema de vistas.”
Neste caso nunca foi invocada a figura da “excepcional importância para a cidade”. Quanto ao respeito pelo sistema de vistas, nem sequer foram apresentados os estudos de impacte visual exigidos pelo PDM.

Embargo mantém-se
Mesmo ao lado dos antigos restaurantes está em construção o Centro de Artes da Fundação EDP, cujo projecto também viola diversas normas do PDM. Neste caso, todavia, a câmara deliberou em 2013 atribuir-lhe o estatuto de excepcional importância para a cidade, decisão que foi sujeita a debate público como a lei exige.
Antes disso tinha aprovado um pedido de informação prévia que autorizava a EDP a construir um outro projecto muito contestado por violar o PDM e que suscitou severas críticas do provedor de Justiça.
Foi na sequência desta posição do provedor que a EDP decidiu reformular a proposta e a câmara declarou a sua excepcional importância, tornando possível a sua aprovação.
No caso dos antigos BBC e Piazza di Mare, a autarquia não só rejeitou uma primeira proposta dos seus serviços para que tal procedimento fosse equacionado — ainda que a importância da obra fosse incomparavelmente mais duvidosa do que a da EDP — como aprovou o projecto sem qualquer apreciação aprofundada face aos imperativos do PDM.
No essencial, escudou-se na sua viabilização prévia por parte da ATL, entidade privada que não tem qualquer competência de licenciamento. Foi aliás a ATL que o subconcessionou ao grupo Sana por 50 anos, sem recurso a hasta pública, num quadro que suscitou fortes críticas da oposição camarária.
No final de Janeiro, após uma notícia do PÚBLICO que apontava o facto de a altura aprovada ter sido ultrapassada, a câmara embargou a obra por incumprimento do projecto. Neste momento, os trabalhos continuam suspensos, mas os promotores estão a tentar que o embargo seja levantado, argumentando, entre outras coisas, que o terceiro piso, já construído, não deve ser contabilizado para medir a altura da fachada.
Na sua perspectiva trata-se de um piso recuado que não deve ser tido em conta. O recuo em questão ficase, no entanto, por cerca de meio metro em relação à vertical da fachada.
Paralelamente ao desembargo dos trabalhos, os promotores aguardam a aprovação de projectos de alterações que prevêem novos acréscimos das áreas totais de construção e da superfície de pavimento licenciadas.


Antes de serem demolidos, os dois restaurantes somavam uma superfície de pavimento de 1886m2. Os projectos aprovados contemplam um total de 3492m2 e as alterações agora propostas, só no caso do BBC, apontam para mais 198m2. A ligar os dois haverá um passadiço aéreo, ficando o conjunto com cem metros de comprimento.

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