Quer
crescer à beira-Tejo? Amplie, não construa de novo, e verá o que
ganha
Câmara
de Lisboa fez uma interpretação do PDM que permite construir uma
frente de betão de dez metros de altura e cem metros de extensão
frente ao Tejo. Urbanistas dizem que não faz sentido
José António
Cerejo / 7-3-2016 / PÚBLICO
A solução é
simples. Se dispõe de um edifício na frente ribeirinha de Lisboa e
está a pensar demoli-lo para construir um novo, mais espaçoso,
esqueça. Mantenha a fachada daquele que lá está e peça à câmara
o licenciamento de uma obra de alteração e ampliação. Nem imagina
o que vai ganhar.
Teoricamente, poderá
aumentar a área de construção até onde quiser, desde que não
ultrapasse dez metros de altura de fachada. Para os lados não há
problema. Terá naturalmente a limitação do terreno de que dispõe,
certamente por concessão da Associação de Turismo de Lisboa (ATL),
a que o município entregou a gestão dos espaços que eram do Porto
de Lisboa e que agora são seus.
Também terá as
restrições que o Plano Director Municipal (PDM) impõe em relação
à proximidade do Tejo, à extensão das frentes edificadas e ao
sistema de vistas. Fora isso, é só crescer. E poderá criar tantos
pisos quantos os regulamentos autorizarem dentro dos dez metros da
altura de fachada — em princípio três.
Mas se se lembrar de
requerer o licenciamento de uma construção nova que venha
substituir o edifício actual, então ficar-lhe-á cara a ideia: o
novo edifício não poderá ir além da área de construção
preexistente e terá de ficar pelos dois pisos.
Esta foi pelo menos
a interpretação do n.º 2 do art.º 53.º do regulamento do PDM que
os serviços de Urbanismo dependentes do vereador Manuel Salgado
adoptaram para viabilizar a ampliação dos antigos restaurantes BBC
e Piazza di Mare, em Belém.
Graças às
propostas aprovadas por maioria numa reunião de câmara em Junho de
2015, os actuais concessionários daqueles espaços (grupo hoteleiro
Sana/Azinor) foram autorizados a demolir a quase totalidade dos
edifícios térreos existentes, construindo no seu local três pisos
com uma superfície de pavimento que quase duplica aquela que lá
estava. E se em vez do indicador superfície de pavimento se utilizar
o da área total de construção de que fala o art.º 53.º do PDM, o
aumento é ainda mais significativo.
Ora essa norma
admite, para os espaços ribeirinhos, a “construção de novos
edifícios (...) por substituição dos edifícios preexistentes,
desde que não se verifique um aumento da área total de construção,
os novos edifícios tenham uma altura de fachada máxima de dois
pisos e não superior a dez metros (...)”. Relativamente à
ampliação dos edifícios aí existentes, o PDM nada diz.
Daí parece resultar
que das duas, uma: ou as ampliações não são permitidas, ou, a
sê-lo, terão de se conter dentro dos limites fixados na citada
norma para os novos edifícios.
Face à
verosimilhança desta última leitura, o PÚBLICO perguntou há
alguns meses à câmara se tinha aprovado um projecto que viola o
PDM, atendendo ao aumento de área aprovado. A resposta, recebida
dias depois da publicação do artigo, é taxativa: “Não existe
violação do PDM.” Para explicar este entendimento, os serviços
de Manuel Salgado sustentam que “as regras do n.º 2 do art.º 53.º
referem-se apenas à construção de novos edifícios por
substituição dos edifícios preexistentes.”
E acrescentam: “A
reabilitação de edifícios existentes é condicionada a que a
altura de fachada não ultrapasse os dez metros”, sendo que “no
caso em apreço o aumento da área de construção é conseguido
através da diminuição dos pés direitos interiores”. Esta
interpretação, contudo, é posta em causa por vários urbanistas e
arquitectos ouvidos pelo PÚBLICO.
Urbanistas criticam
“Não me parece
haver grandes dúvidas de interpretação do n.º 2 do art.º 53.º
do PDM de Lisboa”, afirma Pedro George, coordenador da Área
Disciplinar de Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade
de Lisboa. Na opinião deste arquitecto, doutorado em Planeamento
Urbano, “as restrições que se aplicam aos edifícios ‘novos’
estendem-se aos preexistentes que desejam requalificar-se a partir de
uma demolição parcial do existente e ampliar (áreas ou pisos)”.
De resto, acrescenta, “não faria qualquer sentido limitar os
edifícios novos e deixar os existentes ampliarse à vontade do
freguês...”.
No mesmo sentido
pronuncia-se Paulo Correia, professor do Instituto Superior Técnico,
antigo presidente da Associação dos Urbanistas Portugueses e antigo
director-geral do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento
Urbano. “Em princípio, não pode haver aumento da área de
construção preexistente [seja para edifícios novos seja para
reconstruções], embora se preveja um regime excepcional a decidir
discricionariamente” pela câmara municipal.
Paulo Correia nota
ainda que “a protecção das vistas não deve ser só entendida
como limitação da altura dos edifícios da frente ribeirinha, mas
também por não se construírem edifícios paralelos ao rio em
frente contínua”.
Outros especialistas
ouvidos pelo PÚBLICO, que pedem para não ser identificados,
entendem mesmo que, nos espaços ribeirinhos de Lisboa, não são
permitidas quaisquer ampliações, porque o PDM nem sequer as
contempla e porque as obras de alteração não podem implicar
aumentos de áreas ou de pisos.
Isso mesmo se
depreende do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (DL
555/99) que define “obras de alteração” como sendo aquelas “de
que resulte a modificação das características físicas de uma
edificação existente, ou sua fracção, designadamente a respectiva
estrutura resistente, o número de fogos ou divisões interiores, ou
a natureza e cor dos materiais de revestimento exterior, sem aumento
da área total de construção, da área de implantação ou da
altura da fachada”.
Nesta perspectiva,
as obras de alteração nos espaços ribeirinhos só podem ser
autorizadas se forem
objecto das mesmas
condicionantes previstas para os edifícios novos.
Na hipótese de o
entendimento adoptado pela câmara para os restaurantes BBC e Piazza
di Mare estar de acordo com o PDM, observam, seria sempre possível
evitar as condicionantes impostas aos edifícios novos recorrendo à
figura da alteração/ampliação, mesmo que, como é o caso em
Belém, da construção preexistente nada restasse a não ser uma
parte das fachadas.
A única
possibilidade que o art.º 53 do PDM admite para ali se aumentar a
área e o número de pisos consiste na declaração, pela câmara, de
que as obras previstas “revestem excepcional importância para a
cidade”. Além disso, é preciso que “respeitem o sistema de
vistas.”
Neste caso nunca foi
invocada a figura da “excepcional importância para a cidade”.
Quanto ao respeito pelo sistema de vistas, nem sequer foram
apresentados os estudos de impacte visual exigidos pelo PDM.
Embargo mantém-se
Mesmo ao lado dos
antigos restaurantes está em construção o Centro de Artes da
Fundação EDP, cujo projecto também viola diversas normas do PDM.
Neste caso, todavia, a câmara deliberou em 2013 atribuir-lhe o
estatuto de excepcional importância para a cidade, decisão que foi
sujeita a debate público como a lei exige.
Antes disso tinha
aprovado um pedido de informação prévia que autorizava a EDP a
construir um outro projecto muito contestado por violar o PDM e que
suscitou severas críticas do provedor de Justiça.
Foi na sequência
desta posição do provedor que a EDP decidiu reformular a proposta e
a câmara declarou a sua excepcional importância, tornando possível
a sua aprovação.
No caso dos antigos
BBC e Piazza di Mare, a autarquia não só rejeitou uma primeira
proposta dos seus serviços para que tal procedimento fosse
equacionado — ainda que a importância da obra fosse
incomparavelmente mais duvidosa do que a da EDP — como aprovou o
projecto sem qualquer apreciação aprofundada face aos imperativos
do PDM.
No essencial,
escudou-se na sua viabilização prévia por parte da ATL, entidade
privada que não tem qualquer competência de licenciamento. Foi
aliás a ATL que o subconcessionou ao grupo Sana por 50 anos, sem
recurso a hasta pública, num quadro que suscitou fortes críticas da
oposição camarária.
No final de Janeiro,
após uma notícia do PÚBLICO que apontava o facto de a altura
aprovada ter sido ultrapassada, a câmara embargou a obra por
incumprimento do projecto. Neste momento, os trabalhos continuam
suspensos, mas os promotores estão a tentar que o embargo seja
levantado, argumentando, entre outras coisas, que o terceiro piso, já
construído, não deve ser contabilizado para medir a altura da
fachada.
Na sua perspectiva
trata-se de um piso recuado que não deve ser tido em conta. O recuo
em questão ficase, no entanto, por cerca de meio metro em relação
à vertical da fachada.
Paralelamente ao
desembargo dos trabalhos, os promotores aguardam a aprovação de
projectos de alterações que prevêem novos acréscimos das áreas
totais de construção e da superfície de pavimento licenciadas.
Antes de serem
demolidos, os dois restaurantes somavam uma superfície de pavimento
de 1886m2. Os projectos aprovados contemplam um total de 3492m2 e as
alterações agora propostas, só no caso do BBC, apontam para mais
198m2. A ligar os dois haverá um passadiço aéreo, ficando o
conjunto com cem metros de comprimento.
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