Da
confiança dos mercados à desconfiança dos cidadãos
Nunca
a Europa foi tão mal vista pelos europeus, nunca a esperança desceu
tão baixo e a confiança pesou tão pouco.
Teresa de Sousa /
05/03/2016 / PÚBLICO
1.
Em Abril de 2013, o
The Guardian escrevia em letras grandes que a confiança dos europeus
na Europa tinha atingido o seu valor mais baixo de sempre. O jornal
britânico referia-se a um inquérito de opinião de Bruxelas, do
qual foram destacados os seis maiores países da União, devidamente
analisados por Ignacio Torreblanca, investigador do European Council
on Foreign Relations e habitual colunista do El País. O académico
espanhol escrevia que o declínio vertiginoso da confiança na União
nestes seis países se tinha transformado num pesadelo para os
governos europeus, a sul como a norte, revelando uma profunda crise
de legitimidade política e democrática. “O estrago é tão
profundo que não interessa se vem de um credor ou de um devedor, de
um futuro membro do euro ou do Reino Unido: todos estão pior”,
escrevia o académico espanhol. “As pessoas pensam que a sua
democracia está a ser subvertida pela forma como a crise do euro
está a ser conduzida”. O que é notável é que, quase três anos
depois, este alerta expresso em números não teve quaisquer
consequências. Pelo contrário, o desalinhamento entre a partilha
dos poderes orçamentais e económicos (partilha é apenas uma forma
elegante de dizer imposição) ao nível europeu e as preferências
dos cidadãos nacionais não parou de aumentar. A desconfiança
permaneceu. As divisões agravaram-se. A paisagem política mudou
acentuadamente, penalizando os partidos centrais e alimentando os
movimentos anti-sistema. A Europa fechou-se sobre si própria
enquanto o mundo mudava lá fora a grande velocidade. Quando deu por
ele, tinha outra crise à porta, ainda mais profunda, porque toca nos
seus valores essenciais. As enormes brechas abertas pela crise do
euro deixaram passar facilmente as profundas divisões reveladas pela
crise dos refugiados, que se traduz hoje numa guerra de todos contra
todos, num concurso para ver quem consegue apresentar medidas mais
dissuasoras, no regresso das fronteiras e dos muros, ameaçando
tornar-se numa crise humanitária de proporções gigantescas que “a
Europa decidiu auto-infligir-se”.
2.
Depois de seis anos
de crise, a confiança começa a ser um bem em vias de extinção,
ameaçando a partilha de soberania que está na génese da
integração. Jacques Delors chamava-lhe “espírito de família”,
mas era noutro tempo, quando a Europa era ainda ocidental e quando a
“igualdade entre os Estados”, inscrita nos tratados, obrigava a
encontrar consensos. Os europeus acreditavam, e tinham razões para
isso, que a Europa lhes era útil porque lhes garantia a prosperidade
e a paz e permitia preservar um “modelo social europeu” de longe
o mais generoso do mundo. Viram-na como uma protecção, quando a
globalização começou a soprar mais forte. A União não precisava
de qualquer outra forma de legitimação. Depois tudo começou a
mudar. O fim da ordem de Ialta permitiu alargar a União Europeia à
dimensão do continente, correspondendo ao “interesse vital” da
Alemanha unificada, que “queria ver-se rodeada de Ocidente por
todos os lados”, na expressão feliz do historiador Timothy Garton
Ash. Alargar a Europa era, de resto, um “dever histórico” para
com aqueles que a II Guerra deixara do lado errado da História, e um
objectivo estratégico para a Europa, de forma a expandir a
democracia e a estabilidade a todo o continente. A Alemanha já tinha
sacrificado o seu mais poderoso símbolo nacional, o marco, no altar
da integração europeia.
3.
Tudo voltou a mudar
com a crise financeira de 2008, que se transformou rapidamente numa
Grande Recessão. Foi nessa altura que Berlim viu na crise da dívida
soberana a oportunidade para fazer do euro a verdadeira moeda alemã.
Foram tempos de vendaval político, de sofrimento económico e
social, de crescente desconfiança, que deixaram marcas profundas e
que mudaram as regras do jogo da própria União. A confiança foi o
primeiro e mais visível dano colateral. Esgotou-se nas profundas
divisões entre o Norte rico e o Sul indisciplinado e “preguiçoso”,
transformadas em preconceitos “morais” e “culturais”, e a
divisão entre credores e devedores passou a dominar as políticas da
UE. A crise dos refugiados aumentou ainda mais as divisões e as
desconfianças, opondo todos contra todos, numa lógica do salve-se
quem puder, sem rumo e sem sentido, que hoje ameaça a própria ideia
de comunidade. Nunca a Europa foi tão mal vista pelos europeus,
nunca a esperança desceu tão baixo e a confiança pesou tão pouco.
Com um problema adicional, que é a descrença na própria
democracia. As duas crises influenciam-se e condicionam-se.
A crise de
refugiados divide a Europa DIMITAR DILKOFF/AFP
4.
Mas vamos a alguns
números. No Eurobarómetro divulgado na Primavera de 2015 pela
Comissão, verifica-se uma ligeira melhoria no nível de confiança
dos europeus na Europa, mesmo que a média esconda diferenças
relevantes. Em 2013, este valor tinha atingido o nível mais baixo de
sempre (34%), subindo agora para os 40%. A razão tem a ver com os
primeiros sinais de retoma económica e a queda do desemprego. O
mesmo estudo põe em evidência também percepções radicalmente
diferentes sobre o estado da economia: 86% dos alemães consideram
que a situação económica é boa; em Portugal, apenas 10% têm a
mesma opinião, para 89% que consideram que é má ou muito má. Do
mesmo modo, a simpatia pelo euro, que vinha a cair desde 2007 até
2013 (63 para 51%), começou a subir ligeiramente no ano passado: 57%
dos europeus pensam que continua a ser uma vantagem, para 36% com uma
opinião negativa. É esta aparente contradição que explica o facto
de os gregos votarem em Alexis Tsipras contra a austeridade sem lhe
dar a oportunidade de sair do euro. É também interessante verificar
o que os europeus mais valorizam na Europa: a livre circulação das
pessoas e as facilidades de Schengen (57%), a paz na Europa (55%) e o
euro, em terceiro lugar, com 23%. Quanto às ameaças, a imigração
é a primeira preocupação de 20 países europeus, seguida de uma
acentuada subida do terrorismo (sem contar ainda com Paris). A
situação económica e o desemprego vêm a seguir, relegando para o
fim as alterações climáticas. Portugal é uma das raras excepções,
mantendo o desemprego e a situação económica na frente. Estas
percepções mantêm-se no Eurobarómetro de Novembro de 2015, mas a
confiança na Europa a regressar ao seu curso descendente.
5.
Falta o outro lado
da moeda, que dispensa os estudos de opinião porque se revela
abertamente em todas as eleições: o declínio da confiança dos
europeus na própria democracia. Primeiro, foram algumas das
democracias do Norte que viram nascer e crescer partidos anti-sistema
e anti-Europa de forte natureza xenófoba, ao ponto de condicionarem
as políticas dos respectivos governos. Depois, foram as eleições
nos países que sofreram, de uma maneira ou de outra, processos de
resgate. O padrão é semelhante, quando olhamos para Portugal,
Espanha e Irlanda. Nesta última, que foi às urnas na semana
passada, a queda de popularidade do Governo, retirando-lhe a maioria
que mantinha com os trabalhistas, não se traduziu em ganhos para o
outro partido do regime. Houve uma dispersão, que já vimos em
Espanha e em Portugal, e que é o reflexo da falta de confiança dos
eleitores nos partidos tradicionais, estejam eles no Governo ou na
oposição. É uma mudança que não resulta apenas da situação
económica. Basta pensar que a economia irlandesa cresceu 7% em 2015
(mais do que a China), para verificar que isso já não chega para
recompensar o Governo. “Os votos dispersam-se pelos partidos
radicais, como os Verdes, o Sinn Fein ou a Aliança contra a
Austeridade”, diz à AFP David Farrell, do University College de
Dublin. “Há uma cólera contra o sistema político e uma grande
vontade de punir os partidos tradicionais pelas suas políticas
económicas”, diz o académico de Dublin. Os governos europeus e as
suas instituições poderiam ler nestes resultados um alerta. Não é
assim. A leitura dos resultados apenas parece levar em conta o ponto
de vista dos mercados, ignorando as escolhas dos eleitores: enquanto
Dublin procura uma solução de governo, a frase que mais se ouve é
que a “instabilidade irlandesa está a afectar a confiança dos
mercados”. O mesmo se diz para Espanha, quanto ao crescimento
económico, ou para Portugal, com a “instabilidade” da coligação
improvável mas maioritária que nos governa.
Há
uma cólera contra o sistema político e uma grande vontade de punir
os partidos tradicionais pelas suas políticas económicas
DAVID FARRELL, DO
UNIVERSITY COLLEGE DE DUBLIN
A percepção da
opinião pública é que a confiança dos mercados passou a ser mais
importante do que a confiança dos cidadãos. As suas escolhas não
se traduzem em alternativas, a política dos grandes partidos
europeus, à esquerda ou à direita, não muda de acordo com as suas
escolhas. Em Portugal, a luta por uma alternativa à ortodoxia alemã
(que a Comissão ministra diligentemente) é ameaçada
quotidianamente pela “confiança dos mercados”, pelas agências
de rating e pelos recados nada subtis das instituições europeias.
“Creio que caminhamos para uma instabilidade política profunda”,
diz à AFP Jean-Michel de Waele, da Universidade Livre de Bruxelas.
A desconfiança,
como diz também Torreblanca, não é apenas a sul. A Finlândia foi
um dos países mais recalcitrantes na ajuda financeira aos seus
parceiros periféricos. Hoje, a braços com uma recessão resultante
da queda do comércio com a Rússia e com a chegada dos refugiados
pela rota do Norte, assiste ao nascimento de um novo movimento
chamado Soldados de Odin, criado para patrulhar as ruas e proteger os
finlandeses dos refugiados. Escolheu um guerreiro viking como símbolo
e está a contagiar os países bálticos e a Noruega. A própria
confiança dos alemães na liderança da “mulher mais poderosa do
mundo” parece esgotar-se, apenas porque rejeitam a sua política de
“braços abertos”. A chanceler procura desesperadamente a
solidariedade europeia para partilhar o fardo e aliviar a pressão,
mas sem grande sucesso. As eleições em três länder no próximo
mês de Abril serão um teste decisivo à sua liderança, que será
medida pela subida eleitoral (ou não) da Alternativa para a
Alemanha. O jogo político já não se trava apenas entre os partidos
do sistema, até na estável e consensual Alemanha.
O European Social
Survey, que liga vários think tanks europeus, alertava em 2013 que a
crise “não só desgastou as condições económicas objectivas de
muita gente como criou uma onda de ansiedade sobre o futuro dos
respectivos países, mesmo daqueles que não sofreram directamente a
austeridade”, abalando a confiança nas elites políticas. Como
escrevia a The Economist a propósito da Irlanda, “a fragmentação
da política é o novo estilo europeu”. Já em Novembro de 2011 a
revista britânica avisava que “os esforços para salvar o euro não
podem manter-se indefinidamente contra a vontade dos eleitores”.
Parecia óbvio, mas aconteceu o contrário. Donald Tusk, o presidente
do Conselho Europeu, colocava assim o dilema essencial: “Como
construímos um novo modelo de soberania de forma a que as soberanias
nacionais necessariamente limitadas não se sintam dominadas pelos
grandes países como a Alemanha?” Ainda não há resposta. Sem a
confiança dos cidadãos, tudo se torna muito mais difícil,
incluindo, a prazo, a confiança dos mercados.
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