Em
Atenas, “parece que a qualquer altura há alguém prestes a
explodir”
MARIA JOÃO
GUIMARÃES (em Atenas) 01/07/2015 - PÚBLICO
Quem
escolhe o “não” é visto como ignorante, quem defende o “sim”
é tido como privilegiado. Cada lado acha que é o único a ter uma
atitude democrata.
Os partidários do
“não” estão a tentar impor a sua pequenez aos cosmopolitas que
defendem o “sim” e vão deitar tudo a perder. Quem defende o
“sim” está a impedir o país de conseguir um acordo melhor e vai
estragar tudo. A polarização aumentou ainda mais no debate grego,
com acusações graves de cidadãos comuns, de jornalistas, de
políticos.
Partidários do
“sim” dizem que uma decisão complexa como esta não devia ser
deixada nas mãos de pessoas que não têm informação suficiente
para a tomar. Os que vão votar “não” dizem que os defensores do
“sim” não perderam nada durante a crise e só querem manter o
seu estatuto privilegiado.
Políticos que
apoiam o “sim” acusam o Governo de ter tendências ditatoriais.
Os do “não” acham que vêm aí uma nova guerra civil. De uma
coisa, ambos estão certos: de que só eles estão a tentar “unir o
povo”, contra todas as provocações do outro lado. A tensão
sente-se.
Phillip, um jovem de
23 anos de camisa e gravata num café chique de Atenas, conta que a
última vez que notou algo parecido foi em 2009/2010, quando rebentou
a crise.
“Está a acontecer
outra vez. E não começou há semanas, começou mesmo há poucos
dias”, diz. “É uma atmosfera na rua, nos transportes. Parece que
a qualquer altura há alguém prestes a explodir”, lamenta. Mas
antes a explosão era por causa das dificuldades. Agora a isso
junta-se a exasperação com quem tem uma posição contrária.
O estudante de
relações internacionais e a acabar um mestrado em direito e
finanças internacionais lamenta que este ambiente de guerra entre
dois campos seja uma consequência do referendo. Não culpa a ideia
da votação, mas sim o modo como os gregos estão a reagir a ela:
“os suíços fazem dezenas de referendos, porque é que nós não
conseguimos?”
Philip está sentado
no Zonar’s, que se proclama orgulhosamente “le café d’Athènes”,
mas apesar disso sublinha que não é privilegiado. Explica a sua
situação em traços largos: o pai viu o vencimento diminuir de mil
euros mensais para 500, e são os avós que lhe complementam o
salário. Há a sensação de “vida falhada”, e, sim, de
“humilhação”. “E não podemos substimar os suicídios. Não é
uma questão apenas de números”, sublinha.
Eleitor do Pasok, o
partido socialista que caiu em desgraça após o seu então líder e
primeiro-ministro George Papandreou assinar o primeiro memorando com
a troika, não sabe o que vai votar no referendo. “Quero ler as
propostas de novo. Quero votar de modo racional, não sentimental”.
Philip garante que admite “todas as opiniões”. Menos uma: “Não
consigo respeitar quem diz que a minha avó é estúpida por votar
‘não’”. E há quem considere ignorante quem vote “não”
sem ter em conta que o motivo de muitas pessoas são as dificuldades
que têm tido, nota.
Um jornalista em
cada esquina
Numa crise que já
teve muitos momentos fortes, estes têm sido dias extraordinários.
No centro de Atenas tem-se a sensação de que há um jornalista em
cada esquina: câmaras apontadas a repórteres com microfones, de
preferência com uma fila para uma caixa multibanco como pano de
fundo.
Muitos gregos já
estão fartos de explicar pela enésima vez a jornalistas
estrangeiros como dependem de ajudas de pais e avós, como os
serviços públicos não funcionam por causa dos cortes, como já não
têm esperança.
Mas com o referendo
e todas as voltas e reviravoltas dos políticos, proclamam no
Facebook a sua posição em fotos de perfil ou longos ou acutilantes
comentários, que logo se enchem de apoios e críticas. As redes
sociais são um terreno especialmente perigoso. “Há de certeza
pessoas a perder oportunidades de trabalho e amigos”, diz o sensato
Philip.
Maria, técnica de
museu de 36 anos, apoiante do Syriza, é mais impulsiva. Agora está
irritada por uma crítica a um post que fez a defender o voto no
“não” no Facebook. Vem de uma pessoa que mal conhece mas
respeitava profissionalmente. Depois de ruminar e ruminar, lá lhe
responde. “Estive a pensar nas diferenças entre o lado do ‘não’
e do ‘sim’. Ao início achei que era a da luta de classes. Agora
não sei. Mas uma coisa acho que é certa: as razões para votar
‘não’ são mais diferentes do que as para votar ‘sim’: quem
vota ‘não’ pode querer sair do euro, ou negociar melhores
condições para um acordo. As pessoas que defendem o ‘sim’ têm
o mesmo motivo: não querem perder os seus privilégios.”
Um editorial no
jornal conservador Kathimerini apresentava a sua versão da mais
recente cisão na sociedade: “Não é baseada nas linhas
ideológicas e de classe do passado, mas na divisão entre os que
acreditam que podem impor os seus desejos ao mundo e os que querem
levar a Grécia a um ponto em que possa lidar com os desafios do
presente. É entre os gregos cheios de autocomiseração que olham
para dentro e os cosmopolitas que querem conquistar o mundo.”
Tendência
totalitarista
Políticos e
analistas estão longe de estar imunes a esta polarização.
No seu gabinete no
Parlamento grego, espera-nos Panagiotis Karkatsoulis, do partido To
Potami (O Rio), que apesar de pequeno (tem o mesmo número de
deputados do neonazi Aurora Dourada) se tem apresentado como o
partido que viabilizará sempre uma solução europeia para a Grécia
– primeiro declarando que apoiaria qualquer acordo negociado pelo
Syriza (“um mau acordo é melhor do que nenhum”), e agora
alinhando com os “partidos europeus” na campanha pelo “sim”.
Tentar entrevistar
Karkatsoulis é tarefa quase impossível, ele vai descrevendo a
situação – “uma tragédia, uma tragédia” – e mesmo entre
baforadas de cigarros e golos de café consegue continuar. Porque
para ele há um grande perigo: “Eu sou da geração que sabe o que
são ameaças à democracia. E, tenho pena de dizer isto, há sinais
de que este regime muito peculiar tem intenções totalitárias”.
Mas “nesta
situação de pesadelo”, apesar de “provocações do outro lado,
estamos a tentar manter a paz”, declara. “Queremos assegurar a
paz e a democracia e não dividir as pessoas, como estão a tentar
fazer”, conclui Karkatsoulis.
O deputado diz que
os institutos de sondagens não querem publicar nada porque “tudo
muda de hora a hora”. Mas “ouvi que estava 50%-50%”, com o
“‘sim’ a começar a ganhar terreno”.
Não muito longe do
Parlamento, na Faculdade de Direito da Universidade de Atenas,
Michalis Spourdalakis, professor de sociologia política próximo do
Syriza, também não é fácil de entrevistar mas por outro motivo: o
seu telefone toca a cada dez minutos. Spourdalakis cita outras
pesquisas de opinião que mostrariam também uma subida do ‘sim’
nos últimos dias, com uma diferença substancial – o ‘não’
estaria à frente. “Mas ninguém irá publicar isto”, diz.
Para um visivelmente
cansado Spourdalakis, a polarização que se está a viver é
assustadora. Mas imputa-a ao campo adversário: “O bispo de
Salónica apelou dentro de uma igreja – durante a missa! – a um
voto no ‘sim’. Se a tensão chega assim à igreja, o que vai
acontecer domingo? E na segunda-feira? Com a polícia, como sabemos,
infiltrada por elementos duvidosos?”
O barco e a ilha
Numa caixa
multibanco na praça Syntagma alguém escreveu: “Agora preocupam-se
com as filas nos bancos, mas preocuparam-se com as filas no centro de
emprego ou na sopa dos pobres?”
Eirini, funcionária
pública de 39 anos, não podia ser mais pró-“sim”, acredita que
se o “não” vencer a Grécia não tem futuro e terá de emigrar.
Há uns dias que praticamente não fala com o irmão, porque este
está em grande propaganda pelo ‘não’, e “todas as conversas
têm acabado mal”, diz com pena, quando se prepara para regressar
ao trabalho perto da praça Syntagma, café-gelado na mão. “Não
gosto que ele me veja como uma cobarde por causa de quem o país vai
ter um mau acordo”, lamenta.
O nível chegou a um
ponto que começaram a ver-se apelos à paz. A estudante Elena
publicou no Facebook um cartoon, com um náufrago numa ilha deserta e
um barco à deriva. O náufrago ao ver o barco acena em
contentamento: “Barco!”. O homem dentro do barco ao ver a ilha
diz, com esperança: “terra!” Em baixo, um comentário: “Sim ou
Não. Ambos os lados acreditam que a sua solução é o melhor para o
país. Vamos respeitar.”
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