quarta-feira, 1 de julho de 2015

EDITORIAL / PÚBLICO O ‘corralito’ argentino e o conselho à Grécia / Em Atenas, “parece que a qualquer altura há alguém prestes a explodir”

EDITORIAL / PÚBLICO
O ‘corralito’ argentino e o conselho à Grécia
DIRECÇÃO EDITORIAL 01/07/2015 - PÚBLICO

Tsipras garante que a Grécia não sai do euro – mas não pode garantir que o euro não sairá da Grécia.

A frase “Nunca pensámos viver este pesadelo – e o que vem aí pode ser pior” foi dita esta semana pela grega Katerina em Atenas na reportagem da enviada do PÚBLICO em Atenas, Maria João Guimarães. Mas bem que podia ter sido dita em 2001 por um qualquer argentino que nessa altura vivia dias muito parecidos com aqueles que estão hoje a ser vividos na Grécia. Depois de em 1991 ter feito a paridade entre o dólar e o peso para debelar a hiperinflação, a Argentina chegou a 2001 com a economia em cacos, com os bancos sem dinheiro, com os credores a exigirem reformas estruturais, com um default de dívida e com uma grande agitação política: foi a famosa semana dos cinco presidentes.

Que conselhos têm os argentinos para dar à Grécia? Não saiam do euro. O antigo ministro da economia Domingo Cavallo, que impôs à Argentina as medidas de controlo de capitais que ficaram conhecidas pelo "corralito", disse esta terça-feira à agência Bloomberg que a saída do euro iria provocar uma forte desvalorização do dracma e a inflação iria provocar uma grande erosão no valor real dos salários e pensões, o que significaria uma perda de poder de compra bastante superior àquela que teriam se aceitassem a austeridade que lhes está a ser imposta pela troika.

Isto não significa que o Governo grego deve cruzar as mãos e resignar-se perante a sede insaciável dos credores pela austeridade. Mas é preciso dizer a verdade aos gregos. O primeiro-ministro, Alexis Tsipras, diz que o voto "não" que ele defende no referendo de domingo não significa uma saída da zona euro. Mas é preciso explicar a quem vai votar que, não existindo mecanismos legais para a Grécia sair do euro (a união monetária), o euro (a moeda) pode sair da Grécia. A banca está fechada precisamente por falta de euros. Não se trata de fazer uma campanha de medo, mas, como diz Katerina, alertar que “o que vem aí pode ser pior”.

Em Atenas, “parece que a qualquer altura há alguém prestes a explodir”
MARIA JOÃO GUIMARÃES (em Atenas) 01/07/2015 - PÚBLICO

Quem escolhe o “não” é visto como ignorante, quem defende o “sim” é tido como privilegiado. Cada lado acha que é o único a ter uma atitude democrata.

Os partidários do “não” estão a tentar impor a sua pequenez aos cosmopolitas que defendem o “sim” e vão deitar tudo a perder. Quem defende o “sim” está a impedir o país de conseguir um acordo melhor e vai estragar tudo. A polarização aumentou ainda mais no debate grego, com acusações graves de cidadãos comuns, de jornalistas, de políticos.

Partidários do “sim” dizem que uma decisão complexa como esta não devia ser deixada nas mãos de pessoas que não têm informação suficiente para a tomar. Os que vão votar “não” dizem que os defensores do “sim” não perderam nada durante a crise e só querem manter o seu estatuto privilegiado.

Políticos que apoiam o “sim” acusam o Governo de ter tendências ditatoriais. Os do “não” acham que vêm aí uma nova guerra civil. De uma coisa, ambos estão certos: de que só eles estão a tentar “unir o povo”, contra todas as provocações do outro lado. A tensão sente-se.

Phillip, um jovem de 23 anos de camisa e gravata num café chique de Atenas, conta que a última vez que notou algo parecido foi em 2009/2010, quando rebentou a crise.

“Está a acontecer outra vez. E não começou há semanas, começou mesmo há poucos dias”, diz. “É uma atmosfera na rua, nos transportes. Parece que a qualquer altura há alguém prestes a explodir”, lamenta. Mas antes a explosão era por causa das dificuldades. Agora a isso junta-se a exasperação com quem tem uma posição contrária.

O estudante de relações internacionais e a acabar um mestrado em direito e finanças internacionais lamenta que este ambiente de guerra entre dois campos seja uma consequência do referendo. Não culpa a ideia da votação, mas sim o modo como os gregos estão a reagir a ela: “os suíços fazem dezenas de referendos, porque é que nós não conseguimos?”

Philip está sentado no Zonar’s, que se proclama orgulhosamente “le café d’Athènes”, mas apesar disso sublinha que não é privilegiado. Explica a sua situação em traços largos: o pai viu o vencimento diminuir de mil euros mensais para 500, e são os avós que lhe complementam o salário. Há a sensação de “vida falhada”, e, sim, de “humilhação”. “E não podemos substimar os suicídios. Não é uma questão apenas de números”, sublinha.

Eleitor do Pasok, o partido socialista que caiu em desgraça após o seu então líder e primeiro-ministro George Papandreou assinar o primeiro memorando com a troika, não sabe o que vai votar no referendo. “Quero ler as propostas de novo. Quero votar de modo racional, não sentimental”. Philip garante que admite “todas as opiniões”. Menos uma: “Não consigo respeitar quem diz que a minha avó é estúpida por votar ‘não’”. E há quem considere ignorante quem vote “não” sem ter em conta que o motivo de muitas pessoas são as dificuldades que têm tido, nota.

Um jornalista em cada esquina
Numa crise que já teve muitos momentos fortes, estes têm sido dias extraordinários. No centro de Atenas tem-se a sensação de que há um jornalista em cada esquina: câmaras apontadas a repórteres com microfones, de preferência com uma fila para uma caixa multibanco como pano de fundo.

Muitos gregos já estão fartos de explicar pela enésima vez a jornalistas estrangeiros como dependem de ajudas de pais e avós, como os serviços públicos não funcionam por causa dos cortes, como já não têm esperança.

Mas com o referendo e todas as voltas e reviravoltas dos políticos, proclamam no Facebook a sua posição em fotos de perfil ou longos ou acutilantes comentários, que logo se enchem de apoios e críticas. As redes sociais são um terreno especialmente perigoso. “Há de certeza pessoas a perder oportunidades de trabalho e amigos”, diz o sensato Philip.

Maria, técnica de museu de 36 anos, apoiante do Syriza, é mais impulsiva. Agora está irritada por uma crítica a um post que fez a defender o voto no “não” no Facebook. Vem de uma pessoa que mal conhece mas respeitava profissionalmente. Depois de ruminar e ruminar, lá lhe responde. “Estive a pensar nas diferenças entre o lado do ‘não’ e do ‘sim’. Ao início achei que era a da luta de classes. Agora não sei. Mas uma coisa acho que é certa: as razões para votar ‘não’ são mais diferentes do que as para votar ‘sim’: quem vota ‘não’ pode querer sair do euro, ou negociar melhores condições para um acordo. As pessoas que defendem o ‘sim’ têm o mesmo motivo: não querem perder os seus privilégios.”

Um editorial no jornal conservador Kathimerini apresentava a sua versão da mais recente cisão na sociedade: “Não é baseada nas linhas ideológicas e de classe do passado, mas na divisão entre os que acreditam que podem impor os seus desejos ao mundo e os que querem levar a Grécia a um ponto em que possa lidar com os desafios do presente. É entre os gregos cheios de autocomiseração que olham para dentro e os cosmopolitas que querem conquistar o mundo.”

Tendência totalitarista
Políticos e analistas estão longe de estar imunes a esta polarização.

No seu gabinete no Parlamento grego, espera-nos Panagiotis Karkatsoulis, do partido To Potami (O Rio), que apesar de pequeno (tem o mesmo número de deputados do neonazi Aurora Dourada) se tem apresentado como o partido que viabilizará sempre uma solução europeia para a Grécia – primeiro declarando que apoiaria qualquer acordo negociado pelo Syriza (“um mau acordo é melhor do que nenhum”), e agora alinhando com os “partidos europeus” na campanha pelo “sim”.

Tentar entrevistar Karkatsoulis é tarefa quase impossível, ele vai descrevendo a situação – “uma tragédia, uma tragédia” – e mesmo entre baforadas de cigarros e golos de café consegue continuar. Porque para ele há um grande perigo: “Eu sou da geração que sabe o que são ameaças à democracia. E, tenho pena de dizer isto, há sinais de que este regime muito peculiar tem intenções totalitárias”.

Mas “nesta situação de pesadelo”, apesar de “provocações do outro lado, estamos a tentar manter a paz”, declara. “Queremos assegurar a paz e a democracia e não dividir as pessoas, como estão a tentar fazer”, conclui Karkatsoulis.

O deputado diz que os institutos de sondagens não querem publicar nada porque “tudo muda de hora a hora”. Mas “ouvi que estava 50%-50%”, com o “‘sim’ a começar a ganhar terreno”.

Não muito longe do Parlamento, na Faculdade de Direito da Universidade de Atenas, Michalis Spourdalakis, professor de sociologia política próximo do Syriza, também não é fácil de entrevistar mas por outro motivo: o seu telefone toca a cada dez minutos. Spourdalakis cita outras pesquisas de opinião que mostrariam também uma subida do ‘sim’ nos últimos dias, com uma diferença substancial – o ‘não’ estaria à frente. “Mas ninguém irá publicar isto”, diz.

Para um visivelmente cansado Spourdalakis, a polarização que se está a viver é assustadora. Mas imputa-a ao campo adversário: “O bispo de Salónica apelou dentro de uma igreja – durante a missa! – a um voto no ‘sim’. Se a tensão chega assim à igreja, o que vai acontecer domingo? E na segunda-feira? Com a polícia, como sabemos, infiltrada por elementos duvidosos?”

O barco e a ilha
Numa caixa multibanco na praça Syntagma alguém escreveu: “Agora preocupam-se com as filas nos bancos, mas preocuparam-se com as filas no centro de emprego ou na sopa dos pobres?”

Eirini, funcionária pública de 39 anos, não podia ser mais pró-“sim”, acredita que se o “não” vencer a Grécia não tem futuro e terá de emigrar. Há uns dias que praticamente não fala com o irmão, porque este está em grande propaganda pelo ‘não’, e “todas as conversas têm acabado mal”, diz com pena, quando se prepara para regressar ao trabalho perto da praça Syntagma, café-gelado na mão. “Não gosto que ele me veja como uma cobarde por causa de quem o país vai ter um mau acordo”, lamenta.


O nível chegou a um ponto que começaram a ver-se apelos à paz. A estudante Elena publicou no Facebook um cartoon, com um náufrago numa ilha deserta e um barco à deriva. O náufrago ao ver o barco acena em contentamento: “Barco!”. O homem dentro do barco ao ver a ilha diz, com esperança: “terra!” Em baixo, um comentário: “Sim ou Não. Ambos os lados acreditam que a sua solução é o melhor para o país. Vamos respeitar.”

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