Aprender
com os erros do passado
JORGE ALMEIDA
FERNANDES 01/07/2015
Aprender com os
erros, recomenda Dominique Strauss-Kahn, o antigo director-geral do
FMI, a propósito da Grécia. “O FMI cometeu erros e estou disposto
a assumir a minha parte de responsabilidade”, escreve numa mensagem
divulgada sábado na Internet. Lamenta que os erros se continuem a
repetir. “A minha proposta é que a Grécia não receba nenhum novo
financiamento da UE e do FMI, mas que beneficie de uma grande
extensão da maturidade e até de uma redução maciça da dívida.”
Diz outra coisa
sensata: “Forçar os gregos a ceder criaria um precedente trágico
para a democracia europeia e poderia pôr em marcha uma incontrolável
reacção em cadeia.”
A mais reveladora
confissão é outra: “O FMI subestimou a profundidade das fraquezas
institucionais da Grécia.”
Se os dirigentes
europeus se tivessem dado ao cuidado de ouvir historiadores,
economistas e politólogos, gregos ou outros, teria ouvido, logo em
2010, um diagnóstico unânime: “O problema da Grécia não é
económico. É político e cultural.” Tem a ver com o funcionamento
das instituições.
A miopia das
“troikas”
Por miopia, a UE e o
FMI associaram a crise grega às crises da dívida em Portugal, na
Irlanda, em Espanha ou na Itália. A crise parece a mesma mas na
Grécia tem uma natureza distinta. O equívoco economicista da UE e
do FMI criou uma cortina de fumo, desviando a atenção do “problema
grego” para a “terapia do problema”. A UE não teve em conta o
carácter singular do Estado e da sociedade gregos. Sem Estado, não
se reforma. Sem reformas, a austeridade apenas fustiga a população
sem um horizonte de esperança. E os programas das “troikas”
passam a ser o “jugo estrangeiro”.
Para receber os
fundos, os governos de Atenas começaram por fazer cortes drásticos
na despesa. Mas resistiram a pôr em prática as “reformas
estruturais” porque estas encontravam poderosas resistências
políticas e sociais. A UE não percebeu que não tinha um
interlocutor credível. A decisão de fazer ou não as reformas cabe
aos gregos. À UE cabe tirar as consequências.
A Grécia não
tinha, e não tem ainda, um Estado moderno. Era um Estado
clientelista, com um aparelho fiscal risível e que obedecia à
lógica da “despesa sem imposto”, reproduzindo a herança otomana
da “economia de pilhagem”, na expressão do historiador Nicolas
Bloudanis. Nos otomanos, a pilhagem era fruto de expedições
militares. Na Grécia assentava — desde a independência — nos
empréstimos estrangeiros.
Já se escreveram
páginas inteiras sobre o “sistema grego”: um Estado tentacular,
uma administração pletórica e incompetente, centenas de profissões
privilegiadas e protegidas, uma endémica corrupção. Estado
tentacular mas débil, refém dos grupos de interesses e incapaz de
se reformar: para os velhos partidos, o Pasok (socialista) e a Nova
Democracia (conservadora), fazer reformas que ferissem os interesses
das suas clientelas seria um hara-kiri eleitoral.
Houve quem tentasse
as tentasse fazer. Em 2001, depois da entrada no euro, o socialista
Costas Simitis lançou um programa de “modernização económica e
social” duma estrutura “clientelista, estatista e improdutiva”.
Tentou tocar no sistema de pensões, celebrizado pela má gestão:
provocou uma revolta no partido e maciças manifestações nas ruas.
Perdeu as eleições seguintes.
O Pasok não abdicou
do nacional-populismo. E a prática dos conservadores da Nova
Democracia era a mesma dos socialistas. Até ao colapso financeiro de
2009.
A cultura política
A integração
europeia teve um efeito positivo e perverso. A Grécia tornou-se mais
moderna e rica. Por outro lado, a abertura da torneira dos
empréstimos não só fez crescer o clientelismo como agravou na
sociedade a cultura da “despesa sem imposto”. Os gregos, que
dispunham de invejáveis regalias sociais, tinham razões para gostar
do sistema.
Esta é uma das
raízes do grande equívoco da vitória do Syriza. Alexis Tsipras
soube criar a grande expectativa de um “regresso à idade de ouro”.
Denunciou, é certo, a corrupção e o clientelismo. Há também
dentro da constelação Syriza uma forte corrente que defende a saída
do euro, uma espécie de autarcia socialista e uma viragem das
alianças, privilegiando a Rússia.
Mas a consequência
prática — a que interessava aos eleitores — era outra. Resume o
historiador Stathis Kalyvas: “Dado que o Syriza se opõe a muitas
das reformas estruturais que são necessárias, (...) a aplicação
do seu programa exige nada menos do que um compromisso da UE em
financiar permanentemente os crescentes défices. Isto não é
realista.”
Não é realista mas
é apreciado. Mais de 70% dos gregos defendem a permanência no euro,
enquanto 60% aprovam a atitude intransigente de Atenas nas
negociações no Eurogrupo.
Por trás da
“cultura negocial” do Syriza, que alguns olham como “irracional”,
perfila-se a memória do socialista Andreas Papandreou, que governou
a Grécia entre 1981 e 1990. Triunfou graças à capacidade de
arrancar fundos europeus. Tribuno populista, não hesitou em usar a
chantagem geopolítica — como abandonar a NATO — para forçar a
mão a Bruxelas.
O Syriza partilha
algo desta cultura. Isolado na Europa, o governo grego recorre a duas
ameaças. A primeira é o eventual “efeito catastrófico” do
Grexit para o futuro da euro e da UE — encobrindo a verdadeira
catástrofe social e económica a que a Grécia se expõe.
O historiador
britânico Mark Mazower, especialista da Grécia contemporânea e que
durante algum tempo simpatizou com o Syriza, aponta a outra arma: “A
derradeira esperança de Tsipras reside na geopolítica —
explorando o medo ocidental de empurrar a Grécia para a órbita de
Vladimir Putin, entregando-lhe parte dos Balcãs.” Mas estes
receios têm um limite: não impressionam os eleitores alemães, por
muito que “tirem o sono” a Merkel e Obama (ver PÚBLICO de
domingo). Não esqueçamos que a coligação de Atenas une
extrema-esquerda e extrema-direita.
A Grécia tem uma
forte tradição nacionalista e, sobretudo, uma mitologia da
resistência ao “inimigo externo”, neste momento representado
pela UE que, na linguagem de Tsipras, quer “humilhar a Grécia”.
Por outro lado, a esquerda herdeira do comunismo grego tem uma
cultura de “derrotas heróicas” (Theo Angelopoulos) que a incita
a preferir a vitimização do passado ao compromisso com a realidade
no presente. A vitimização é, de resto, património histórico dos
gregos — vítimas de otomanos, alemães, ingleses, americanos e,
agora, da UE.
Que quer Tsipras com
o referendo de domingo? A ruptura com o euro, atear uma febre
nacionalista contra o inimigo estrangeiro, reforçar o seu poder ou é
uma jogada de póquer em que joga a própria sobrevivência política
para depois se vitimizar — ou tudo ao mesmo tempo? É arriscado
responder.
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