O
texto duro e obrigatório que temos de ler sobre a Alemanha e o
dinheiro
TEXTO HEINER
FLASSBECK
14.08.2016 às 11h00
Pedimos a um
especialista alemão que escrevesse sobre o futuro do Deutsche Bank a
propósito da sombra que também sobre ele agora cai nesta Europa da
crise monetária. Heiner Flassbeck, economista, ex-secretário de
Estado das Finanças e ex-conselheiro de Oskar Lafontaine sobre a
reforma do Sistema Monetário Europeu, respondeu-nos que o Deutsche
Bank é um pormenor num contexto alargado. E contrapropôs este texto
longo, técnico, duro e obrigatório que analisa em profundidade a
origem da crise do euro e consequentemente da Europa. Flassbeck
coloca a Alemanha no coração da origem da crise da moeda única,
revela o segredo do crescimento alemão nos últimos 15 anos (“o
país tem operado uma política de ‘pedinchar ao vizinho’, mas só
de pois de ter ‘pedinchado ao seu próprio povo’ essencialmente
através do congelamento dos salários - este é o segredo do sucesso
alemão dos últimos 15 anos”) e diz que sem um ajustamento da
maior economia europeia o fim da União ganha contornos de
possibilidade real. A perspetiva de desintegração e o decorrente
colapso da união já não podem ser ignorados, defende Flassbeck
Os últimos sete
anos têm sido um período tumultuoso para a Europa e o desassossego
está longe de ter acabado. A crise global que começou em 2007
conduziu a um choque financeiro agudo em 2008-9, o qual inaugurou uma
recessão em todo o mundo. A Europa - incluindo a Alemanha - foi
atingida em pleno quando o crédito contraiu e o comércio mundial
retraiu. A verdadeira crise na Europa, no entanto, começou em
2009-10 quando a recessão induziu o agravamento das finanças
públicas, desencadeando uma crise gigantesca na zona euro.
Crise sem fim à
vista
Havia poucas dúvidas
no início de 2015 de que a crise da União Económica e Monetária
Europeia (UEM) não tinha desaparecido. Medidas pouco ortodoxas
tomadas pelo Banco Central Europeu (BCE), em particular a sua
promessa de fazer “o que fosse necessário” para estabilizar o
sistema monetário em 2012, acalmaram os mercados financeiros e
forneceram espaço para que a política económica agisse de forma
estabilizadora.
Apesar disso, ao
nível das instituições europeias parece estar a crescer a
consciência de que são necessárias mudanças radicais para tornar
o sistema mais resistente. E até além da obsessão tradicional com
os défices fiscais e dívidas dos governos, a adoção de um
mecanismo de aviso precoce para lidar com o núcleo do problema foi
acionado com bastante rapidez. A introdução de um Procedimento por
Desequilíbrios Macroeconómicos, destinado a lidar com os saldos de
conta corrente existentes e futuros e orientar os Estados-membros no
sentido de um comércio mais equilibrado, significou algum progresso
na compreensão de que uma união monetária requer, acima de tudo,
coordenação da evolução dos preços e dos salários.
HEINER FLASSBECK A
Alemanha tem de se reajustar, previne o economista
Uma união monetária
é antes e acima de tudo uma união de países que querem abdicar das
suas moedas nacionais com o objetivo de criar uma moeda comum.
Abdicar de uma moeda nacional implica renunciar ao direito de as
autoridades nacionais imprimirem moedas e notas e, deste modo,
implantar dinheiro nacional (dinheiro fiat). Entrar numa união
monetária também implica abdicar dos objetivos de inflação
nacionais e concordar com uma meta de inflação comum de uma união.
Quais são as
maiores determinantes da inflação? A prova mais importante é a
correlação alta e estável entre a taxa de crescimento do custo das
unidades de trabalho (CUT) e a taxa de inflação. Os custos da
unidade de trabalho parecem ser a determinante crucial dos movimentos
gerais de preço nas economias nacionais, bem como em grupos de
economias. Se a forte correlação entre o CUT e a inflação fosse
reconhecida e colocada no coração da análise macroeconómica,
tornar-se-ia claro que o principal requisito para unidade monetária
de sucesso não seria o controlo sobre os assuntos monetários, mas a
gestão das receitas e dos salários nominais. Para ser específico,
o objetivo de inflação comum para a UEM foi definido pelo BCE a uma
taxa próxima de 2%. Isto implicava que a regra de ouro para o
crescimento salarial em cada economia seria a soma do crescimento de
produtividade nacional mais 2%. Por esta medida, não ocorreriam as
grandes discrepâncias de inflação que levam às discrepâncias de
competitividade entre os Estados-membros.
INDÚSTRIA A Siemens
é um dos gigantes alemães que contribuiu para que o país não
baixasse as exportações
As preparações
para a UEM foram profundamente falhadas porque em vez de se
discutirem em detalhe as implicações de uma união monetária e em
vez de se criarem as instituições necessárias para gerir com
sucesso uma tal união, o debate político e as decisões tomadas nos
anos até 1997 - altura em que os critérios para a entrada tinham de
estar cumpridos - na realidade focaram-se na política fiscal.
Enfatizou-se em particular a limitação dos défices do sector
público a 3% do PIB, enquanto a necessidade de evitar os
diferenciais de inflação e garantir a capacidade de os
Estados-membros cumprirem ao longo do tempo os objetivos comuns de
inflação foram olhados como questões muito menos importantes para
o suave funcionamento da UEM.
A Alemanha, com a
sua intolerância absoluta a que a inflação excedesse os 2% e a sua
tradição monetarista dogmática, silenciou qualquer outro ponto de
vista sobre a inflação. No entanto, a Alemanha, o maior país da
União Europeia e o bastião da estabilidade de várias décadas,
decidiu experimentar um novo modo de combater o seu alto nível de
desemprego. Em conjunto com os empregadores, o Governo pressionou os
sindicatos para tentar restringir o crescimento nominal e real dos
salários.
Diferenças
sensíveis
A nova abordagem
alemã ao mercado de trabalho coincidiu com a introdução formal da
união monetária, o que levou consequentemente a enormes
divergências nos custos nominais de unidades de trabalho entre os
membros da UEM. A principal causa destas divergências foi o simples
facto de os custos nominais das unidades de trabalho, a mais
importante determinante de preços e competitividade, se terem
mantido essencialmente sem oscilações desde o início da UEM. Em
contraste, a maioria dos países da Europa da Sul tinha um
crescimento nominal dos salários que excedia o crescimento da
produtividade nacional mais o objetivo de inflação acordado em
comum de 2% por uma margem baixa, mas bastante estável.
França foi o único
país que cumpriu exatamente o objetivo de crescimento nominal dos
salários. Os salários franceses subiram em paralelo com a
performance da produtividade mais o objetivo de inflação do BCE a
uma taxa perto de 2%.
Embora a divergência
anual entre os aumentos nos custos de unidades de trabalho fosse
relativamente pequena, a dinâmica dessa “pequena” divergência
anual é capaz de, com o tempo, produzir diferenças enormes. No
final da primeira década de UEM, o custo e diferença de preço
entre a Alemanha e a Europa do Sul chegava aos 25% e entre a Alemanha
e França chegava aos 15%. Por outras palavras, a taxa de câmbio
real da Alemanha tinha baixado muito significativamente, embora as
moedas nacionais já não existissem na UEM. A divergência no
crescimento dos custos das unidades de trabalho já não existiam no
seio da UEM. A divergência no crescimento dos custos das unidades
era naturalmente refletida nas divergências de preço equivalentes.
Assim, a UEM como um todo alcançou quase na perfeição o objetivo
de inflação de 2%, mas as diferenças de inflação nacionais no
seio da união foram muito sensíveis.
TUMULTOS Na Europa
do Sul multiplicaram-se as manifestações antieuropeístas com a
Grécia à cabeça. E à beira da miséria
É inegável que a
depreciação real que aconteceu na Alemanha teve um enorme impacto
nos fluxos de comércio. Com os custos de unidades de trabalho na
Alemanha mais baixos relativamente aos dos outros países por uma
margem crescente, as exportações alemãs floresceram enquanto as
importações abrandaram. Os países na Europa do Sul e também
França e Itália começaram a registar défices comerciais e de
conta corrente crescentes e sofreram enormes perdas nas suas quotas
dos mercados internacionais. A Alemanha, ao contrário, conseguiu
preservar a sua quota apesar da competição global crescente com a
China e com outros mercados emergentes. Num casulo, a Alemanha tem
operado uma política de “pedinchar ao vizinho”, mas só de pois
de ter “pedinchado ao seu próprio povo” essencialmente através
do congelamento dos salários. Este é o segredo do sucesso alemão
dos últimos 15 anos.
O comércio dentro
da Europa tinha sido bastante equilibrado até ao início da união
monetária e ao longo de muitos anos antes disso. A UEM marcou o
início de um período de desequilíbrios rapidamente crescentes. Até
após o choque da crise financeira e dos seus devastadores efeitos no
comércio mundial, que são claramente visíveis no equilíbrio
alemão, a tendência de fundo manteve-se sem mudar. A conta-corrente
alemã continuou a aumentar depois de 2010 e até alcançou um novo
recorde em 2015, da ordem dos 250 mil milhões de euros, um valor
próximo de 9% do PIB.
A Alemanha tem de se
ajustar
Num mundo de taxas
cambiais flutuantes ou ajustáveis, nenhum país pode ganhar uma
vantagem permanente relativamente a outro país se este último
tivesse a opção de ajustar as suas taxas cambiais de acordo com os
diferenciais da inflação. Isto significa que seriam inúteis todas
as tentativas para melhorar a competitividade por via de corte ou
moderação de salários na UEM como um todo. E, no entanto, esta foi
precisamente a abordagem escolhida pela Europa como saída para a
crise. Foi também uma má opção porque o corte salarial na maioria
dos países devedores conduziu a quebras severas na procura
doméstica, que é mais importante do que a procura externa. A
restrição dos salários foi contraproducente em economias com uma
taxa de exportação do PIB muito inferior a 50%.
Numa união
monetária, um país com uma taxa de exportação baixa que enfrente
problemas de défice de conta-corrente muito alto devido a uma moeda
implicitamente sobrevalorizada fica sem saída. O ajuste dos salários
para baixo, por vezes erroneamente chamados “desvalorização
interna”, não só não é solução como também destrói tanto a
procura interna como a produção antes que venha a trazer algum
alívio através de aumento das exportações.
É por isto que o
processo de ajustamento no seio da UEM tem de ser pelo menos
simétrico. Significa que o país que tenha implicitamente
desvalorizado a sua taxa cambial - a Alemanha - teria de fazer um
forte esforço de ajuste crescente, isto é, aumento de salários,
enquanto outros países teriam de ajustar lentamente para baixo.
TROIKA A verificação
aos países devedores pelos peritos da troika (Comissão Europeia,
BCE e FMI) é uma das imagens de separação entre Norte e Sul
O incentivo mais
fiável para o sucesso dos esforços de ajustamento em ambos os casos
seria de novo o objetivo de inflação. Se o objetivo de inflação
comum não fosse questionado, para restaurar a competitividade
internacional dos défices dos países seria necessário aumentar os
custos das unidades de trabalho e inflação no país com excedente
ao ponto de se conseguir alcançar o balanço externo em ambos os
lados da união monetária (incluindo os primeiros dez anos).
UEM dirige-se para o
desastre
Em meados de 2016, o
desemprego na UE continuava nos 10%. Em Espanha e na Grécia, o
desemprego estava acima dos 20% e o desemprego jovem era superior a
uns extraordinários 50%. Mais do que qualquer outra coisa, estes
números mostram o insucesso da UE na luta contra este problema que
emergiu como a “crise da zona euro”. Enquanto a queda
significativa de crescimento e emprego foi inicialmente provocada
pela crise global de 2007-9, após 2010 as nações devedoras da UEM
ficaram privadas de meios para combater a recessão e foram forçadas
a adotar políticas pró-cíclicas numa escala que não se via desde
os anos 30.
O mantra alemão que
diz “a austeridade é a única solução” foi aplicado a todos os
países, que foram forçados a pedir ajuda quando acabou o seu acesso
aos mercados globais, ou quando ele lhes foi vedado de facto pelas
altíssimas taxas de juro. A obsessão com os aparentes problemas
fiscais dominou o debate e as condições que foram exigidas pela
troika e pelo Eurogrupo para abrir os cofres das nações credoras
concentrou-se na consolidação a qualquer preço e o mais rápido
possível dos orçamentos públicos dos países do défice.
As divergências
acumuladas durante os primeiros anos da UEM e a terrível natureza
dos programas de ajustamento puseram em questão a própria
sobrevivência da UE
Com a persistência
do domínio alemão dos mercados de exportação e dada a recusa
alemã de ajustar o seu próprio modelo económico, o futuro da zona
euro parece sombrio. A falta de instrumentos de política para atacar
a recessão, o condicionamento dos programas de ajustamento impostos
às economias em crise, o próprio ajustamento “estrutural”
disfuncional e a perspetiva de deflação continuada aumentaram os
custos de permanecer na UEM ao ponto de a subida política da direita
ameaçarem a democracia e a União Europeia. O insucesso na descida
das taxas de desemprego e a crescente pobreza abriu caminho aos
partidos de direita populistas e antieuropeus, tanto nos países
credores como nos devedores. Contra esse perigo, os benefícios de
ser membro da UEM são pequenos e, mais importante ainda, estão a
diminuir depressa.
Em resumo, as
divergências acumuladas durante os primeiros anos da UEM e a
terrível natureza dos programas de ajustamento puseram em questão a
própria sobrevivência da UE. E, no entanto, os líderes europeus
parecem alheios a isso. Parecem ainda menos disponíveis para
empreenderem um esforço político para inverter a economia em geral
e impedir as divergências crescentes no seio da UEM. A perspetiva de
desintegração e o decorrente colapso da união já não podem ser
ignorados.
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