segunda-feira, 29 de agosto de 2016

O turismo low cost está a estragar Lisboa?


O turismo low cost está a estragar Lisboa?
27 Agosto 2016
João Pedro Pincha

Vêm em companhias de baixo custo para fazer escapadinhas baratas na capital. Comerciantes e moradores queixam-se de que gastam pouco e sujam muito. As críticas fazem sentido? O que dizem os números?

As amigas de Amalia não precisaram de pensar muito. Mal ela disse “sim”, que queria casar-se, a escolha foi óbvia. Era em Lisboa que a saragoçana ia dizer adeus à vida de solteira. “Elas sabem que eu gosto muito de Lisboa. É uma das minhas cidades preferidas”, explica Amalia Espinosa ao Observador, um ano depois da festa. Foram dois dias intensos. O grupo de amigas chegou numa sexta-feira ao final do dia e seguiu logo para um restaurante. Depois do jantar, correram alguns bares e discotecas lisboetas. No dia seguinte, como a noite tinha acabado tarde, não se meteram em grandes aventuras. Apanharam um comboio no Cais do Sodré e ficaram todo o dia deitadas numa praia de Cascais.

É verdade já escrita mil vezes (ou mais). Lisboa está na moda e os turistas estrangeiros não param de chegar. Mas não são só os monumentos, os museus, o sol e a gastronomia que atraem os visitantes da capital. Nos últimos anos, fruto do passa-a-palavra e de uma série de artigos em meios de comunicação social, a vida noturna tornou-se um dos atrativos lisboetas. Na infindável lista dos textos com dez, sete, cinco e muitas razões para visitar Lisboa, raramente faltam referências ao baixo custo da cerveja e da vida em geral, ao número de bares e discotecas existentes e à facilidade com que as pessoas se reúnem na rua e bebem uns copos — algo que, em vários países europeus, é impossível ou quase.

“O melhor de Portugal é que jantar fora e sair à noite é barato”, diz Amalia, que não se cansa de elogiar Lisboa. “Tem muita vida. Os restaurantes são muito bonitos, há muitos bares e as pessoas são muito simpáticas.” Antes desse fim de semana em junho de 2015, ela já tinha participado na despedida de solteira de uma amiga, também em Lisboa. Em ambas as ocasiões, ficaram em hostels no Bairro Alto, um dos corações onde a noite mais palpita. “É outra coisa boa de Lisboa: tem hostels para jovens muito porreiros e muito baratos! Em Espanha não há isso”, afirma. Nem mesmo em Barcelona?, provocamos. “Uff, não, não. Há muito melhor qualidade em Lisboa.”

O Bairro Alto a uma qualquer sexta ou sábado à noite (Fotografia: ANDRÉ CORREIA/OBSERVADOR)

O turismo na capital está bem e recomenda-se, dizem todos os indicadores estatísticos. Os habitantes do centro, no entanto, têm coisas a acrescentar à realidade dos números. “Temos sentido que o tipo de turismo que chega à nossa zona é mais jovem, que procura mais a noite”, explica Nuno Santos, dirigente da associação A Voz do Bairro, que representa moradores do Bairro Alto e de Santa Catarina. Por si só, isso não é mau. Nestas zonas, e também na Bica e no Cais do Sodré, acentuou-se uma tendência que já vinha de trás. Os turistas não fizeram mais do que imitar o que os lisboetas já faziam: beber na rua, falar alto na rua, sujar a rua. “Potencia-se a vida noturna não existente em alguns países de origem, com maior liberdade e consumo barato”, resume Nuno Santos, que é igualmente gestor de hotéis na região de Lisboa.

O problema, diz, é quando, entre portugueses e estrangeiros, há cerca de 200 mil pessoas a procurarem o Bairro Alto e o Cais do Sodré às sextas e sábados à noite. As limitações físicas dos espaços fazem com que “o culto do bar” e “o ambiente do bar” se percam e se passe a olhar para a rua “como ponto de referência”, refere.

O mesmo é sentido em Alfama, um bairro sem grande tradição noturna que tem passado por grandes alterações nos últimos anos. Além de a oferta de casas para arrendamento turístico e de hostels ter aumentado significativamente, também o número de bares e restaurantes cresceu. O que, repita-se, não é intrinsecamente mau. A manhã seguinte é que, muitas vezes, traz surpresas desagradáveis para os habitantes. “As pessoas queixam-se do barulho, que há muita sujidade nas ruas, que o espaço público está muito degradado.” No Largo do Chafariz de Dentro, mesmo em frente ao Museu do Fado, as esplanadas estão cheias de turistas estrangeiros. Lurdes Pinheiro, dirigente da Associação do Património e População de Alfama e ex-presidente da Junta de Freguesia de Santo Estêvão, sorri e diz que gosta de ver o bairro assim, cheio de gente. Mas não a qualquer preço. “O turismo faz bem, mas com conta, peso e medida.”

Alfama é o bairro onde os turistas querem estar, mas isso trouxe importantes mudanças ao local (Fotografia: PATRICIA DE MELO MOREIRA/AFP/Getty Images)

É uma frase tão repetida como as mil vezes que já se disse que Lisboa estava na moda, mas Lurdes Pinheiro não se importa. Apesar de muitas famílias estarem a beneficiar diretamente do boom turístico, arrendando casas ou quartos, “não é assim tão linear que o bairro ficou a ganhar”, argumenta. Muitos comerciantes de Alfama queixam-se de que os turistas gastam pouco dinheiro e, por vezes, trazem chatices como o barulho e a sujidade.

Polacos e franceses lideram

A ideia que corre entre muitos lisboetas é a de que os estrangeiros chegam através de companhias aéreas low cost, ficam em hostels ou quartos baratos e gastam o mínimo possível. “O tipo de turista que recebemos hoje em dia é um turista com muito menos poder de compra”, assume Nuno Santos. E é uma bola de neve: com menos dinheiro para gastar, as pessoas tendem a fazer compras em sítios mais baratos. E os sítios mais baratos são, frequentemente, as lojas de conveniência que têm aparecido como cogumelos um pouco por toda a parte. Para quê pagar 1,50 euros (ou mais) por uma imperial quando se pode pagar 1,20 por um litro de cerveja?

Comparativamente a outros destinos europeus, Lisboa é uma cidade barata. Amalia Espinosa confirma-o e pensa que isso tem sido responsável por uma redescoberta espanhola da capital portuguesa. “É a cidade perfeita para fazer turismo, praia e à noite tem muita vida. Cada vez conheço mais gente que vai fazer despedidas de solteiro e viagens a Lisboa. Os espanhóis estão a gostar cada vez mais de Portugal”, afiança.

No Bairro Alto, este é um cenário recorrente (Fotografia: ANDRÉ CORREIA/OBSERVADOR)

Afinal, o que dizem os números? Os últimos dados estatísticos da hotelaria mostram que o número de dormidas aumentou em todo o país, mas que na Área Metropolitana de Lisboa foi onde o crescimento foi menor (5,6% no primeiro semestre do ano contra, por exemplo, 15,6% da região Norte). Além disso, os polacos e os franceses lideram as subidas.

Para analisar exclusivamente a realidade de Lisboa, os indicadores disponíveis dizem respeito a 2014. Segundo o Inquérito Motivacional do Observatório de Turismo de Lisboa, 92% dos estrangeiros chegam à cidade de avião e mais de metade marcam as viagens sozinhos, sem recorrer a uma agência. Por cá, os turistas gastam cerca de 139 euros por dia e 905 euros na estadia inteira (média de 5,5 noites), incluindo alojamento. Em 2014, no topo da lista dos turistas mais gastadores estavam os americanos e os brasileiros, enquanto os russos e os franceses foram, em média, os que menos dinheiro despenderam.

Entre os motivos que trazem turistas à cidade, “visitar monumentos e museus” é o mais preponderante (50,1%), mas “conhecer a faceta moderna de Lisboa” (25,8%) e “diversão com os amigos” (12,4%) também têm peso. Os estrangeiros que vêm especificamente para aproveitar a “diversão noturna” da capital são 4,4%.

Há lugar para todos: o turista americano, o jovem francês. Este público jovem que agora vem e se diverte de uma maneira e gasta pouco, mais tarde pode voltar com outro poder de compra.
Vera Gouveia Barros, especialista em Economia do Turismo
Entre outras coisas, estes dados mostram que os padrões de turismo mudaram. E basta andar nas ruas da capital para perceber. As conversas entre amigos e as opiniões escritas nas redes sociais têm um peso crescente na decisão de um destino — e o facto de se saber que Lisboa é um sítio barato ajuda a trazer vários tipos de públicos. “É verdade que diferentes turistas têm diferentes comportamentos”, começa por dizer Vera Gouveia Barros, investigadora na área da Economia do Turismo. Mas, sublinha, há algumas associações que não se podem fazer sem cautela. “Nós temos muito a ideia de associar as low cost a turismo massificado e que gasta pouco.” Nem sempre é assim. Num estudo que conduziu quando era docente da Universidade da Madeira, chegou-se à conclusão de que os turistas que chegavam ao arquipélago por companhias de baixo custo eram os que mais dinheiro gastavam por lá. Um “resultado surpreendente”, admite, embora sublinhe diversas vezes que tem de ser olhado com muito cuidado, devido às especificidades da Madeira.

Vera Gouveia Barros compreende e até concorda com algumas queixas de moradores e comerciantes, mas diz que é preciso não hostilizar os turistas, como Amalia, que vêm cá só para passar uma noite divertida. “Lisboa tem espaço suficiente para que um turismo não afete o outro”, afirma, acrescentando que “este público jovem que agora vem e se diverte de uma determinada maneira e gasta pouco, mais tarde pode voltar com outro poder de compra”, inclusivamente para outros locais do país.

Nos últimos anos, fruto também da boa promoção no estrangeiro, o Cais do Sodré renasceu enquanto zona noturna de Lisboa (Fotografia: Gonçalo Villaverde/Global Imagens)

Um turismo assente em baixos salários

Para já, Isabel Sá da Bandeira, moradora do Cais do Sodré e responsável pela associação Aqui Mora Gente, vai continuar “a ver os grupos de estrangeiros ainda com copos na mão” às primeiras horas da manhã, aos “gritos no meio da rua” e “em tronco nu”. No Bairro Alto, Nuno Santos vai continuar a ver as ruas cheias de gente a beber e a falar alto, para na manhã seguinte encontrar as mesmas ruas sujas e cheias de copos. E, em Alfama, Lurdes Pinheiro vai continuar a ouvir os comerciantes a queixarem-se de que vendem pouco. Tudo isto permanecerá enquanto o paradigma turístico não mudar. Ou seja, enquanto Lisboa continuar a ser um destino barato.

“Podiam aumentar-se os preços, mas teríamos de aumentar salários”, afirma Nuno Santos, abordando um dos delicados temas que rodeiam a questão do turismo. De acordo com dados fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística ao Observador, o salário médio das pessoas que trabalham em atividades de alojamento, restauração e similares na Grande Lisboa era de 690 euros por mês no segundo trimestre de 2016. Nos últimos cinco anos, este valor já variou entre os 592 euros (segundo trimestre de 2013) e os 699 euros (primeiro trimestre de 2015).

Para Miquel Puig Raposo, economista catalão que estuda os efeitos do turismo em Barcelona, um sistema de baixos salários não é benéfico para ninguém. “Quando um turista paga um serviço prestado por um trabalhador que ganha menos de 1.200 euros por mês, ou que é sazonal, ele está a ser subsidiado, porque o serviço que essa pessoa presta custa mais”, argumenta, relativamente à realidade espanhola. Um trabalhador mal pago, diz, paga muito menos impostos do que o gasto social, de saúde e educação que o Estado tem com ele. Assim, “um modelo turístico baseado em trabalhos mal pagos cria pouco valor e, ao mesmo tempo, privilegia uma redistribuição de valor que funciona para benefício dos turistas (e dos operadores de turismo) e contra a sociedade, cujo empobrecimento se manifesta no progressivo congestionamento dos serviços sociais e nas pensões baixas”.

O que é necessário é haver muitos debates, muitas discussões, que se formem muitas opiniões. As pessoas estão muito amorfas.
Lurdes Pinheiro, dirigente da Associação do Património e População de Alfama
A solução, defende o economista, passa por pôr os turistas a pagar mais, até porque “os turistas não deixam de vir a Barcelona só porque a cerveja fica mais cara”. Numa linha: “Se continuarmos no atual modelo de minimizar os salários e maximizar o número de turistas, então vamos ter um conflito sério, já que este modelo beneficia poucos e prejudica muitos.”

Vera Gouveia Barros pensa que este modelo de trabalho “continuará durante muito tempo” em Portugal, mas vai ter de mudar. “Se o turista que vier para cá for exigente, vai querer um serviço de qualidade.” E isso só se consegue com formação apropriada. “Os portugueses, enquanto pessoas, são um dos fatores que nos distinguem dos nossos concorrentes. Mas não basta. É preciso que as pessoas vão além da simpatia natural. Se estas pessoas deixarem de ser simplesmente empregados indiferenciados, tornam-se pessoas capacitadas.” E com a capacitação vêm os ordenados melhores.

Uma cidade para todos: lisboetas e turistas

Qualidade é uma palavra-chave. “Ainda estamos num ponto de equilíbrio, mas temos de ter cuidado para não destruir isso”, alerta Vera Gouveia Barros. Para Nuno Santos, “as coisas têm é que ser regradas”. A Junta de Freguesia da Misericórdia — que abrange o Bairro Alto, a Bica, o Cais do Sodré e Santa Catarina –, em conjunto com associações de moradores e comerciantes, considerou em janeiro que “o potencial desta zona é precisamente o motivo dos problemas que tem”. Para estas entidades, “estas zonas sofreram uma rápida e profunda evolução e a balança desequilibrou-se completamente, deixando de ter as condições essenciais à função residencial”.

A situação é resumida em poucas linhas na proposta conjunta que elaboraram: “Despejam-se litros de álcool para as ruas e, consequentemente, muito barulho, sujidade e vandalismo. Esta prática, a partir de uma determinada hora da noite, gera o conflito de habitabilidade e desvaloriza o importante papel do comércio de cultura e entretenimento noturno na atratividade turística e cultural da cidade. Além disso, prejudica as autarquias, e consequentemente os contribuintes, uma vez que aumenta os custos com a limpeza e manutenção do espaço público.”

Para Vera Gouveia Barros, criar conforto para os turistas tem de passar necessariamente por criar conforto para quem mora e quem trabalha na cidade. Uma coisa não pode ser dissociada da outra. E isso envolve “dores de crescimento”. Passa pela adaptação dos serviços a uma nova realidade. “Que os serviços percebam que têm de dar uma resposta diferente” da que davam quando Lisboa não estava na moda. E passa também pela coordenação entre diferentes estruturas. “As entidades não falam umas com as outras. Quando é para recolher louros, querem estar lá. Quando é para ter responsabilidades, empurram”, lamenta. E, opina a especialista, era importante que as entidades falassem umas com as outras, até para mostrar aos estrangeiros que há mais país do que Lisboa.


Amalia sabe disso. Além da capital, a saragoçana já conhece outras zonas do país. Também só tem elogios a fazer. “Sempre correu tudo bem. As pessoas sempre muito simpáticas. Bom, eu estou apaixonada por Portugal”, ri-se.

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