O
turismo low cost está a estragar Lisboa?
27 Agosto 2016
João Pedro Pincha
Vêm
em companhias de baixo custo para fazer escapadinhas baratas na
capital. Comerciantes e moradores queixam-se de que gastam pouco e
sujam muito. As críticas fazem sentido? O que dizem os números?
As amigas de Amalia
não precisaram de pensar muito. Mal ela disse “sim”, que queria
casar-se, a escolha foi óbvia. Era em Lisboa que a saragoçana ia
dizer adeus à vida de solteira. “Elas sabem que eu gosto muito de
Lisboa. É uma das minhas cidades preferidas”, explica Amalia
Espinosa ao Observador, um ano depois da festa. Foram dois dias
intensos. O grupo de amigas chegou numa sexta-feira ao final do dia e
seguiu logo para um restaurante. Depois do jantar, correram alguns
bares e discotecas lisboetas. No dia seguinte, como a noite tinha
acabado tarde, não se meteram em grandes aventuras. Apanharam um
comboio no Cais do Sodré e ficaram todo o dia deitadas numa praia de
Cascais.
É verdade já
escrita mil vezes (ou mais). Lisboa está na moda e os turistas
estrangeiros não param de chegar. Mas não são só os monumentos,
os museus, o sol e a gastronomia que atraem os visitantes da capital.
Nos últimos anos, fruto do passa-a-palavra e de uma série de
artigos em meios de comunicação social, a vida noturna tornou-se um
dos atrativos lisboetas. Na infindável lista dos textos com dez,
sete, cinco e muitas razões para visitar Lisboa, raramente faltam
referências ao baixo custo da cerveja e da vida em geral, ao número
de bares e discotecas existentes e à facilidade com que as pessoas
se reúnem na rua e bebem uns copos — algo que, em vários países
europeus, é impossível ou quase.
“O melhor de
Portugal é que jantar fora e sair à noite é barato”, diz Amalia,
que não se cansa de elogiar Lisboa. “Tem muita vida. Os
restaurantes são muito bonitos, há muitos bares e as pessoas são
muito simpáticas.” Antes desse fim de semana em junho de 2015, ela
já tinha participado na despedida de solteira de uma amiga, também
em Lisboa. Em ambas as ocasiões, ficaram em hostels no Bairro Alto,
um dos corações onde a noite mais palpita. “É outra coisa boa de
Lisboa: tem hostels para jovens muito porreiros e muito baratos! Em
Espanha não há isso”, afirma. Nem mesmo em Barcelona?,
provocamos. “Uff, não, não. Há muito melhor qualidade em
Lisboa.”
O Bairro Alto a uma
qualquer sexta ou sábado à noite (Fotografia: ANDRÉ
CORREIA/OBSERVADOR)
O turismo na capital
está bem e recomenda-se, dizem todos os indicadores estatísticos.
Os habitantes do centro, no entanto, têm coisas a acrescentar à
realidade dos números. “Temos sentido que o tipo de turismo que
chega à nossa zona é mais jovem, que procura mais a noite”,
explica Nuno Santos, dirigente da associação A Voz do Bairro, que
representa moradores do Bairro Alto e de Santa Catarina. Por si só,
isso não é mau. Nestas zonas, e também na Bica e no Cais do Sodré,
acentuou-se uma tendência que já vinha de trás. Os turistas não
fizeram mais do que imitar o que os lisboetas já faziam: beber na
rua, falar alto na rua, sujar a rua. “Potencia-se a vida noturna
não existente em alguns países de origem, com maior liberdade e
consumo barato”, resume Nuno Santos, que é igualmente gestor de
hotéis na região de Lisboa.
O problema, diz, é
quando, entre portugueses e estrangeiros, há cerca de 200 mil
pessoas a procurarem o Bairro Alto e o Cais do Sodré às sextas e
sábados à noite. As limitações físicas dos espaços fazem com
que “o culto do bar” e “o ambiente do bar” se percam e se
passe a olhar para a rua “como ponto de referência”, refere.
O mesmo é sentido
em Alfama, um bairro sem grande tradição noturna que tem passado
por grandes alterações nos últimos anos. Além de a oferta de
casas para arrendamento turístico e de hostels ter aumentado
significativamente, também o número de bares e restaurantes
cresceu. O que, repita-se, não é intrinsecamente mau. A manhã
seguinte é que, muitas vezes, traz surpresas desagradáveis para os
habitantes. “As pessoas queixam-se do barulho, que há muita
sujidade nas ruas, que o espaço público está muito degradado.”
No Largo do Chafariz de Dentro, mesmo em frente ao Museu do Fado, as
esplanadas estão cheias de turistas estrangeiros. Lurdes Pinheiro,
dirigente da Associação do Património e População de Alfama e
ex-presidente da Junta de Freguesia de Santo Estêvão, sorri e diz
que gosta de ver o bairro assim, cheio de gente. Mas não a qualquer
preço. “O turismo faz bem, mas com conta, peso e medida.”
Alfama é o bairro
onde os turistas querem estar, mas isso trouxe importantes mudanças
ao local (Fotografia: PATRICIA DE MELO MOREIRA/AFP/Getty Images)
É uma frase tão
repetida como as mil vezes que já se disse que Lisboa estava na
moda, mas Lurdes Pinheiro não se importa. Apesar de muitas famílias
estarem a beneficiar diretamente do boom turístico, arrendando casas
ou quartos, “não é assim tão linear que o bairro ficou a
ganhar”, argumenta. Muitos comerciantes de Alfama queixam-se de que
os turistas gastam pouco dinheiro e, por vezes, trazem chatices como
o barulho e a sujidade.
Polacos e franceses
lideram
A ideia que corre
entre muitos lisboetas é a de que os estrangeiros chegam através de
companhias aéreas low cost, ficam em hostels ou quartos baratos e
gastam o mínimo possível. “O tipo de turista que recebemos hoje
em dia é um turista com muito menos poder de compra”, assume Nuno
Santos. E é uma bola de neve: com menos dinheiro para gastar, as
pessoas tendem a fazer compras em sítios mais baratos. E os sítios
mais baratos são, frequentemente, as lojas de conveniência que têm
aparecido como cogumelos um pouco por toda a parte. Para quê pagar
1,50 euros (ou mais) por uma imperial quando se pode pagar 1,20 por
um litro de cerveja?
Comparativamente a
outros destinos europeus, Lisboa é uma cidade barata. Amalia
Espinosa confirma-o e pensa que isso tem sido responsável por uma
redescoberta espanhola da capital portuguesa. “É a cidade perfeita
para fazer turismo, praia e à noite tem muita vida. Cada vez conheço
mais gente que vai fazer despedidas de solteiro e viagens a Lisboa.
Os espanhóis estão a gostar cada vez mais de Portugal”, afiança.
No Bairro Alto, este
é um cenário recorrente (Fotografia: ANDRÉ CORREIA/OBSERVADOR)
Afinal, o que dizem
os números? Os últimos dados estatísticos da hotelaria mostram que
o número de dormidas aumentou em todo o país, mas que na Área
Metropolitana de Lisboa foi onde o crescimento foi menor (5,6% no
primeiro semestre do ano contra, por exemplo, 15,6% da região
Norte). Além disso, os polacos e os franceses lideram as subidas.
Para analisar
exclusivamente a realidade de Lisboa, os indicadores disponíveis
dizem respeito a 2014. Segundo o Inquérito Motivacional do
Observatório de Turismo de Lisboa, 92% dos estrangeiros chegam à
cidade de avião e mais de metade marcam as viagens sozinhos, sem
recorrer a uma agência. Por cá, os turistas gastam cerca de 139
euros por dia e 905 euros na estadia inteira (média de 5,5 noites),
incluindo alojamento. Em 2014, no topo da lista dos turistas mais
gastadores estavam os americanos e os brasileiros, enquanto os russos
e os franceses foram, em média, os que menos dinheiro despenderam.
Entre os motivos que
trazem turistas à cidade, “visitar monumentos e museus” é o
mais preponderante (50,1%), mas “conhecer a faceta moderna de
Lisboa” (25,8%) e “diversão com os amigos” (12,4%) também têm
peso. Os estrangeiros que vêm especificamente para aproveitar a
“diversão noturna” da capital são 4,4%.
Há lugar para
todos: o turista americano, o jovem francês. Este público jovem que
agora vem e se diverte de uma maneira e gasta pouco, mais tarde pode
voltar com outro poder de compra.
Vera Gouveia Barros,
especialista em Economia do Turismo
Entre outras coisas,
estes dados mostram que os padrões de turismo mudaram. E basta andar
nas ruas da capital para perceber. As conversas entre amigos e as
opiniões escritas nas redes sociais têm um peso crescente na
decisão de um destino — e o facto de se saber que Lisboa é um
sítio barato ajuda a trazer vários tipos de públicos. “É
verdade que diferentes turistas têm diferentes comportamentos”,
começa por dizer Vera Gouveia Barros, investigadora na área da
Economia do Turismo. Mas, sublinha, há algumas associações que não
se podem fazer sem cautela. “Nós temos muito a ideia de associar
as low cost a turismo massificado e que gasta pouco.” Nem sempre é
assim. Num estudo que conduziu quando era docente da Universidade da
Madeira, chegou-se à conclusão de que os turistas que chegavam ao
arquipélago por companhias de baixo custo eram os que mais dinheiro
gastavam por lá. Um “resultado surpreendente”, admite, embora
sublinhe diversas vezes que tem de ser olhado com muito cuidado,
devido às especificidades da Madeira.
Vera Gouveia Barros
compreende e até concorda com algumas queixas de moradores e
comerciantes, mas diz que é preciso não hostilizar os turistas,
como Amalia, que vêm cá só para passar uma noite divertida.
“Lisboa tem espaço suficiente para que um turismo não afete o
outro”, afirma, acrescentando que “este público jovem que agora
vem e se diverte de uma determinada maneira e gasta pouco, mais tarde
pode voltar com outro poder de compra”, inclusivamente para outros
locais do país.
Nos últimos anos,
fruto também da boa promoção no estrangeiro, o Cais do Sodré
renasceu enquanto zona noturna de Lisboa (Fotografia: Gonçalo
Villaverde/Global Imagens)
Um turismo assente
em baixos salários
Para já, Isabel Sá
da Bandeira, moradora do Cais do Sodré e responsável pela
associação Aqui Mora Gente, vai continuar “a ver os grupos de
estrangeiros ainda com copos na mão” às primeiras horas da manhã,
aos “gritos no meio da rua” e “em tronco nu”. No Bairro Alto,
Nuno Santos vai continuar a ver as ruas cheias de gente a beber e a
falar alto, para na manhã seguinte encontrar as mesmas ruas sujas e
cheias de copos. E, em Alfama, Lurdes Pinheiro vai continuar a ouvir
os comerciantes a queixarem-se de que vendem pouco. Tudo isto
permanecerá enquanto o paradigma turístico não mudar. Ou seja,
enquanto Lisboa continuar a ser um destino barato.
“Podiam
aumentar-se os preços, mas teríamos de aumentar salários”,
afirma Nuno Santos, abordando um dos delicados temas que rodeiam a
questão do turismo. De acordo com dados fornecidos pelo Instituto
Nacional de Estatística ao Observador, o salário médio das pessoas
que trabalham em atividades de alojamento, restauração e similares
na Grande Lisboa era de 690 euros por mês no segundo trimestre de
2016. Nos últimos cinco anos, este valor já variou entre os 592
euros (segundo trimestre de 2013) e os 699 euros (primeiro trimestre
de 2015).
Para Miquel Puig
Raposo, economista catalão que estuda os efeitos do turismo em
Barcelona, um sistema de baixos salários não é benéfico para
ninguém. “Quando um turista paga um serviço prestado por um
trabalhador que ganha menos de 1.200 euros por mês, ou que é
sazonal, ele está a ser subsidiado, porque o serviço que essa
pessoa presta custa mais”, argumenta, relativamente à realidade
espanhola. Um trabalhador mal pago, diz, paga muito menos impostos do
que o gasto social, de saúde e educação que o Estado tem com ele.
Assim, “um modelo turístico baseado em trabalhos mal pagos cria
pouco valor e, ao mesmo tempo, privilegia uma redistribuição de
valor que funciona para benefício dos turistas (e dos operadores de
turismo) e contra a sociedade, cujo empobrecimento se manifesta no
progressivo congestionamento dos serviços sociais e nas pensões
baixas”.
O que é necessário
é haver muitos debates, muitas discussões, que se formem muitas
opiniões. As pessoas estão muito amorfas.
Lurdes Pinheiro,
dirigente da Associação do Património e População de Alfama
A solução, defende
o economista, passa por pôr os turistas a pagar mais, até porque
“os turistas não deixam de vir a Barcelona só porque a cerveja
fica mais cara”. Numa linha: “Se continuarmos no atual modelo de
minimizar os salários e maximizar o número de turistas, então
vamos ter um conflito sério, já que este modelo beneficia poucos e
prejudica muitos.”
Vera Gouveia Barros
pensa que este modelo de trabalho “continuará durante muito tempo”
em Portugal, mas vai ter de mudar. “Se o turista que vier para cá
for exigente, vai querer um serviço de qualidade.” E isso só se
consegue com formação apropriada. “Os portugueses, enquanto
pessoas, são um dos fatores que nos distinguem dos nossos
concorrentes. Mas não basta. É preciso que as pessoas vão além da
simpatia natural. Se estas pessoas deixarem de ser simplesmente
empregados indiferenciados, tornam-se pessoas capacitadas.” E com a
capacitação vêm os ordenados melhores.
Uma cidade para
todos: lisboetas e turistas
Qualidade é uma
palavra-chave. “Ainda estamos num ponto de equilíbrio, mas temos
de ter cuidado para não destruir isso”, alerta Vera Gouveia
Barros. Para Nuno Santos, “as coisas têm é que ser regradas”. A
Junta de Freguesia da Misericórdia — que abrange o Bairro Alto, a
Bica, o Cais do Sodré e Santa Catarina –, em conjunto com
associações de moradores e comerciantes, considerou em janeiro que
“o potencial desta zona é precisamente o motivo dos problemas que
tem”. Para estas entidades, “estas zonas sofreram uma rápida e
profunda evolução e a balança desequilibrou-se completamente,
deixando de ter as condições essenciais à função residencial”.
A situação é
resumida em poucas linhas na proposta conjunta que elaboraram:
“Despejam-se litros de álcool para as ruas e, consequentemente,
muito barulho, sujidade e vandalismo. Esta prática, a partir de uma
determinada hora da noite, gera o conflito de habitabilidade e
desvaloriza o importante papel do comércio de cultura e
entretenimento noturno na atratividade turística e cultural da
cidade. Além disso, prejudica as autarquias, e consequentemente os
contribuintes, uma vez que aumenta os custos com a limpeza e
manutenção do espaço público.”
Para Vera Gouveia
Barros, criar conforto para os turistas tem de passar necessariamente
por criar conforto para quem mora e quem trabalha na cidade. Uma
coisa não pode ser dissociada da outra. E isso envolve “dores de
crescimento”. Passa pela adaptação dos serviços a uma nova
realidade. “Que os serviços percebam que têm de dar uma resposta
diferente” da que davam quando Lisboa não estava na moda. E passa
também pela coordenação entre diferentes estruturas. “As
entidades não falam umas com as outras. Quando é para recolher
louros, querem estar lá. Quando é para ter responsabilidades,
empurram”, lamenta. E, opina a especialista, era importante que as
entidades falassem umas com as outras, até para mostrar aos
estrangeiros que há mais país do que Lisboa.
Amalia sabe disso.
Além da capital, a saragoçana já conhece outras zonas do país.
Também só tem elogios a fazer. “Sempre correu tudo bem. As
pessoas sempre muito simpáticas. Bom, eu estou apaixonada por
Portugal”, ri-se.
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