Para
lá da cortina de fumo
MANUEL CARVALHO
14/08/2016 – PÚBLICO
https://www.publico.pt/…/para-la-da-cortina-de-fumo-1741240…
O
que mais espanta no clamor que se ergueu com os fogos florestais não
é a comoção nem a revolta; é mesmo o espanto. Um espanto que diz
muito sobre Portugal.
O que mais espanta
no clamor que se ergueu com os fogos florestais não é a comoção
nem a revolta; é mesmo o espanto. Um espanto que diz muito sobre
Portugal. O país modelo da falta de memória, o exemplo da
incapacidade de aprender com erros próprios, o monumento à arte de
viver de expedientes – seja o ouro do Brasil ou a amizade de um
secretário de Estado –, o país que tem um banco público aflito
instalado num edifício megalómano digno de Ceausescu, que adora o
efémero vistoso e odeia o trabalho de fundo dos bastidores. A
floresta arde descontroladamente porque, uma vez mais, nos
preocupamos mais com o aparato dos Kamov do que com a limpeza das
matas, nos entretemos mais com os “teatros de operações” do que
com o esforço duro e silencioso de criar aceiros ou limpar caminhos
rurais. Continuamos a ser como uma mulher de casaco de peles que
enverga por baixo um reles vestido de chita. Espanto? O melhor é
recordar o que Sá de Miranda escreveu, já há 500 anos: “Pasmado
e duvidoso do que vi, m'espanto às vezes, outras m'avergonho”.
Sejamos honestos: um
país com o clima de Portugal e com uma floresta dominada por
espécies tão combustíveis como o pinheiro ou o eucalipto não é
invulnerável ao fogo. Mas, entre um incêndio que devasta dez
hectares numa manhã e outro que, como os de Arouca ou de Águeda
duram dias e consomem milhares de hectares, há uma capacidade de
intervenção humana que faz toda a diferença. O mal não está em
haver incêndios: o mal está nos incêndios que galgam o
desordenamento da floresta e destroem mais de 20 mil campos de
futebol (como em Tavira, em 2012) em dias consecutivos. Os grandes
incêndios que, nos anos piores, foram responsáveis por 85% da área
ardida, só se controlam se houver um trabalho prévio de prevenção,
de planeamento e de ordenamento. Há anos que isto se sabe. Há anos
que nos prometem atacar este problema. Há anos que nos mentem.
Espanto? Ou vergonha?
Ao contrário dos
mitos urbanos que proliferam por aí, a floresta portuguesa é muito
maior do que a existente há 100 ou 150 anos – em 1867 a área
florestal representava 14,1% do território, hoje chega aos 35%. Ao
contrário das ilusões, a floresta nacional é de uma resiliência
extraordinária. Nos últimos 25 anos arderam 2.5 milhões de
hectares, mas, pelas novas plantações ou pela regeneração
natural, a área de povoamentos cresceu até ligeiramente nos últimos
anos.
Por volta de 1990,
percebeu-se que algo estava a mudar. Os mecanismos tradicionais de
protecção, como o pastoreio, extinguiram-se com o êxodo rural. Os
fogos tornaram-se uma ameaça real. Era urgente criar condições
para proteger os povoamentos existentes e aproveitar os fundos
europeus para lançar o que, na época, se designava por “sonho
florestal” português. Razões não faltavam: a floresta é a
origem dos principais grupos económicos nacionais, como o Amorim ou
a Sonae; a produtividade do pinhal nacional é altíssima; o
eucalipto cultivado em Portugal produz pasta para papel de qualidade
única; temos a maior área de montado e a mais avançada indústria
de cortiça do mundo. A floresta, dizia-se, era o nosso “petróleo
verde”. O seu peso na economia só tem paralelo nos países
nórdicos.
Em 1996, a
Assembleia da República aprovou por unanimidade uma lei de bases que
revolucionava todo o edifício legislativo do sector. Mas foi preciso
esperar pelo caos de 2003 e 2005 (quando arderam, respectivamente,
426 mil e 338 mil hectares) para que a primeira legislação
regulamentar fosse produzida. Tinha-se perdido a primeira década.
Nasceram então os planos regionais de ordenamento florestal (PROF),
as zonas de intervenção florestal (ZIF) e impôs-se a adopção de
planos de gestão para determinadas áreas. Ao mesmo tempo, lançou-se
um plano de prevenção e de combate aos fogos e criou-se um Fundo
Florestal Permanente, financiado com taxas sobre os combustíveis,
para acelerar a protecção e o crescimento da floresta.
Foi então que o
Portugal conformado, dos lobbies e do lucro imediato impôs as suas
regras. O plano contra os incêndios foi subvertido, descentrando a
prioridade da prevenção para o combate aos fogos – uma obra na
qual o primeiro-ministro tem responsabilidade e que o seu secretário
de Estado da época, Ascenso Simões, reconhece ter sido um “grave
erro”. Os PROF, que, estabelecem regras de ordenamento regional,
foram primeiro esquecidos e, depois de 2013, suspensos, situação na
qual se encontram três anos e meio depois. E as ZIF, que tinham por
função agrupar produtores, são, na sua generalidade, entidades
fantasma, sem estratégia, nem dinheiro, nem futuro.
Neste clima de deixa
andar, os serviços florestais, que produziam alguns dos melhores
documentos da administração pública, onde havia espírito de corpo
e militância pela causa florestal, foram anulados. No Governo
Sócrates, foram diluídos na agricultura; no Governo Passos Coelho,
a direcção-geral que subsistia foi engolida num Instituto de
Conservação e das Florestas. Sem planeamento, sem fiscalização e
sem enquadramento, a floresta tornou-se uma selva sem rei nem roque.
O eucalipto tornou-se a espécie dominante do país, enquanto, o
pinheiro bravo, destruído pelo fogo e pelas pragas, recuou 263 mil
hectares entre 1995 e 2010.
Em 2013, o
ministério de Assunção Cristas fez aprovar uma lei que, na
prática, liberaliza as plantações e replantações até dez
hectares. Ao fazê-lo, deixou a iniciativa privada funcionar e, como
seria de esperar, a iniciativa privada prefere o lucro certo do
eucalipto ao fim de dez anos à expectativa incerta de um montado ou
de um pinhal ao fim de 30. Portugal ameaça assim tornar-se um barril
de pólvora com manchas intermináveis da mesma espécie ao longo de
vastas extensões do território. Sem planos regionais a enquadrar as
decisões individuais, o Norte e o Centro do país caminham a passos
rápidos para a monocultura. O risco de incêndios incontroláveis
como os que há uma década devastaram o Pinhal Interior, a outrora
maior mancha de pinho da Europa, existe agora em Águeda ou Arouca,
onde o eucalipto domina.
A destruição a que
assistimos esta semana é pois a consequência de 25 anos de
irresponsabilidade política, da demissão da comunicação social
(em Portugal há três ou quatro jornalistas capazes de escrever
sobre a floresta para lá do lugar-comum), da negligência dos
proprietários e da indiferença colectiva. É preciso o país arder
para que os políticos se movam. O ministro de Administração
Interna de 2006 tem agora a oportunidade de se redimir na pele de
primeiro-ministro.
António Costa
começou bem, falando na necessidade de um cadastro da propriedade
florestal e insistindo na prevenção. Qualquer mudança precisa de
definir uma política fiscal que infernize a vida aos proprietários
negligentes – uma boa parte dos cerca de 400 mil donos da floresta
nem sabe onde fica a sua propriedade. Precisa ainda de acreditar que
nada se fará se não se reforçar o apoio às associações e aos
proprietários que estão no terreno – ao contrário da Europa, a
floresta nacional é privada e só se pode fazer exigências aos
privados se o Estado os apoiar pelo bem público que gerem. Este ano
está perdido, mas o Governo tem a oportunidade de ficar na História
se mudar o rumo da floresta. Lutar pelo mais importante recurso
renovável do país, a mola de três fileiras que respondem por mais
de 11% das exportações nacionais, pela fonte de sequestro de
carbono e um elemento indelével da nossa paisagem rural é um dever
do Estado. Se pensarmos no futuro, o país tem poucos trunfos desta
valia. Renunciar a esse potencial não é só estúpido; é
criminoso.
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