quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Fogos inevitáveis no Portugal que somos


Fogos inevitáveis no Portugal que somos

MIGUEL DANTAS DA GAMA 18/08/2016 - PÚBLICO

A resolução deste grave problema nacional impõe o restauro da vegetação autóctone, um projecto de reflorestação de Portugal.

Densas colunas de fumo elevam-se por todo o vale do Ramiscal. O estatuto de Zona de Protecção Total do Parque Nacional da Peneda-Gerês — o mais elevado dos definidos no seu plano de ordenamento — de pouco lhe tem servido. O carvalhal enfrenta o fogo com maior dificuldade, enfraquecido pelo grande incêndio de 2006, por todos os outros que o antecederam e pelas queimadas constantes a que a reserva é ilegalmente submetida. Recordo a proposta feita há dez anos de recolher bolotas no fundo da mata para as disseminar nas encostas já desprovidas de árvores. Não foi acolhida. Seria «ajardinar» uma zona integral onde o homem não deve intervir. A indignação é profunda, porque à invasão das chamas também acresce a do gado bovino, sempre consentida.

O território português foi um bosque contínuo, progressivamente destruído pelo homem ao longo de séculos. Os matos gerados pelo desbaste iam sendo consumidos nas lareiras e em camas para os animais. Em finais do séc. XIX com o país seriamente desflorestado iniciaram-se as arborizações, dominadas por manchas contínuas de pinhal que o Estado Novo consolidou. Com o 25 de Abril de 74 choveram fundadas críticas contra as extensas monoculturas de espécies exóticas. E com o surgimento do Ambiente nos organismos do Estado e a integração europeia, era expectável uma mudança de paradigma. O que sucedeu foi um desastre.

Destruiu-se o que havia de positivo — presença no terreno, viveiros e guarda-florestal, uma estrutura silvícola que poderia ter sido redireccionada — e agravou-se o que já era mau. Aos pinhais juntaram-se os eucaliptais! Os incêndios ganharam uma «época» e o fogo passou a ser defendido como solução generalizada para contrariar os matos que o homem deixou de consumir. Sendo o mato o que prevalece nos nossos montes, trata-se de queimar ao longo do ano para se ver arder menos no Verão, uma mera gestão (criminosa) do coberto vegetal, através do fogo.

O pastoreio (mais ainda o que hoje se pratica, em que o gado equino e bovino pasta abandonado) há muito que já a exercita. O resultado último deste ciclo infernal devia ser apreciado pelas mais altas figuras do Estado no miolo da serra do Gerês, no coração da «jóia da Coroa». Escassos teixos, azevinhos e carvalhos centenários, entalados em fragas onde o fogo não entra, sobrevivem isolados numa imensidão de solo completamente desnudado e erodido, onde nem ao mato se dão tréguas.

Voltemos ao Ramiscal. O fogo é combatido por meia dúzia de sapadores, sinal revelador da forma como o património natural é desvalorizado por políticos e cidadãos em geral, o que também explica os níveis de audiência que suportam a lamentável abordagem que as televisões promovem sobre os incêndios.

A aposta no combate que sempre se privilegiou já não merece o consenso. Com o tipo de coberto vegetal dominante não há meios que vençam fogos que, quando se chega ao terreno, já são enormes, porque nas serras a vigilância é nula. Não se entende porque as forças armadas só são chamadas quando o inimigo já domina o «teatro de operações», quando se está em estado de sítio. Não há verbas para prevenir? E de onde surgem elas quando se mandam os militares para uma guerra inevitável e que antecipadamente se sabe que vão perder? Um combate impossível quando aos criminosos é facilitada a possibilidade de reincidirem e as práticas de risco não são terminantemente proibidas e duramente penalizadas. Os bombeiros têm assegurado a salvaguarda de vidas humanas. Mas reconhecem a impossibilidade de contrariar nos montes, um fogo antinatura. Esta realidade tem um preço que deveria ser considerado no balanço custo-benefício resultante da (não) floresta que temos. Ao negócio de um combate (perdido) que custa milhões ao Estado devem ser acrescentados os encargos da recuperação de bens, dos malefícios infligidos ao ambiente (ao ar, à água, aos solos), das madeiras que importamos e de todos os serviços de ecossistema perdidos com o tipo de arborizações a que submetemos o país.

Fala-se em bater o pé à Europa. Pois bem: por que não envolvê-la no extermínio da peste verde que se apossou da nossa floresta, numa vontade de deixarmos de produzir pasta e papel que os parceiros consomem? A resolução deste grave problema nacional impõe o restauro da vegetação autóctone, um projecto de reflorestação de Portugal que durará décadas, sendo as primeiras as mais exigentes, em que todo o fogo deve ser contrariado, para que o arvoredo que a ele melhor resiste, nomeadamente os carvalhais, consiga sobrepor-se aos matos dominantes. É esta a limpeza que se impõe e não a que delirantemente se reclama (só viável e obrigatória, em torno das habitações, construídas ao arrepio do mais elementar ordenamento do território). Um projecto que rompa com a falta de visão estratégica e de um planeamento a longo prazo que nos tornou num país dependente, onde apenas momentaneamente se corre atrás dos prejuízos mais graves. O Estado, que constantemente aponta o dedo, mas vive há muito sob um imenso telhado de vidro tal o estado de abandono de matas, parques e reservas, deve assumir-se, também para impedir a gestão danosa de terrenos baldios.

O problema é que nenhum governante que tenha a coragem de o lançar assistirá ao sucesso deste desígnio nacional ainda sentado na cadeira do poder. Por isso não comungo desse «optimismo irritante» que agora, mais do que nunca, anima os governantes. Serão as alterações climáticas que se encarregarão de o impor. E nós seremos obrigados a executá-lo. Mas tarde e em más horas.

Dirigente do FAPAS – Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens e membro do Conselho Estratégico do Parque Nacional da Peneda-Gerês e do Conselho de Cooperação da Reserva da Biosfera Gerês-Xurés (migueldantasgama@gmail.com)



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