Fogos
inevitáveis no Portugal que somos
MIGUEL DANTAS DA
GAMA 18/08/2016 - PÚBLICO
A
resolução deste grave problema nacional impõe o restauro da
vegetação autóctone, um projecto de reflorestação de Portugal.
Densas colunas de
fumo elevam-se por todo o vale do Ramiscal. O estatuto de Zona de
Protecção Total do Parque Nacional da Peneda-Gerês — o mais
elevado dos definidos no seu plano de ordenamento — de pouco lhe
tem servido. O carvalhal enfrenta o fogo com maior dificuldade,
enfraquecido pelo grande incêndio de 2006, por todos os outros que o
antecederam e pelas queimadas constantes a que a reserva é
ilegalmente submetida. Recordo a proposta feita há dez anos de
recolher bolotas no fundo da mata para as disseminar nas encostas já
desprovidas de árvores. Não foi acolhida. Seria «ajardinar» uma
zona integral onde o homem não deve intervir. A indignação é
profunda, porque à invasão das chamas também acresce a do gado
bovino, sempre consentida.
O território
português foi um bosque contínuo, progressivamente destruído pelo
homem ao longo de séculos. Os matos gerados pelo desbaste iam sendo
consumidos nas lareiras e em camas para os animais. Em finais do séc.
XIX com o país seriamente desflorestado iniciaram-se as
arborizações, dominadas por manchas contínuas de pinhal que o
Estado Novo consolidou. Com o 25 de Abril de 74 choveram fundadas
críticas contra as extensas monoculturas de espécies exóticas. E
com o surgimento do Ambiente nos organismos do Estado e a integração
europeia, era expectável uma mudança de paradigma. O que sucedeu
foi um desastre.
Destruiu-se o que
havia de positivo — presença no terreno, viveiros e
guarda-florestal, uma estrutura silvícola que poderia ter sido
redireccionada — e agravou-se o que já era mau. Aos pinhais
juntaram-se os eucaliptais! Os incêndios ganharam uma «época» e o
fogo passou a ser defendido como solução generalizada para
contrariar os matos que o homem deixou de consumir. Sendo o mato o
que prevalece nos nossos montes, trata-se de queimar ao longo do ano
para se ver arder menos no Verão, uma mera gestão (criminosa) do
coberto vegetal, através do fogo.
O pastoreio (mais
ainda o que hoje se pratica, em que o gado equino e bovino pasta
abandonado) há muito que já a exercita. O resultado último deste
ciclo infernal devia ser apreciado pelas mais altas figuras do Estado
no miolo da serra do Gerês, no coração da «jóia da Coroa».
Escassos teixos, azevinhos e carvalhos centenários, entalados em
fragas onde o fogo não entra, sobrevivem isolados numa imensidão de
solo completamente desnudado e erodido, onde nem ao mato se dão
tréguas.
Voltemos ao
Ramiscal. O fogo é combatido por meia dúzia de sapadores, sinal
revelador da forma como o património natural é desvalorizado por
políticos e cidadãos em geral, o que também explica os níveis de
audiência que suportam a lamentável abordagem que as televisões
promovem sobre os incêndios.
A aposta no combate
que sempre se privilegiou já não merece o consenso. Com o tipo de
coberto vegetal dominante não há meios que vençam fogos que,
quando se chega ao terreno, já são enormes, porque nas serras a
vigilância é nula. Não se entende porque as forças armadas só
são chamadas quando o inimigo já domina o «teatro de operações»,
quando se está em estado de sítio. Não há verbas para prevenir? E
de onde surgem elas quando se mandam os militares para uma guerra
inevitável e que antecipadamente se sabe que vão perder? Um combate
impossível quando aos criminosos é facilitada a possibilidade de
reincidirem e as práticas de risco não são terminantemente
proibidas e duramente penalizadas. Os bombeiros têm assegurado a
salvaguarda de vidas humanas. Mas reconhecem a impossibilidade de
contrariar nos montes, um fogo antinatura. Esta realidade tem um
preço que deveria ser considerado no balanço custo-benefício
resultante da (não) floresta que temos. Ao negócio de um combate
(perdido) que custa milhões ao Estado devem ser acrescentados os
encargos da recuperação de bens, dos malefícios infligidos ao
ambiente (ao ar, à água, aos solos), das madeiras que importamos e
de todos os serviços de ecossistema perdidos com o tipo de
arborizações a que submetemos o país.
Fala-se em bater o
pé à Europa. Pois bem: por que não envolvê-la no extermínio da
peste verde que se apossou da nossa floresta, numa vontade de
deixarmos de produzir pasta e papel que os parceiros consomem? A
resolução deste grave problema nacional impõe o restauro da
vegetação autóctone, um projecto de reflorestação de Portugal
que durará décadas, sendo as primeiras as mais exigentes, em que
todo o fogo deve ser contrariado, para que o arvoredo que a ele
melhor resiste, nomeadamente os carvalhais, consiga sobrepor-se aos
matos dominantes. É esta a limpeza que se impõe e não a que
delirantemente se reclama (só viável e obrigatória, em torno das
habitações, construídas ao arrepio do mais elementar ordenamento
do território). Um projecto que rompa com a falta de visão
estratégica e de um planeamento a longo prazo que nos tornou num
país dependente, onde apenas momentaneamente se corre atrás dos
prejuízos mais graves. O Estado, que constantemente aponta o dedo,
mas vive há muito sob um imenso telhado de vidro tal o estado de
abandono de matas, parques e reservas, deve assumir-se, também para
impedir a gestão danosa de terrenos baldios.
O problema é que
nenhum governante que tenha a coragem de o lançar assistirá ao
sucesso deste desígnio nacional ainda sentado na cadeira do poder.
Por isso não comungo desse «optimismo irritante» que agora, mais
do que nunca, anima os governantes. Serão as alterações climáticas
que se encarregarão de o impor. E nós seremos obrigados a
executá-lo. Mas tarde e em más horas.
Dirigente do FAPAS –
Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens e membro do Conselho
Estratégico do Parque Nacional da Peneda-Gerês e do Conselho de
Cooperação da Reserva da Biosfera Gerês-Xurés
(migueldantasgama@gmail.com)
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