Alá (Allah) em
árabe em um medalhão na Hagia Sofia, em Istambul
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ISLAMISMO
Que
fazer com o Islão?
Guilherme Valente
12/8/2016, 0:55
Não
é por se sentirem humilhados e ofendidos que os islamitas se
radicalizam e matam, cómoda ideia que evita o essencial: o factor
religião é autónomo e determinante, só ele pode explicar o
fanatismo.
Um intelectual é
tão frequentemente um imbecil que devíamos sempre, à partida,
tê-lo como tal, até que tenha provado o contrário”
Georges Bernanos
1. Não há dois
Islāos. Está tudo no mesmo, a face tolerante e a intolerante,
guerreira e sanguinária. Há um só Islão, que os muçulmanos — e
só eles, não “nós”, não o “outro” — têm de libertar do
que contém de obscurantista, obsoleto e intolerável.
Ignorarmos ou fingir
que a tragédia do Islão e dos muçulmanos não é marcada por essa
dimensão religiosa só contribui para adiar a consciência e
prolongar a passividade relativamente a uma realidade que os
muçulmanos têm de enfrentar.
Se o Islão não
contivesse essa dimensão de intolerância, violência e guerra
santa, não era possível a fanatização em massa a que se assiste.
É essa dimensão de um Islão desde sempre refém de poderes e
ambições políticas, que que seja usado por líderes, bem
esclarecidos e pragmáticos esses, com projectos políticos coerentes
e historicamente sustentados. Um desses projectos sempre recorrente é
o sonho fantasmático do regresso ao califado. É à luz dessa
ambição e desse projecto que se pode compreender toda o quadro da
guerra na Síria, no Iraque e na Líbia conduzida pelo Exército
Islâmico e a atracção de tantos combatentes às suas hostes.
Não é, pois, por
se sentirem humilhados e ofendidos pelo Ocidente que se radicalizam e
matam, cómoda ideia feita do politicamente correcto, que evita aos
intelectuais ocidentais afirmar o que é evidente e aos políticos
enfrentar eficazmente o nazismo islamita: o factor religião é
autónomo e determinante, só ele pode explicar o fanatismo dos que
se entregam ao autossacrifício.
É pelo Islão que
matam e morrem. Só por uma promessa transcendente se mata e se morre
assim, neste caso pela crença obscena num deus odioso e absurdo.
Ossama Bin Laden: “Nós amamos a morte mais do que vós,
ocidentais, amais a vida”.
Induzida pelo
marxismo, cimentou-se no Ocidente a visão da religião como um
epifenómeno, uma manifestação superestrutural nāo determinante.
Por isso o desaparecimento ou a desvalorização nas Universidades
dos estudos sobre as religiões. Como observou alguém com argúcia,
“laicizou-se a religião e teologizou-se a política”.
Ora, a dimensão
religiosa, deliberadamente ignorada pelas elites académicas e pelos
políticos, é um factor determinante e explicativo essencial da
tragédia do Islão, que alastra ao Ocidente e ao Mundo, começando a
explodir dentro das nossas fronteiras. A incompreensão desse factor
bloqueia nos vários países do Ocidente a contenção e intervenção
eficazes no terreno e junto das comunidades emigrantes.
2. No passado e no
presente, milhares e milhares de muçulmanos morreram e morrem por
viverem, por quererem viver, uma fé, um Islão pacífico e
tolerante.
Esses muçulmanos
foram e são o primeiro alvo do ódio, do projecto e ambições
políticas desse Islão integrista que tem devastado os países do
Médio Oriente e da África.
Hoje como ao longo
da História, inúmeros intelectuais islâmicos, nos vários países
do Médio Oriente, foram assassinados e são perseguidos por
combaterem por um Islão iluminado, livre desse passado original, um
Islão que nāo divida o mundo entre crentes e não crentes, que
conviva com as outras religiões, que permita o progresso e o
desenvolvimento das sociedades muçulmanas.
Sāo esses
combatentes que o Ocidente tem de apoiar. Apoiar em vez de
enfraquecer, como, afinal, fazem (também entre nós) muitos
intelectuais, quando tentam, depois de cada atentado sanguinário num
país europeu, culpabilizar-nos a nós próprios pela tragédia,
quase pedindo desculpa aos assassinos, que pintam como vitimas do
passado colonial ou das nossas sociedades desintegradoras. “Como se
se tratasse de terrorismo social”. Todos os indicadores desmentem
essa explicação sociológica.
3. Os muçulmanos
têm dois problemas a enfrentar.
Um é reforma do
Islāo, enfrentarem o que no Islāo o torna uma ameaça para todo o
mundo e vencer os que estāo a levá-la a todas as latitudes, parando
o pavor e a repulsa global crescentes, humanamente compreensíveis,
por esta religião.
O outro é
compatibilizar o Islāo reformado, extirpado da intolerância,
inspiração e guia, mas não lei civil, com a modernização e o
desenvolvimento. Enquanto este último desafio não for vencido, o
outro não será ganho, mantendo-se o circulo vicioso —
social-político-religioso — que está na origem e tem determinado
o beco sem saída da tragédia das sociedades islâmicas do Médio
Oriente e da África. A Turquia progrediu e desenvolveu-se porque se
laicisou…
4. “Que fazer com
os muçulmanos?” (a frase é de Sarkozy num outro contexto) Um
grande intelectual árabe, Kamel Daoud, combatente de um Islão
iluminado perseguido pelo poder religioso no seu país, a Argélia,
na coluna que assina na revista liberal Le Point, prolongava esta
pergunta para terminar com uma formulação arrepiante: que fazer com
o Islāo, que fazer com os islâmicos, que fazer com o outro, que
fazer… de mim e dos meus?
No impacto das
notícias assustadoras do dia, na torrente de fait divers que os
média não param de despejar, no torvelinho deste tempo sem tempo
para reflexão, esquece-se que este Islão com que o mundo se
confronta, sendo fé, é também identidade – alma, cimento,
substracto agregador que dá sentido à existência de milhões de
seres humanos. O emaranhado confessional desliza para o identitário…
“O Islão
interdita que se verta o sangue de outrem”, afirma o Cheikh Ahmed
al-Tayeb, grande íman de Al-Azhar, a instituição mais antiga e
respeitada do islão sunita. Como conjugar e digerir a contradição
desta afirmação com as outras, igualmente apoiadas no Alcorão, que
levam ao sacrifício e ao assassinato sanguinário, em nome da mesma
religião, de milhares de vítimas*? Crimes ordenados por poderes
religiosos que se apresentam com igual legitimidade, recorrendo a
textos e ao exemplo de actos igualmente atribuídos ao Profeta? Como
viver com esta contradição, como têm de viver com ela milhões de
homens, mulheres e crianças crentes inocentes espalhados pelo
planeta? Como convivem com o pavor e a animosidade crescentes,
justificadíssimas, contra esta religião que tarda em civilizar-se?
5. Que fazer com os
islamitas? Sigamos o texto de Kamel Daoud, que refere soluções
diferentes conforme os países, mas sempre, explica, mantendo-se
todas elas num círculo que arrasta o problema: em vez de atacar as
causas que produzem os islamitas, as instâncias que os fabricam —
as escolas, os media e as mesquitas — tenta-se erradicá-los
depois. E porquê? Porque, diz Daoud, as reformas que deveriam ser
implementadas para acabar com o aparecimento de extremistas,
ameaçariam também esses regimes, levando a médio prazo à sua
contestação e à sua queda.
Isto é, esse
compromisso entre os regimes desses países e os clérigos
conservadores e integristas cujo poder impede a reforma do Islão,
imobiliza também a sociedade civil, condenando esses países à
pobreza e ao atraso. Segundo Daoud é, por exemplo, o caso do Egipto.
E reencontramos
assim o circulo vicioso, social-político-religioso, que parece fazer
do Islāo um problema insolúvel, um drama interminável. “Que
fazer com o Islão?”
6. A situação no
Médio Oriente, interna e nas suas projeções externas, é um
emaranhado de manifestações e determinações que tornam impossível
a exposição e visão sistemáticas. Várias dessas manifestações
e determinações exigem, para serem compreendidas (e enfrentadas)
conhecimento e reflexão histórica laboriosos. Outras exigem
conhecimento profundo da realidade religiosa, do seu cruzamento com a
complexidade e a diversidade dos cenários políticos, com o
entendimento do labirinto dos desígnios de poder, com a realidade
social, a pobreza, o atraso educativo, o subdesenvolvimento endémico,
aparentemente sem saída.
É esta dificuldade
que explica a redundância dos textos da generalidade dos
comentadores e a irrelevância da generalidade das interpretações.
Explica também em grande medida, o desastre da intervenção dos
países ocidentais. Posição e intervenção condicionadas também
pelo jogo dos interesses económicos e estratégicos imediatos, mas
também pelas visões deterministas e sociológicas explicativas que
remetem para uma má consciência cujas razões os factos contrariam
(nomeadamente a origem nacional e social dos terroristas e o seu
nível educativo; e também a sua situação familiar). José Manuel
Fernandes referia como “os nossos eleitos, os nossos políticos,
não sabem o que fazer e ainda menos o que dizer, pois quase só
proferem inanidades que nada adiantam”.
7. Numa entrevista
que é um testamento político (Le Point, 23-6), Michel Rocard dizia
que para dirigir uma sociedade é preciso compreendê-la, ora os
políticos são uma categoria da população que fustigada pela falta
de tempo e o fim da cultura na escola deixou de ler, “Nem serāo
nem fim de semana tranquilo, sem um único momento para lerem e
reflectirem, e a leitura é a chave da reflexão. (A reflexão só
lhes revelaria, aliás, serem eles e os seus actos, em grande medida,
os responsáveis pelos desastres…)
Não inventam,
portanto, nada”. As eleições sucedem-se, mas nāo há projectos
políticos transformadores.
Que fazer com as
disfunções crescentes do nosso modelo político?
* Do mesmo modo que
se conjugaram e foram sendo resolvidas, na História e também com
muitos conflitos e sofrimento, muitas das contradições da Igreja
cristã. Apesar do Cristianismo ter na sua origem a separação
luminosa entre o que é de Deus e o que é de César, a palavra
fundadora de Cristo de que o seu reino não é deste mundo. Como diz
o Padre Anselmo Borges no seu último livro: «a Igreja e a Cúria
Romana fizeram mais ateus que Marx, Nietzsche e Freud”
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