Burkini
não, obrigada
Em
praias francesas decidiram interditar o burkini – que deveria
chamar-se ‘burbanho’, porque de bikini não tem nada
24 de agosto 2016
Imagine a leitora ou
o leitor que, numa situação de tortura, o carrasco lhe pergunta:
prefere levar dois pares de estalos ou fazer um jogo de vólei na
praia, debaixo do sol de Verão, com um fato preto a cobri-la/o da
cabeça aos tornozelos?
A situação é
caricata, antes de mais por inverosímil: na tortura, não há
escolha – embora possa haver simulacros de escolha que constituem,
em si mesmos, um requinte suplementar de tortura.
O caso clássico da
perversão da liberdade de escolha numa forma de tortura continuada é
o de A Escolha de Sofia (romance de William Styron, filme de Alan J.
Pakula), em que um soldado nazi força uma prisioneira de um campo de
concentração a seleccionar um dos seus dois filhos pequenos para
ser morto; caso a mãe se recusasse a escolher, mataria os dois.
Sofia decide a
sobrevivência de um dos filhos (o rapaz, claro; esta escolha, que o
dia-a-dia das relações entre mães e filhos ou filhas tantas vezes
confirma, seria um tema correlativo deste) e vive o resto da vida
torturada pela culpa.
Não tenho dúvida
de que preferiria que me aplicassem uns estalos a que me obrigassem a
correr à torreira do sol metida num escafandro.
Quando vemos uma
pessoa a bater noutra, sabemos que se trata de uma situação de
violência. Mas a imagem de um par de jogadoras de vólei egípcias
naquela fatiota torturante disputando a bola sobre a rede a um par de
jogadoras alemãs em bikini correu mundo como glorioso postal do
multiculturalismo, da diversidade e da tolerância.
A mim, essa imagem
choca-me: o corpo das atletas egípcias é feito da mesma carne que o
de qualquer um de nós. Os donos de escravos também alegavam que a
capacidade de sofrimento dos negros era diferente da dos brancos.
O islamismo
fundamentalista entende que a mulher é um ser ontologicamente
diferente do homem, uma criatura cujo corpo promove o pecado e que
por isso esse corpo deve ser socialmente apagado. Em 2016, muitas
décadas depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, estas
considerações não são admissíveis, e não deveriam ser acatadas
pelo Comité Olímpico.
Há meia-dúzia de
anos, a Federação Internacional de Natação decidiu proibir uns
fatos de banho ‘milagrosos’ que ajudavam a aumentar a velocidade,
a flutuabilidade e a resistência dos atletas, a bem da igualdade de
condições entre todos os participantes nas competições. Por que é
que os códigos de equidade na indumentária competitiva não se
aplicam do mesmo modo em todas as modalidades?
O argumento
apresentado de que o uso daqueles trajes foi ‘escolha’ das
atletas egípcias (aliás, de uma delas; a outra teve de se conformar
a acatar a ‘escolha’, pelos vistos mais válida, da parceira) não
colhe.
Se um atleta não
pode escolher roupa que lhe amplie as capacidades, também não deve
poder escolher roupa que lhas diminua.
Mas a questão vai
mais fundo, e é a seguinte: só se pode falar de escolha quando se
parte da liberdade.
Pergunto-me que
liberdade de decisão sobre o seu corpo tem uma mulher criada e
educada nos preceitos do Islão, à qual desde o nascimento foi dito
que uma mulher destapada é uma pecadora destinada à condenação
eterna, e que, se o fizer, será, no mínimo, repudiada pela família.
Na Europa, a
discriminação de género não é admissível.
No entanto, o jornal
francês Libération publicava há dias uma reportagem em que
revelava existirem em França, hoje, cerca de 50 mil mulheres vítimas
de mutilação genital.
No início de
agosto, uma associação de mulheres muçulmanas tentou alugar um
parque aquático do sul de França para realizar nele o ‘dia do
burkini’, um dia em que só mulheres nesse traje poderiam
frequentar o parque, que seria interdito aos homens e às crianças
do sexo masculino com mais de dez anos. Uma mãe com um filho de onze
anos já não poderia levá-lo consigo para esse excepcional banho.
Poucos dias depois,
várias praias francesas decidiram interditar o uso do burkini –
que deveria chamar-se, vá, ‘burbanho’, porque de bikini não tem
nada.
Disse Laurence
Rossignol, ministra francesa dos Direitos da Mulher : «O burkini não
é uma nova linha de swimwear, é a versão de praia de uma burka e
tem a mesma lógica: esconder os corpos das mulheres para que possam
ser controladas. O burkini tem um objetivo. Esse objetivo é
dissimular, esconder os corpos das mulheres para esconder as
mulheres, e o lugar em que isso coloca as mulheres é um lugar que eu
combato, que outros antes de mim combateram, e que tem algo de
profundamente arcaico».
Manuel Valls, o
primeiro- ministro francês, explicou ao jornal La Provence que o
burkini «é a tradução de um projeto político, de
contra-sociedade, fundado nomeadamente na subserviência da mulher»,
acrescentando: «Há a ideia de que, por natureza, as mulheres seriam
impúdicas, impuras, e que portanto deveriam estar completamente
cobertas. Isso não é compatível com os valores da França e da
República». Valores, oui.
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