Dantesco
JOÃO MIGUEL TAVARES
10/08/2016 – PÚBLICO
A
situação da floresta e do território não se alterou um milímetro.
Onze anos depois estamos no exacto lugar onde estávamos, apenas com
alguns bombeiros mais profissionais e uma protecção civil, segundo
consta, mais competente.
É evidente que isto
não é só um problema português, mas é um problema que em
Portugal atinge dimensões dantescas, para utilizar o adjectivo que
mais temos escutado nos últimos dias: vivemos num país com uma
absoluta incapacidade para agir sem ser em face da tragédia. Seja no
problema dos incêndios, seja na questão das finanças públicas ou
da implementação de reformas no Estado, a nossa capacidade de
planeamento de médio e longo prazo é praticamente nula, e só
quando somos colocados perante o abismo é que arranjamos forças
interiores para mudar de rumo. Encostados à parede, somos excelentes
a reagir: improvisamos, inventamos, desenrascamos. Mas antes de lá
chegarmos, mesmo com todos as luzes de perigo a piscar, não queremos
nem saber.
E claro está: assim
que a tempestade amaina e nos sentimos um pouco folgados, voltamos de
imediato ao nosso estado natural, hipnotizados pelo curto prazo, que
isto da vida são dois dias e nenhum de nós sabe o amanhã. Não
admira que um filme como O Clube dos Poetas Mortos continue a ser o
favorito de tanta gente. José Sócrates, por exemplo, adorava-o.
Carpe diem! Seize the day! Aproveita o dia! Como se precisássemos de
Robin Williams armado em professor de Literatura para nos dizer isso.
Nos Estados Unidos, o filme será um estímulo para mudar de vida e
quebrar o statu quo. Em Portugal é apenas uma confirmação da
maneira como vivemos há séculos – é esse o nosso statu quo: um
dia de cada vez. Com uma diferença significativa: os nossos olhos
não estão poeticamente postos no céu, mas brutamente enfiados na
biqueira dos sapatos.
Porque é que somos
assim? É consequência de uma pobreza antiga, com certeza, e de uma
população com profundíssimos défices de educação, atrasos
ancestrais que estão mais enfiados nos nossos genes do que
gostaríamos. Temos expectativas de ser um país europeu desenvolvido
e rico, como os alemães, mas não temos qualquer tradição de
planeamento, e a maior parte de nós ainda vem de famílias que
contavam tostões e faziam filas nas bombas quando a gasolina subia
dois escudos. Não havia o que planear. Para mais, somos dados ao
fatalismo, e a nossa indignação desaparece à velocidade de um
fósforo – as coisas são rapidamente assimiladas como inevitáveis.
Foi o destino.
Às vezes é mesmo o
destino, não digo que não, e as coisas são inevitáveis: ver
aquelas labaredas descer a encosta do Funchal num dia com
temperaturas de 38 graus e ventos fortíssimos apenas nos reduz à
nossa minúscula dimensão perante a força imparável da natureza.
Não há bombeiros, autotanques ou aviões que parem chamas daquelas
num dia daqueles. Mas experimentem recuar 10 ou 11 anos e leiam os
jornais da altura, na última grande vaga de fogos em Portugal. Eles
estavam cheios de textos de especialistas acerca de qual era o
problema da floresta portuguesa e sobre aquilo que havia a fazer.
Esses textos poderiam ser todos impressos outra vez. A situação da
floresta e do território não se alterou um milímetro. Onze anos
depois estamos no exacto lugar onde estávamos, apenas com alguns
bombeiros mais profissionais e uma protecção civil, segundo consta,
mais competente.
O presidente da
República não é o típico português, mas ouvi-lo dizer que é
preciso “pensar a sério como é que se trata da questão do
ordenamento do território” daria para rir, se não fosse tão
triste. A sério? Será desta? Vai ser agora? Ou daqui a 11 anos cá
estarei eu, mais velho, mais gordo e mais careca, a escrever um texto
igualzinho a este?
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