Estou
cansado das inanidades que se dizem sobre incêndios
José Manuel
Fernandes
10/8/2016,
OBSERVADOR
Portugal gastou e
gasta a maior parte do dinheiro em bombeiros e aviões para, quando
chegam os grandes incêndios, se recordar de que quase tudo o resto
que foi proposto e planeado ficou por fazer.
Quando começam os
fogos de Verão há duas rotinas que se repetem. A primeira é a das
inesgotáveis e repetitivas reportagens a mostrar populares e
bombeiros queixando-se da “falta de meios”. A segunda é a dos
responsáveis políticos a repetirem umas banalidades gerais sobre
ordenamento e prevenção. Ou mesmo – como sucedeu agora com o
Presidente da República e o primeiro-ministro – a dizerem
disparates com o ar mais sério do mundo.
Vamos ver se nos
entendemos. Primeiro: os fogos de Verão com a dimensão dos deste
ano não são uma fatalidade estival, mas são uma fatalidade de um
país que nunca teve uma política coerente e competente para os
prevenir. Segundo: os fogos de Verão continuarão a sobressaltar-nos
ciclicamente porque nenhum dispositivo de combate algum dia os
dominará quando o terreno é propício à propagação das chamas e
a meteorologia concorre para aumentar os riscos.
Todos se recordam
dos grandes incêndios de 2003 e 2004. Menos se recordarão que nessa
altura se realizou um estudo de enorme ambição do qual resultou
Plano Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios. E quase
ninguém saberá como foi esse plano aplicado e que balanço podemos
fazer dez anos passados da sua aprovação (pela Resolução do
Conselho de Ministros nº 65/2006). O grau de ignorância é tal que
Marcelo Rebelo de Sousa, arrastando atrás de si um enxame de
microfones enquanto visitava uma zona ardida, sugeriu que devíamos
ter “um esquema que envolva o Estado, municípios, proprietários”,
ou seja, o esquema que esse plano desenhava há dez anos. E que
António Costa tenha dito, depois de visitar a Autoridade Nacional de
Protecção Civil (para um “briefing operacional”…), que “é
altura de, dez anos volvidos, não perder mais tempo para fazermos
aquilo que é essencial fazer, a reestruturação da floresta de
forma a termos uma floresta mais resistente, mais sustentável”, ou
seja, concretizar aquilo que ele mesmo ajudou a que não se
concretizasse.
Independentemente de
um balanço mais técnico e mais completo, é possível olhar para o
que mudou, e para o que não mudou, nestes dez anos e começar a
perceber o que correu mal.
Há uma coisa que
mudou: hoje há muito mais meios de combate aos incêndios. E
melhores estruturas de coordenação (o que não significa que, no
terreno, o comando das operações continue a ser, com frequência,
incompetente e desastroso). Hoje consegue-se chegar mais depressa a
um incêndio e, assim, também se consegue evitar mais incêndios
catastróficos. Isto acontece porque se gasta hoje muito mais
dinheiro com a Protecção Civil – e gasta-se em boa parte porque
em 2005/2006, quando António Costa era ministro da Administração
Interna, ele conseguiu fazer valer o seu peso político para
concentrar os recursos disponíveis no que dependia do seu
Ministério, isto é, nos bombeiros, nos sapadores da GNR, nos aviões
e nos famosos Kamov (os helicópteros contratados pelo seu secretário
de Estado Rocha Andrade em condições muito criticadas pelo Tribunal
de Contas). O ordenamento e a prevenção ficaram com muito menos
recursos e muitas das propostas nesta área do grupo de trabalho que
elaborou o plano de 2006 nem sequer foram adoptadas, isto é, nem
chegaram a entrar na tal resolução do Governo. Para ter uma ideia
dos números bastará referir que por cada quatro euros gastos no
combate aos incêndios se investe apenas um euro na sua prevenção.
Estamos assim
perante um quadro de fatalidade fácil de explicar e entender. Por um
lado, a mudança radical por que passou o mundo rural nas últimas
décadas fez com que as nossas florestas deixassem de ter o uso
múltiplo que tinham no tempo dos nossos avós. Ninguém vai lá
buscar lenha para os fornos das aldeias, nem fenos para as camas dos
animais, tal como já não há nelas rebanhos que se alimentem da
vegetação luxuriante. Quando ouvimos dizer que as matas não estão
limpas é a esta realidade que nos estamos a referir, pois contratar
equipas ou máquinas para proceder à sua limpeza não é hoje
economicamente sustentável na maior parte das matas (e nem o Estado
a realiza nas florestas que lhe pertencem).
O resultado é a
acumulação de materiais combustíveis que, caso ocorra uma ignição,
facilmente geram incêndios incontroláveis – e que são
incontroláveis aqui como são nos Estados Unidos ou na Austrália,
países mais ricos e com meios de combate mais sofisticados. Ou seja,
no momento em que as condições meteorológicas se conjugam para
permitir mais ignições, rapidamente todo o dispendioso dispositivo
de combate no qual se investiu e investe milhões e milhões de euros
fica sem capacidade de resposta – e não por acaso 80% da área que
arde num ano arde em apenas 10 a 12 dias. Nos anos em que a
meteorologia é nossa amiga, os políticos batem palmas e saúdam o
sucesso do “dispositivo de combate a incêndios”; nos anos, como
foi o de 2010 e volta a ser este de 2016, em que a meteorologia não
ajuda… a culpa é da meteorologia. Ou então da “falta de
ordenamento”, uma banalidade bonita de dizer e que fica sempre bem
na boca de um responsável.
De novo o problema é
mais complicado e exige muito mais vontade política da que tem
existido, pois o que falta fazer em inúmeras frentes é
mediaticamente invisível, o que contrasta com a visibilidade sem
limites ou pudores que dá visitar uma zona devastada por um incêndio
ou posar no meio de uma corporação de bombeiros.
Mas há mais. Apesar
do Plano de 2006 ser menos ambicioso do que desejariam os técnicos
que o elaboraram, a sua aplicação foi sendo monitorizada e existem
relatórios disponíveis. Consultá-los é muito educativo, pois
deles resulta que onde houve Kamovs de acordo com as necessidades,
não houve acções de prevenção e ordenamento minimamente
satisfatórias. Quando lemos (no último relatório disponível,
relativo a 2009/2010) a parte ao primeiro eixo estratégico, “aumento
da resiliência do território aos incêndios florestais”, e
verificamos medida a medida o que foi feito e o que ficou por fazer,
deparamo-nos frequentemente com expressões como “não realizado”
ou, mais pudicamente, “sem informação disponível que permita
aferir a sua concretização” (em domínios tão importantes como o
de “melhorar a informação sobre combustíveis e alteração do
uso do solo”, por exemplo). Já quando passamos para o eixo
“melhoria da eficácia do ataque e da gestão dos incêndios” o
panorama altera-se radicalmente, mesmo quando há falhanços claros
em áreas menos mediatizados (como o número de vigias da floresta,
por exemplo).
Mais: os problemas
não se resumem a um quimérico “ordenamento” e ainda menos a
votos piedosos (ou leis inúteis) sobre a limpeza das matas pelos
proprietários. Basta notar que, como referiu ao Observador um dos
especialistas que realizou o estudo de 2005, José Cardoso Pereira,
Portugal continua muito longe das melhores práticas em domínios
como o uso do fogo controlada, a criação de uma rede de faixas de
gestão de combustível ou o uso do gado miúdo como técnica
ambientalmente sustentável de remoção de vegetação.
Infelizmente sinto
que estou aqui a escrever este texto sem que isso sirva para muito,
como não serviram os muitos que escrevi, no mesmo sentido e num
horizonte temporal de 30 anos (já sou um velho jornalista…).
Portugal não tem melhor meteorologia para evitar grandes fogos
florestais, nem uma orografia que facilite a exploração florestal
ordenada (ou o combate aos incêndios. Até aqui todos de acordo. Mas
a Portugal faltaram sobretudo políticas correctas, capacidade de
fazer as escolhas menos populares e de enfrentar lobbies poderosos
como os dos bombeiros (e sei do que falo, pois até já fui dirigente
de uma associação de bombeiros voluntários) e dos poderes locais.
É por isso que é tão ridículo dizer que, dez anos depois, se deve
fazer o que não se quis fazer há dez anos.
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