O
injustificável acordo orto(?)gráfico
Gastão Cruz
07/08/2016 – 07:30
A
questão do chamado “acordo ortográfico” consiste,
essencialmente, no facto de ele ser uma completa inutilidade.
Reabriu, porventura
com redobrada intensidade, a (felizmente) nunca fechada querela
acerca do chamado “acordo ortográfico”.
Importa começar por
dizer que a alteração às normas da escrita do português que dá
por esse nome é uma aberração injustificável, assente em
equívocos provenientes de uma notória falta de ponderação e de
uma gritante insensibilidade linguística.
É, evidentemente,
por isso que tantos escritores recusam ter em conta o rol de
incongruências que compromete e invalida essa proposta nova forma de
escrever português.
Chamando as coisas
pelos seus nomes, é uma completa irresponsabilidade que os políticos
(de vários sectores) persistam em defender tamanha aberração, ou,
como fez, há dias, numa entrevista, o meu velho amigo e excelente
poeta Luís Filipe Castro Mendes, assumam uma atitude de ligeireza e
quase indiferença perante a medonha agressão que o “Acordo”
representa.
A questão do
chamado “acordo ortográfico” consiste, essencialmente, no facto
de ele ser uma completa inutilidade, que desfigura desnecessariamente
o português escrito, em nome de um suposto objectivo cujo ponto de
partida não passa do erro gerado por um entendimento absurdo do que
faz divergir os diferentes usos da língua.
A que se
destinariam, então, as alterações agora introduzidas na nossa
grafia, tal como ela tem existido desde 1945?
O “objectivo”
seria, segundo se afirma, “a unificação da ortografia do
português em todo o espaço lusófono”.
A pretensa
necessidade de aproximação colocar-se-ia, sobretudo, entre as duas
variantes ortográficas principais, as utilizadas em Portugal e no
Brasil.
O que foi feito
assenta na suposição errónea de que as diferenças entre o
português europeu e o sul-americano são fundamentalmente
ortográficas, quando sabemos bem que a separação maior dessas duas
vertentes não reside no domínio da ortografia, e sim nos planos
vocabular e sintáctico.
Nenhum brasileiro,
alguma vez, deixou de entender um texto oriundo de Portugal, por
causa da grafia usada até há pouco (e que continua a ser utilizada
por muitos, entre os quais me incluo), assim como nenhum português
jamais encontrou qualquer especial dificuldade, por causa das
diferenças gráficas, em apreender o que tenha sido escrito de
acordo com as normas vigentes em terras brasileiras.
Poderei, a simples
título de exemplo, citar um caso que me parece representativo de
diferenças de outra ordem, que não a ortográfica, entre as duas
vertentes da língua.
Encontrei, em dado
momento, uma notícia publicada no jornal O Globo, com o curioso
título “Jornalista preso por grampos”.
Era na altura em que
muito se falava dos escândalos do jornal britânico The Sun, quando
vários jornalistas foram acusados de fazer escutas telefónicas,
ilegítimas, evidentemente. Lendo o artigo, percebia-se facilmente o
que a frase “jornalista preso por grampos” significava: é claro
que os “grampos” eram as tais “escutas telefónicas”, que
teriam levado à prisão do jornalista em causa. Mostrei esta frase a
várias pessoas, que, sem conhecerem o texto da notícia, não
conseguiram interpretá-la, imaginando talvez que o jornalista teria
sido pendurado com molas, numa corda, como roupa a secar.
Na verdade, nenhum
acordo ortográfico poderá impedir estas barreiras semânticas,
assim como, no domínio da construção frásica, nenhum brasileiro
deixará de dizer “Me diga”, onde os portugueses dizem “Diga-me”;
e também não vale a pena supor que, algum dia, algum brasileiro
escreva ou, menos ainda, diga “Dar-te-ei”, “Far-me-ás” e
outras conjugações pronominais como estas.
Tanto no plano
vocabular como no da construção frásica, as diferenças são, como
se sabe, múltiplas e enormes. Alguém já se preocupou em fazer um
“acordo” para essas áreas?
É claro que não:
toda a gente sabe que isso seria estúpido e inútil, tão estúpido
e tão inútil como o chamado “acordo ortográfico”, que não se
entende como não foi ainda completamente e definitivamente afastado
das nossas vidas, continuando, pelo contrário, a espreitar-nos e a
assombrar-nos, em cada esquina televisiva e em vários periódicos de
estimação (e saúdo, naturalmente, os que não se submeteram a essa
prática aberrante).
As alterações que
o acordo estipula vão, em geral, contra a etimologia das palavras:
são, evidentemente, entre muitos outros, os casos de “actor” ou
de “espectador”, que, perdendo-o agora em português, conservam o
“c” em várias das línguas de origem latina, o mesmo acontecendo
com “espectro”, por exemplo – o que sucede até em inglês, que
tem, como sabemos, uma ampla raiz latina.
Para os escritores,
em particular, essas mudanças implicam também uma perda de
sensibilidade linguística, já que descaracterizam as palavras,
despojando-as de traços inalienáveis da sua natureza filológica,
com tanto peso na imagem gráfica respectiva.
É óbvio que, para
dar como exemplo um caso frequentemente referido, a aberrante grafia
“espetador”, aproximando o vocábulo do verbo “espetar”, é
uma monstruosidade que choca quem tiver um mínimo daquela
sensibilidade linguística que mencionei.
Não posso deixar de
referir, muito rapidamente, o facto de, entre muitos outros casos
semelhantes, “espectador”, “recepção”, “óptico”,
manterem, na grafia brasileira, respectivamente, o “c” e os “p”,
enquanto em Portugal eles são absurdamente eliminados. Não se
destinava o acordo a “unificar a ortografia em todo o espaço
lusófono”?! É assim que a unificação é feita? O que justifica
a supressão dessas consoantes, se, em vez de aproximar, ela afasta
as duas grafias?
Terminarei com mais
um significativo caso, elucidativo, a meu ver, da insensatez, ou,
talvez mais exactamente, da incompetência linguística, dos
responsáveis pela elaboração do “acordo”: ao abolirem o “p”
nas palavras “óptica” e “óptico”, relacionadas com a visão,
estabelecem uma confusão absoluta entre esse fenómeno e o fenómeno
acústico, uma vez que o vocábulo “ótico”, que, obviamente, já
tinha esta grafia, se tornou indistinto do outro “óptico”, o
visual.
Em Outubro de 1958,
o número 3 dos Cadernos do Meio-Dia, dirigidos por António Ramos
Rosa e Casimiro de Brito e publicados em Faro, abria com um poema de
Emiliano da Costa, intitulado “Quiasmas”, cuja base era,
precisamente, um jogo entre o “óptico” visual e o “ótico”
auditivo.
Eis o curto poema:
“Num cruzamento fibrilar, neurótico, / Feito de som e luz, de luz
e som, / Ouvi-me, dentro, vi-me um orfeom, / Eu, todo sensorial –
um ótico-óptico. // Como é belo ouvir, / Ouvir tua voz, / Depois
teu olhar / Ver dentro de nós! // Tecidas por mim, / Tecidas em
cruz, / Fibras sensoriais / De ver e de ouvir. / – Óticas de som.
/ – Ópticas de luz.”
Com o chamado
“acordo ortográfico”, este poema não poderia existir.
Termino, apelando ao
Presidente da República, ao Primeiro-Ministro, ao Ministro da
Cultura, para que reabram este processo, no cumprimento do dever
cultural que é a defesa das raízes e das características
linguísticas e filológicas do português.
Poeta, crítico
literário e encenador
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