“Mouraria,
Intendente e Anjos estão a revelar-se uma nova fronteira de
interesse para o capital imobiliário” em Lisboa
POR O CORVO • 13
OUTUBRO, 2016 •
Luís
Mendes, professor e investigador no Instituto de Geografia e
Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, fala com O
Corvo sobre o processo de gentrificação, ou turistificação, que
tem afectado os bairros históricos da capital portuguesa. Detentor
de uma perspectiva crítica e, sobretudo, construtiva, Mendes fala
dos principais desafios enfrentados pelos moradores e comerciantes de
zonas como o Bairro Alto, Alfama, Mouraria ou Anjos. O investigador
diagnostica as razões e as consequências da actual dinâmica
imobiliária, mas também aponta alternativas à mesma.
Texto: Daniel Toledo
/ Fotografias: Hugo David*
Acha que os bairros
históricos do centro de Lisboa estão a viver um processo de mudança
demasiado radical?
Sem dúvida! De há
uma década para cá, os bairros históricos do centro de Lisboa
estão a conhecer uma intensificação muito grande da gentrificação,
em virtude de uma aceleradíssima turistificação. Quer os moradores
como os comerciantes locais estão a ser expulsos e desalojados de
forma directa e indirecta, à medida que surgem centenas de
apartamentos de alojamento turístico e comércios sofisticados. Pelo
que a função habitacional e comercial local está a dar lugar à
função turística, de forma dominante e sem paralelo. Estamos a
tornar Lisboa num parque temático, numa Disneyland, museificado-a e
onde os habitantes correm o risco de ficar apenas como figurantes num
cenário para turista ver, ficando também a identidade, história e
memória destas comunidades cativas da lógica do consumo turístico!
Isto nem sempre foi assim!
Então, como é que
era, que diferenças vê entre a Lisboa de há 5 anos e a Lisboa de
hoje?
Há muitos anos,
como áreas de grande interesse turístico, os bairros típicos de
Lisboa conviviam bem com o turismo e com o surgimento de novos
habitantes. A gentrificação era leve ou inexistente. Designo-a de
“gentrificação embrionária”. Sabemos que, até ao início do
século XXI, o processo era marginal e embrionário nas duas grandes
cidades portuguesas, Lisboa e Porto. Digo isto, pois o seu estádio
era primário, tanto que o seu crescimento era lento e esporádico,
manifestando-se no espaço urbano de forma pontual e fragmentada,
numa pequena escala, circunscrita e limitada a apenas alguns
apartamentos ou, quando muito, a alguns quarteirões de bairro.
O desalojamento era
diminuto ou mesmo inexistente. Isto aconteceu porque todas as
políticas de reabilitação urbana assumidas desde os anos 70, e até
início do século XXI, eram muito protetoras dos inquilinos e das
populações mais vulneráveis que viveram durante décadas no centro
histórico. Para isso também contribuiu a lei do congelamento das
rendas de 1948, que manteve o valor das rendas pagas a um nível
muito baixo, protegendo o inquilinato, mas também contribuindo para
o agravamento de um mau estado dos edifícios.
Agora, os inquilinos
sentem mais dificuldades que antes?
Neste momento, tanto
o Porto, como Lisboa, vivem um novo estádio de gentrificação, em
todo diferente do anterior, muito devido à explosão de diversas
formas de alojamento turístico, promovidas sobretudo pelo grande
investimento estrangeiro injetado por proprietários de peso e
grandes grupos económicos de promoção imobiliária. Enquanto os
indivíduos pioneiros continuam a influenciar a área, a
gentrificação torna-se frequentemente acompanhada por agentes
imobiliários de maior envergadura. A reabilitação urbana começa a
afigurar-se como estratégia política e económica prioritária para
a revitalização do centro histórico.
Como resultado do
aumento do volume de intervenções imobiliárias, as melhorias
físicas e arquitectónicas tornam-se cada vez mais visíveis nesta
fase. Consequentemente, os preços das casas nos bairros históricos
começam a subir galopantemente.
Sem regulação ou
controlo moderado sobre a subida das rendas, o processo de
desalojamento expande-se para formas mais agressivas, à medida que
os valores imobiliários do bairro também aumentam e o Estado aprova
legislação facilitadora do despejo de habitantes e comerciantes e
da iniciativa privada. As melhores propriedades habitacionais e
comerciais tornam-se parte do mercado de classe média, à medida que
os proprietários procuram tirar proveito da notoriedade reforçada
da área. Isso acaba por conduzir a um maior desalojamento.
Desalojamento que
afecta, mais que todos, aos bairros históricos de Lisboa?
Neste momento,
Alfama, Bairro Alto e Santa Catarina estão totalmente
turistificados, com uma média de uma cama/dormida/turista por dois
habitantes locais. Já muito pouco se pode fazer, a não ser conter o
avanço contínuo da fronteira da turistificação. Mouraria,
Intendente e Anjos estão a revelar-se uma nova fronteira de
interesse para o capital imobiliário, até porque são áreas da
cidade muito apetecíveis para o alojamento turístico, pois fogem
ainda à saturação de oferta de mercado de alojamento referida nos
primeiros bairros mais tradicionais, já bastante turistificados.
Se o alojamento
local destinado ao turismo está a afetar os moradores de alguns
bairros históricos, será suficiente a equiparação da tributação
desse alojamento ao alojamento habitacional como forma de controlar o
problema?
A destruição do
mercado de arrendamento e o desalojamento e despejo de antigos
moradores são uma realidade para dar origem a diversas formas de
alojamento turístico, muitas vezes de luxo. Os proprietários de
imóveis estão a apostar em força no alojamento turístico local,
por considerarem ser um investimento mais rentável e seguro, devido
à instabilidade geral do regime de arrendamento
clássico/habitacional de longo prazo. Neste momento, muitos
proprietários acham que o investimento em alojamento local é mais
seguro e permite uma mais eficaz e rápida reprodução do capital
imobiliário, comparativamente com o que sucede com o arrendamento
habitacional.
A aposta dos
proprietários no alojamento local prejudica a oferta de casas para
arrendar e faz aumentar o preço das rendas para valores
insuportáveis e incomportáveis para a maior parte das famílias. A
verdade é que o investimento também é mais rentável, até por
força do regime fiscal existente. O regime de tributação faz
discriminação entre o arrendamento clássico e o arrendamento a
turistas.
A equiparação de
ambos impostos vai na boa direção, é isso?
Neste mês de
Outubro de 2016, o Governo anunciou que o imposto sobre o Alojamento
Local pode aumentar de 5 para 28%. A proposta está ainda a ser
trabalhada pelo Governo, mas o executivo quer ajustar o valor pago
pelo arrendamento local e pelo arrendamento habitacional, o que pode
passar pelo aumento do imposto pago nas rendas de curta duração.
Assim, estará a fazer uma equiparação na tributação entre os
dois sectores, o que parece justo como medida de regulação e
contenção de um negócio que evidencia estar a atingir a saturação
e o excesso de oferta nos bairros históricos. É certo que o
alojamento local, de short-rental para turistas, tem sido um dos
responsáveis pela subida dos preços das rendas e no centro da
cidade, agravando as condições de acesso à habitação.
Não podemos,
contudo, esquecer que nos centros históricos esta subida recente e
galopante dos preços da habitação resulta, em grande medida, da
enorme procura de imóveis para aquisição por parte de uma elite
capitalista transnacional estrangeira – com grande capacidade
financeira e atraída pelo regime fiscal dos residentes não
habituais, pela lei dos Vistos Gold e incentivados pela política de
isenção fiscal de que beneficiaram os fundos de investimento
imobiliário. Estes três programas do governo social-democrata
transacto incentivaram a acumulação de capital imobiliário à
custa da financeirização progressiva do parque habitacional
lisboeta.
Que parte jogam, ou
deveriam jogar, as instituições publicas neste problema?
Quer a Câmara
Municipal de Lisboa, quer o actual Governo, têm-se demonstrado
atentos ao que se está a passar no centro histórico de Lisboa, até
porque diversos movimentos locais (como as comissões de moradores,
associações de bairro, organizações não governamentais, entre
outras) e o meio universitário, em particular, e a sociedades civil
e a opinião pública em geral, com o apoio da comunicação social,
se têm manifestado, de forma a que se comecem a tomar medidas de
regulação da intensa turistificação que se regista.
No início deste
ano, lançou-se o Programa de Rendas Acessíveis PRA (Lisboa PRA
todos), um Fundo Nacional de Reabilitação Urbana, o Programa das
“Lojas com História” e a aplicação da Taxa Turística em
Lisboa. São medidas importantes e necessárias, mas insuficientes!
Essa é a parte
financeira, mas muitos, você incluído, preferem falar dos bairros…
No meu entendimento,
as várias medidas até agora tomadas pelo Governo e pela Câmara
Municipal de Lisboa são uma condição importante para manter uma
estrutura residencial e comercial sustentável e resiliente –
aliás, importante factor de atractividade turística pela
autenticidade que representa para o turista e visitante. Mas não
serão suficientes, se não forem articuladas com uma política de
habitação justa, que garanta o direito à cidade. Só por via da
fixação da população nos bairros, valorizando a função de
residência permanente e não a de alojamento turístico ou
short-rental (alojamento de curta duração), estaremos a garantir
uma procura constante, que mantenha vivo o comércio local e a
própria vida nestes bairros.
Que medidas
deveriam ser tomadas com mais ou menos urgência?
Há várias medidas
que devem ser adoptadas, neste momento, para mitigar os impactos de
uma gentrificação pelo turismo. Elas passam por adoptar uma
política de cidade em que se faça uma reabilitação urbana para e
pelas pessoas, ao mesmo tempo que se combate a especulação
imobiliária e promove o mercado social de arrendamento; ao invés do
investimento em edifícios emblemáticos de grande projecção
internacional e cujo único fim acaba por ser atrair ainda mais
turistas para uma cidade que está a rebentar pelas costuras com
eles! – pensando aqui, por exemplo, na sobrelotação de
equipamentos e infra-estruturas.
Mas quais são as
medidas concretas ?
Eis algumas medidas
que se podem adoptar: suspender a atribuição de licenças a hotéis
e hostels até à elaboração de um estudo sobre os impactos do
turismo, à semelhança de outras cidades e em permanente
actualização, com o objectivo de definir os impactos do turismo e
índices de capacidade de carga turística da cidade. A realização
de uma nova lei restritiva do alojamento local, à semelhança de
outras cidades, como Barcelona, Paris, Berlin, Nova Iorque, Londres
ou São Francisco). A discussão e revisão da nova Lei das Rendas de
forma a que se protejam tanto os direitos dos senhorios como dos
inquilinos. A sensibilização das associações de moradores para,
nas respectivas assembleias de condóminos, usarem formas de
compromisso colectivo e consenso democrático que faça depender a
criação de apartamentos para acomodação/alojamento turístico da
unanimidade dos moradores do prédio.
Mas também se pode
iniciar a reabilitação urbana de edifícios de propriedade
municipal ou estatal para uso como residência temporária para
populações vulneráveis. Ou obrigar à colocação, no mercado, dos
fogos devolutos, penalizando de forma eficaz o abandono dos
alojamentos; agilizar o desbloqueio das casas vazias, com penalização
fiscal dos proprietários que as mantenham desabitadas e devolutas;
penalizar o investimento especulativo, criando novos impostos de
propriedade que agravem penalizações sobre os espaços desocupados.
Por fim, o poder
municipal deve criar sanções, incluindo impostos e taxas, para o
desenvolvimento ou actividade de investimento que se concentra na
geração de lucro sem benefícios para os residentes existentes.
E por parte da
cidadania, das associações de vizinhos e moradores, de
comerciantes, onde começa e termina a sua participação neste
processo?
A cidade deve ser de
todos e para todos! Penso que é possível, na base do trabalho em
rede e participado entre os vários actores, profissionais,
habitantes, técnicos, investigadores, políticos e todos os
interessados, chegar a um consenso que não fique preso apenas à
lógica da habitação como mercadoria ou ao imobiliário apenas como
sector de rentabilidade da finança e da banca. Ou que o turismo,
como importante actividade humana para a vida da cidade, não se
resuma apenas às gananciosas mais-valias económicas do seu lucro,
sem respeito pela identidade e memória das comunidades dos bairros
históricos que explora para seu proveito. Consenso que assuma uma
postura moderada no entendimento do turismo, que o veja para além da
visão dicotómica com que tem sido lido nos últimos anos: ora como
cura para todos os males, oportunidade e desafio a desenvolver
desenfreadamente, ora como ameaça, fatalidade ou desastre que tem de
ser combatido a todo o custo.
Este ponto de
equilíbrio é muito complicado de ser atingido, mas tem de ser
encontrado no diálogo entre o sector profissional do alojamento
turístico, a câmara municipal e os moradores das comunidades
afectadas. E isso faz-se através da aplicação de um planeamento
urbano de proximidade local que permita um desenvolvimento turístico
regulado e sustentável, que não comprometa a sustentabilidade e
coesão dos bairros onde incide.
Pode imaginar um
futuro para estes bairros que traga alentado para os moradores?
É difícil
responder e fazer futurologia, pois estamos a entrar em terreno
desconhecido. Parece-me que, em certos sectores da cidade, passámos
o ponto de não retorno a nível do equilíbrio da economia e da
sociedade locais. A verdade é que a turistificação, apesar de
representar crescimento económico, retenção de investimento e
criação de emprego – mesmo que precário -, está a assumir
contornos verdadeiramente hegemónicos, tornando o centro histórico
monofuncional e perigosamente descaracterizado. Sabemos que a
hiperespecialização num sector e a monofuncionalidade não são
características que qualifiquem um território e contribuam para a
sua resiliência face a eventuais mudanças e ameaças externas que
surjam do contexto internacional. Por isso, penso que a cidade se
encontra mais vulnerável a flutuações económicas no sector e
menos resiliente.
Por outro lado, a
descaracterização dos bairros históricos e a sua disneyficação
destroem precisamente a autenticidade, a memória e a identidade das
comunidades, condições que, justamente, são as que constituem
atrativo turístico para o visitante e turista. Ao fim ao cabo,
parece que esta Lisboa gentrificada é menos cidade, pois deixa de
ser cosmopolita e plural, para ser mais criativamente mercantil,
apenas aburguesada e menos pelo direito à cidade.
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