“Make
America Hate Again”?
JORGE ALMEIDA
FERNANDES 15/10/2016 – 11:31
Nada
indica que a vaga de fundo populista encabeçada por Trump se vá
diluir depois das eleições.
A América
encontra-se perante escolhas dramáticas. Nos últimos dias, a
vitória de Donald Trump tornou-se menos provável. Se esta tendência
se confirmar no dia 8 de Novembro, será uma esplêndida notícia
para os democratas e para os 50 dirigentes republicanos que, em
Agosto, proclamaram que Trump “seria o Presidente mais perigoso da
História dos Estados Unidos”. A maioria dos europeus e asiáticos
suspirará de alívio — a excepção seria Vladimir Putin. Mas a
eventual vitória de Hillary Clinton não será um garante de
bonança.
Nada indica que a
vaga de fundo populista encabeçada por Trump se vá diluir depois
das eleições. Pelo contrário, ameaça permanecer como factor de
agitação política. Se os democratas não conquistarem o Senado —
já que a Câmara dos Representantes parece inacessível —, Hillary
será confrontada com uma nova fase de bloqueio institucional, em que
dificilmente conseguirá governar.
Thomas Friedman,
colunista do New York Times (NYT), equacionou esta hipótese. “O
cenário de pesadelo — excluindo, Deus o permita, uma vitória de
Trump — é que Clinton vença por margem tangencial e os
republicanos dominem a Câmara e o Senado.” Trump manteria “a
base republicana em estado de permanente fúria, intimidando os
legisladores republicanos favoráveis ao compromisso. Se acontecer, a
América ficará à deriva”.
O outro motivo de
perturbação é o futuro do Partido Republicano, o Grand Old Party
(GOP), em crise de identidade e que se arrisca a ficar refém do
“trumpismo”, mesmo que o magnata desapareça de cena. Sem um GOP
forte e “normal”, o quadro político americano ficaria
perigosamente desequilibrado.
Os republicanos
As opiniões são
passionais. O neoconservador Robert Kagan, que abandonou o GOP,
escreve no Washington Post: “Das coisas notáveis que aprendemos
nestas eleições, a mais significativa é que o actual Partido
Republicano é inapto para dirigir o país. Falhou no maior teste que
um líder ou um partido pode enfrentar e falhou espectacularmente.”
O desafio era a candidatura de Trump. Teme que “engendre o seu
próprio suicídio”.
O colunista E.J.
Dionne, este do campo democrático, assinala no NYT a
responsabilidade do GOP na ascensão do trumpismo: “Durante anos,
os republicanos fizeram um excepcional exercício de acrobacia:
mobilizar a cólera da extrema-direita populista e os eleitores da
classe operária branca por trás de um programa cujos benefícios
iam para os bolsos das elites económica.” Hoje o partido está em
perigo e “ninguém esperava uma implosão tão espectacular”.
Nas duas últimas
semanas, a campanha rodou em torno de três pontos. Hillary
consolidou a sua vantagem — cerca de seis pontos na média das
sondagens. Ela beneficia, paradoxalmente, do discurso de Trump, que
lhe facilita a recuperação do voto das minorias e, sobretudo, das
mulheres.
Encostado à parede
e contra a opinião do aparelho republicano, Donald Trump reafirmou a
sua estratégia de falar para o núcleo duro do seu eleitorado, cuja
coesão e agressividade se mantêm, mas que parece insuficiente para
uma recuperação vitoriosa. Esta escolha dilacerou o Partido
Republicano que enfrenta um dilema: uma demarcação firme de Trump
implica o risco de retirar votos aos seus candidatos. Os dirigentes
parecem resignados à derrota nas presidenciais e jogam tudo no
Congresso.
Mas, à excepção
de Paul Ryan, líder da Câmara dos Representantes, optaram pela
mudez, deixando a praça pública aos tribunos de Trump. As últimas
três semanas de campanha prometem ser mais agressivas e sujas. E
pode haver mais “surpresas de Outubro”.
O populismo
O fenómeno Trump,
americaníssimo por história e cultura, soma-se à maré populista
que assola a Europa. Em ambos os casos, a base social do protesto é
constituída pelos “perdedores” da globalização e das
revoluções tecnológicas. O mais politicamente relevante, na medida
em que incentiva fenómenos como a xenofobia e a antipolítica, é o
sentimento de abandono e insegurança nas classes populares.
Em muitos países
europeus, a esquerda constatou uma viragem das classes populares,
sobretudo no terreno dos valores, e procurou uma “nova maioria
eleitoral” dela excluindo as “categorias populares”. Os
“sem-papéis” e as minorias identitárias ou culturais
tornaram-se para a esquerda “um povo de substituição”. Esta
linha acentuou o divórcio com as classes populares. Da França à
Áustria, a extrema-direita tornou-se maioritária no voto operário.
É a “esquerda sem povo”
Na América, o
populismo tem fundas raízes desde o fim do século XIX e que se
reavivaram nos anos 1930. Em termos de política anti-imigração é
bom lembrar o slogan “The Chinese must go”, lançado pelo
populista Denis Kearney em 1878 e que deu lugar, em 1882, à primeira
lei da História americana contra uma nacionalidade específica — o
Chinese Exclusion Act. Nos anos 1920, o Congresso impôs severas
quotas à imigração da Europa meridional e Oriental (e só
revogadas em 1965). Também a palavra de ordem “America First”
tem uma história que remonta aos anos 1930. O leitor pode ler um
resumo no ensaio acabado de publicar na Foreign Affairs pelo
historiador Michal Kazin (autor de The Populist Persuasion: An
Americam History)
Os historiadores
distinguem duas tradições de populismo. Uma de esquerda, baseada na
noção de classe e dirigida contra os patrões e plutocratas, outra
de direita, que realça “os verdadeiros americanos” numa óptica
de “nacionalismo racial e numa “concepção da América em termos
etno-raciais”. É esta segunda família a representada por Trump.
Kazin cita o
politólogo Justin Gest, que escreve: 65% dos americanos brancos
aceitariam votar por um partido que defenda “suster a imigração
maciça, reservando os empregos americanos para os trabalhadores
americanos, preservando a herança cristã da América e pondo termo
à ameaça do islão”. O papel de Trump não foi apenas dar voz ao
protesto. Foi transformá-lo numa força política agressiva que
contesta as próprias instituições. Para alguns, a sua campanha
poderia substituir o “America First” por “Make America Hate
Again” (Façam a América odiar de novo).
Mas nada é simples.
“O populismo pode ser perigoso, mas pode ser também necessário”,
adverte Kazin. E cita outro historiador, C. Vann Woodward, que em
1959 escrevia em polémica com intelectuais: “Podemos esperar e ter
esperança em que futuras sublevações abalem as cadeiras do poder e
do privilégio e funcionem como uma terapia periódica que parece
necessária à saúde da democracia.”
Trágico será que
democratas e republicanos permaneçam surdos ao grande mal-estar que
atravessa a sociedade americana ou que o manipulem em termos de mero
cálculo eleitoral. O protesto não passará à história no 8 de
Novembro.
Sem comentários:
Enviar um comentário