COMENTÁRIO
Crónica
de um arrendamento impossível
ANA RUTE SILVA
30/10/2016 – 07:22
Ter uma casa com
recurso a crédito bancário era um caminho tão natural como entrar
para a universidade, casar e ter filhos. Era assim e pronto. O
crédito não era difícil de conseguir. Comprei a minha primeira
casa assim que casei, em 2004, vendi-a dois anos depois pelo mesmo
preço. Não foi um bom negócio, mas precisava de estar mais perto
do local de trabalho. Mudança de cidade, mais uma compra de casa.
Depois de ver dezenas e dezenas de prédios e de ficar abismada com
as paredes a precisar de pintura, cozinhas a gritar por obras e
banheiras amarelas, decidimo-nos por uma nova, longe do centro, mas
com vista desafogada e todas as comodidades, daquelas que enchem o
olho. Correu bem até os filhos crescerem.
As deslocações
diárias e o trânsito infernal ao longo de uma estrada nacional com
semáforos a cada metro, cruzamentos e autocarros em fila indiana,
tornaram as nossas manhãs um pequeno pesadelo perfumado a dióxido
de carbono. Agarrada ao volante, lá ia pensando como era bom levar
os miúdos a pé até à escola, olhar para as nuvens pelo caminho em
vez de bufar a cada travagem.
Uma nova mudança
impôs-se. E é aqui que estamos. Vender a casa está fora de questão
— desta vez não vamos conseguir vendê-la nem sequer pelo preço
que a comprámos — por isso o arrendamento pareceu-nos a melhor
opção. A Internet, como melhor amiga de quem procura casa,
oferece-me agora serões animados à procura da “tal”. As
primeiras pesquisas rápidas mostraram o que Almada tem para
oferecer: para um T3 ou T4 com áreas razoáveis rendas de 600 e 700
euros por casas com mais de 25 anos e a precisar de obras. As buscas
seguiram-se, com mentalizações prévias do tipo “agora é que é”,
como se a força do pensamento pudesse colocar a casa certa no nosso
caminho.
A primeira que fomos
ver ficava num primeiro andar de uma praceta de prédios altos, perto
de transportes. Foram as fotos de uma cozinha totalmente remodelada
que nos fizeram gastar uma manhã. Quando a porta se abriu, os tacos
de madeira cheios de riscos mostraram-se em todo o seu esplendor.
Vieram acompanhados de vidros partidos, paredes queimadas junto às
tomadas de electricidade, varandas forradas a corticite e cheias de
humidade. Dissemos “não obrigado” e continuámos à procura.
Num desses dias em
que os dedos fazem scroll down pelo ecrã sem grande esperança, eis
que surge uma casa enorme, cheia de luz, bem no centro da cidade.
Preço: 1500 euros. Ao telefone quis confirmar se eram mesmo 1500
euros e, afinal, do que é que estávamos a falar. “Não estamos em
Lisboa!”, protestei. “É a melhor casa, na melhor zona de
Almada”, respondeu o mediador imobiliário. Depois da conversa,
faço zoom às fotos e vejo a cozinha dos anos 1990 que nunca foi
remodelada, as casas de banho originais, uma casa gasta e pouco
cuidada para receber os próximos hóspedes. Arrendar para depois ter
de gastar dinheiro em remodelações está fora de questão. Mais uma
fora da lista.
As coisas começaram
a correr melhor quando vimos uma casa por 650 euros que, pelas fotos,
parecia estar com obras recentes. Ligámos, marcámos. Os quartos
demasiado pequenos trouxeram-nos grande desilusão e o T3, que afinal
tinha sido transformado em T2, era apertado para quatro pessoas, duas
delas a crescer vertiginosamente. “Mas será que não vamos
encontrar casa?”, desabafei. A mediadora imobiliária começou,
então, a pôr-me a par da situação actual. “No outro dia, tinha
três clientes interessados numa casa que estava a ser arrendada por
500 euros. Ganhou quem ofereceu 700 euros. E também arrendei outra
por 450 euros, mas com a cozinha a precisar de obras profundas. Quem
arrendou predispôs-se a pagar do seu bolso as obras. Isto está
assim”, contou.
Não sabíamos, mas
tínhamos entrado numa competição renhida pelos melhores metros
quadrados. As regras parecem ser bastante simples: regem-se pelo
“quem dá mais” e o “não importa que as canalizações estejam
más, o inquilino paga porque há poucas casas para arrendar e não
vai encontrar outra melhor”.
Posto isto, a
estrada cheia de semáforos e filas de trânsito aguarda por mim.
Vamos ser boas companheiras até o mercado imobiliário ganhar bom
senso.
Sem comentários:
Enviar um comentário