O
orçamento pastilha elástica
MANUEL CARVALHO
19/10/2016 - 06:10
O
Orçamento para 2017 é uma chiclete e a doçura não tem nada que
ver com isso
Quando se mastiga,
perde depressa o açúcar, mas fica mais elástico e capaz de esticar
até aos limites dos partidos ou se ajustar a qualquer cavidade –
até à do défice público. A Lei que o Governo negociou com os
parceiros da maioria parlamentar ajusta-se à liturgia da esquerda no
fim da sobretaxa ou nos aumentos das pensões, mas a direita não tem
razões de queixa na troca de 1% do imposto de selo sobre os imóveis
milionários pelos 0.3% do “imposto Mortágua”. O Orçamento que
o Bloco defende com timidez e o PSD ataca com veemência nega
aumentos a milhares de pensionistas de baixos rendimentos mas, lá
para o final do ano, concederá aos assalariados mais ricos um
generoso alívio fiscal via extinção da sobretaxa - o que sempre
serve para mostrar o seu ecumenismo e para afundar a perigosa ideia
de que em São Bento está um governo contra os ricos. A proposta
devolve rendimentos aos portugueses, mas sobrecarrega-os com taxas e
multas. Vale tudo para mascarar a austeridade e ficar bem Bruxelas.
Ainda há por aí alguém que fale num “virar de página”?
Nunca no Portugal
recente houve um orçamento tão pantomineiro como o de 2017 e nesta
designação não se expressa apenas censura. Há nas suas alíneas
tantas contradições, tanta oposição entre boas e más medidas,
entre propostas inteligentes, sensatas e de esquerda e outras
patetas, demagógicas e também de esquerda que, no final do dia, é
caso para se dizer que o orçamento não é bom nem mau, antes pelo
contrário. O documento é uma obra que combina extorsão (a receita
cresce 4.1% e sobe para 44.1% do PIB), com sensibilidade social, com
propostas amigas das empresas (redução de IRC no interior ou
benefícios fiscais para aumentos de capital) ao mesmo tempo que
devolve rendimentos, esquece camadas sociais especialmente frágeis e
penaliza investimentos em áreas sensíveis como o turismo
residencial. Se o Governo se esforça por manter promessas eleitorais
ou acordos negociados com os parceiros, fá-lo através de fórmula
política inovadora: a do conta-gotas. Uma pinga em Janeiro com a
taxa de inflação, outra lá para o Verão até aos dez euros, outra
lá para o Inverno com o desmantelamento final da sobretaxa do IRS.
Pode parecer fácil.
Para o PSD ou para o CDS parece até pior – uma mentira ou um
“embuste” e por aí fora. Mas não é. Vários analistas olham
para o orçamento como mais uma prova acabada do génio político de
António Costa. E é impossível não estar de acordo. Não tanto
pelo carácter desalmado, chiclete, de um orçamento que é tudo e
coisa nenhuma ao mesmo tempo. Mas pelo facto de, finalmente, ter
amarrado o Bloco e o PCP ao compromisso europeu. Por os ter obrigado
a perceber que não se fazem omeletes sem ovos. Toda a ginástica
conceptual do orçamento se explica em função dessa prioridade do
Governo: toma lá dez euros para as pensões e deixa-me em paz a
aumentar o excedente primário em 0.6% do PIB; entretenham-se lá com
o aumento da tarifa social da água que o primeiro-ministro e o
ministro das Finanças têm de ir a correr a Bruxelas dizer que o
défice vai ficar em 1.6%. Costa tornou-se um sedutor que depois
manipula as conquistas. Ele é o rei e senhor da coligação. O homem
com poder de contar os ovos para determinar o tamanho, o sabor e o
grau de fritura da omelete.
Domar as feras (onde
está a Frenprof e a CGTP?) e chamá-las para o espaço do consenso
democrático, liberal e europeu que é a matriz do PS é para António
Costa uma tarefa cada vez mais fácil. Porque ainda anda por aí um
bicho papão que torna palatável a obsessão do défice e legítima
a “submissão” (na gíria do PCP) a Bruxelas: o passado recente.
Ou, melhor, Passos Coelho. “O OE prossegue o caminho de reposição
de direitos e rendimentos iniciado há um ano com a derrota do
Governo PSD/CDS e da sua política de exploração e empobrecimento”,
justificava o deputado Paulo Sá, do PCP; “A direita agrediu o país
durante quatro anos com um mantra sobre a suposta inevitabilidade de
empobrecermos” e este orçamento riscado pelas “forças da
maioria política que viabiliza o Governo” começaram a
“transformar a esperança em futuro”, nota José Manuel Pureza,
do Bloco. Não se vê como pode um país e uma economia
sobrecarregada de impostos encarar o futuro. Não se entende como se
baixam impostos a quem tem casas que valem mais de um milhão de
euros e não se aumentam algumas pensões mínimas. Não se
compreende como se abdica de 350 milhões de euros de IVA na
restauração e não se consegue encontrar cabimento orçamental para
recrutar auxiliares para as escolas. Mas, pronto, antes isso que o
regresso da direita.
O problema maior do
orçamento não é por isso o que ele é. É mais o que ele não é.
É uma lei ditada pelo instinto de sobrevivência política, não é
um plano com ideias para o futuro. É uma construção casuística,
incoerente e frágil, não é um plano de ataque aos problemas
essenciais do país. É um remendo nas dificuldades de algumas
camadas frágeis da sociedade, mas não é capaz de atrair
investimento, de responder ao drama de milhares de desempregados de
longa duração ou dos jovens. Como nos tempos de Sócrates ou de
Passos, António Costa tergiversa em relação ao problema essencial:
o de puxar por uma economia e uma sociedade incapaz de pagar tanta
despesa pública. Enquanto houver um contribuinte para colectar
impostos ou um utente para pagar taxas (e, já agora, o BCE a segurar
a dívida pública), jamais haverá orçamentos exigentes e voltados
para o futuro. Enquanto houver um governo minoritário que sobrevive
com o apoio de partidos que não subscrevem o essencial do seu
programa, não haverá lugar para outra política que não a da
pastilha elástica. Com orçamentos destes, só dá para navegar à
bolina. Estamos a iludir-nos com a ideia de que empobrecer lenta mas
inexoravelmente é bom.
O mal maior deste
orçamento está por isso no contexto e na ilusão de que basta um
pouco de ginástica fiscal para o mudar. Por isso ele estica para
abraçar a liturgia do Bloco e do PCP, para sintonizar a esquerda
utópica que acredita na redistribuição mesmo quando nada há para
redistribuir e a exigência dos mercados e de Bruxelas. Não é um
orçamento nem mais nem menos rigoroso do que os anteriores – é
apenas mais inventivo e mirabolante. É, essencialmente, um orçamento
que olha para o Estado como uma entidade esmoler e para o país como
um alvo ideal para a caça de multas e taxas. Daqui a um ano, havemos
de olhar para trás, reparar na nota de vinte, ou menos, que nos
devolveram e lamentar mais um ano perdido. Podemos conseguir aplacar
a ira de Bruxelas (e esse compromisso é de elogiar), mas haveremos
de reparar que estivemos a assobiar para o lado enquanto
alimentávamos um monstro que no final de 2017 será mais caro e
muito mais difícil de vergar. Ou ainda acreditam que o Pai Natal nos
salva do défice e da dívida?
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