Da
plutocracia na América: Trump, Clinton e o mal menor
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 17/10/2016 – 12:05
Para
além da campanha suja que faz lembrar a série House of Cards, Trump
e Clinton são candidatos com tonalidades plutocráticas.
1. As eleições
presidenciais norte-americanas fazem-me pensar no clássico de Alexis
Tocqueville Da Democracia na América. Uma ironia vem à mente: Da
Democracia na América hoje seria Da Plutocracia na América. Nas
suas viagens ao Novo Mundo, feitas na primeira metade do século XIX,
Tocqueville detectou uma paixão intensa pela democracia entre a
população. Hoje observa-se uma paixão exacerbada pela riqueza e
poder. Progressivamente, a república norte-americana originou uma
espécie de aristocracia dos negócios com grandes ambições
políticas. Como resultado, os mecanismos democráticos ganharam
crescentes tonalidades de plutocracia. O termo é de origem grega e
foi criado a partir das palavras ploutos (riqueza) e kratos
(poder).Tem conotações negativas. Na prática, o poder do Estado é
exercido por quem tem maior riqueza, seja directamente ou por
interpostos actores. No topo da hierarquia social há uma reduzida
mobilidade e a sociedade é marcada por clivagens profundas. A par
das facetas admiráveis da América, esta é uma crua e desagradável
realidade.
2. A visão benigna,
quase romântica, do exercício do poder por dinastias empresariais e
políticas é uma ilusão. As famílias que controlam o poder —
especialmente as ligadas ao Partido Democrata —, procuram
apresentar-se como famílias com glamour, com um espírito de serviço
público, bem-preparadas para governar, benfeitoras da América e do
mundo. Os Kennedy — em particular o Presidente John F. Kennedy e a
sua mulher Jacqueline Bouvier —, são o arquétipo dessa boa imagem
nos anos 1960. Beneficiaram e beneficiam de uma hábil construção
da imagem pública com a complacência, ou apoio aberto, dos grandes
media norte-americanos de projecção internacional: New York Times,
revistas Time, Newsweek, New Yorker, hoje também, da CNN, etc. A
família Clinton construiu similar imagem e narrativa. Na sua
biografia, Bill Clinton apresenta-se como alguém que queria ser
músico de jazz até ter conhecido pessoalmente John F. Kennedy. Aí
teve a epifania da sua vida. Levou-o a optar por ser político.
Barack Obama é outro caso de boa imagem nos media para consumo
público, interno e externo. Veremos se está em gestação uma
lógica similar à dos Kennedy e dos Clinton. Não será muito
surpreendente se Michelle Obama, ou as suas filhas, aparecerem
futuramente em cargos políticos, perpetuando os Obama no poder.
3. Tal como Obama, é
verdade que os Clinton — Bill e Hillary — não surgiram
directamente de uma elite de negócios. No entanto, estão
intrincadamente ligados ao poder empresarial e financeiro e aos
negócios fashion das novas tecnologias. Facebook, Google, Apple,
etc., surgem entre os grandes financiadores do Partido Democrata.
Isso foi visível nas campanhas de Barack Obama no passado. Obama
retribuiu o favor tornando-se um apóstolo das novas tecnologias
durante a sua presidência. É também visível na actual campanha de
Hillary Clinton. Mas há ligações menos fashion. Entre 1986 e 1992,
enquanto Bill Clinton era governador do Arkansas, Hillary foi
directora da Wal-Mart, com sede em Bentonville, também no Arkansas —
uma das maiores multinacionais do mundo e das mais agressivas face
aos direitos dos trabalhadores. Tanto quanto se sabe, Hillary nunca
os defendeu nessa função. A Fundação Clinton tem ainda recebido
donativos de membros da família Walton, fundadora da Wal-Mart.
Hillary Clinton parece ter também uma proximidade perigosa com os
meios financeiros de Wall Street, incluindo alguns dos maiores bancos
de investimento como o Goldman Sachs. Recentemente o WikiLeaks
publicou ficheiros que sugerem que, após abandonar o cargo de
Secretária de Estado durante o primeiro mandato de Obama, fez
palestras à porta fechada e terá recebido vultuosas quantias do
sector financeiro.
4. As famílias
dirigentes do Partido Republicano não têm o glamour das famílias
democratas e dificilmente criam a imagem idealizada e romântica dos
Kennedy, dos Clinton e dos Obama, pelo menos no mundo exterior. Têm,
claro, também imprensa que lhes difunde boa imagem, como a Fox News,
The Washington Examiner, New York Post, PJ Media e outros, mas são
vistos sobretudo no interior da América, com pouca projecção e
influência fora dela. Nos republicanos, as ligações ao poder
económico são demasiado ostensivas. A família Bush, com dois
presidentes dos EUA nos últimos trinta anos — George Bush e George
W. Bush —, gerou a sua riqueza no oldfashion sector petrolífero e
também no bancário. Antes de ser Presidente, George W. Bush foi
governador do Texas, onde o petróleo comanda a economia e na
política. Estas ligações não foram inócuas na oposição à
ratificação do Protocolo de Quioto durante a sua presidência. Nem
na resposta suave à Arábia Saudita, após os atentados terroristas
de 11/S, quando a maioria dos autores eram sauditas. A ironia é que
isso até constituía um casus belli mais forte do que contra o
Iraque de Saddam Hussein, mas foi este último que acabou por ser
invadido. Consequência também da proximidade de interesses com o
poder económico, um clássico do Partido Republicano é a defesa da
descida dos impostos, que em primeira linha favorece os mais ricos.
5. A par das
tendências plutocráticas já enraizadas na América surgiram agora
as tendências populistas. A eleição presidencial é marcada pelo
populismo radical de um milionário do mundo dos negócios — Donald
Trump. Pretende fazer-se passar por um self-made man preocupado com
os trabalhadores e os desprotegidos da sociedade. Mas a riqueza
adquirida nos negócios imobiliários está longe de ser resultado de
um trabalho árduo e exemplarmente ética. Como candidato
presidencial, tem recorrido a um discurso político agressivo,
decalcado das estratégias da publicidade comercial e dos reality
shows: chocar para chamar à atenção, ter audiências e vender. Nas
últimas semanas, essa estratégia fez efeito boomerang e está a
afundá-lo. Com tudo isto, não admira que, para muitos
norte-americanos, esta eleição seja desmobilizadora e aumente o
desencanto com a política e a democracia. Para além da campanha
suja que faz lembrar a série House of Cards — ambos usam ficheiros
do WikiLeaks e outros obtidos furtivamente para atacar o adversário
—, Trump e Clinton são candidatos com tonalidades plutocráticas.
Longe vão os tempos em que a América era fonte de inspiração
democrática para os seus cidadãos e o mundo. Entre um milionário
populista radical com ambições políticas e uma tecnocrata que vive
no mundo paralelo e privilegiado das elites tradicionais, a escolha é
mesmo a do mal menor.
Investigador
Sem comentários:
Enviar um comentário