segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Da plutocracia na América: Trump, Clinton e o mal menor


Da plutocracia na América: Trump, Clinton e o mal menor
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES 17/10/2016 – 12:05

Para além da campanha suja que faz lembrar a série House of Cards, Trump e Clinton são candidatos com tonalidades plutocráticas.

1. As eleições presidenciais norte-americanas fazem-me pensar no clássico de Alexis Tocqueville Da Democracia na América. Uma ironia vem à mente: Da Democracia na América hoje seria Da Plutocracia na América. Nas suas viagens ao Novo Mundo, feitas na primeira metade do século XIX, Tocqueville detectou uma paixão intensa pela democracia entre a população. Hoje observa-se uma paixão exacerbada pela riqueza e poder. Progressivamente, a república norte-americana originou uma espécie de aristocracia dos negócios com grandes ambições políticas. Como resultado, os mecanismos democráticos ganharam crescentes tonalidades de plutocracia. O termo é de origem grega e foi criado a partir das palavras ploutos (riqueza) e kratos (poder).Tem conotações negativas. Na prática, o poder do Estado é exercido por quem tem maior riqueza, seja directamente ou por interpostos actores. No topo da hierarquia social há uma reduzida mobilidade e a sociedade é marcada por clivagens profundas. A par das facetas admiráveis da América, esta é uma crua e desagradável realidade.

2. A visão benigna, quase romântica, do exercício do poder por dinastias empresariais e políticas é uma ilusão. As famílias que controlam o poder — especialmente as ligadas ao Partido Democrata —, procuram apresentar-se como famílias com glamour, com um espírito de serviço público, bem-preparadas para governar, benfeitoras da América e do mundo. Os Kennedy — em particular o Presidente John F. Kennedy e a sua mulher Jacqueline Bouvier —, são o arquétipo dessa boa imagem nos anos 1960. Beneficiaram e beneficiam de uma hábil construção da imagem pública com a complacência, ou apoio aberto, dos grandes media norte-americanos de projecção internacional: New York Times, revistas Time, Newsweek, New Yorker, hoje também, da CNN, etc. A família Clinton construiu similar imagem e narrativa. Na sua biografia, Bill Clinton apresenta-se como alguém que queria ser músico de jazz até ter conhecido pessoalmente John F. Kennedy. Aí teve a epifania da sua vida. Levou-o a optar por ser político. Barack Obama é outro caso de boa imagem nos media para consumo público, interno e externo. Veremos se está em gestação uma lógica similar à dos Kennedy e dos Clinton. Não será muito surpreendente se Michelle Obama, ou as suas filhas, aparecerem futuramente em cargos políticos, perpetuando os Obama no poder.

3. Tal como Obama, é verdade que os Clinton — Bill e Hillary — não surgiram directamente de uma elite de negócios. No entanto, estão intrincadamente ligados ao poder empresarial e financeiro e aos negócios fashion das novas tecnologias. Facebook, Google, Apple, etc., surgem entre os grandes financiadores do Partido Democrata. Isso foi visível nas campanhas de Barack Obama no passado. Obama retribuiu o favor tornando-se um apóstolo das novas tecnologias durante a sua presidência. É também visível na actual campanha de Hillary Clinton. Mas há ligações menos fashion. Entre 1986 e 1992, enquanto Bill Clinton era governador do Arkansas, Hillary foi directora da Wal-Mart, com sede em Bentonville, também no Arkansas — uma das maiores multinacionais do mundo e das mais agressivas face aos direitos dos trabalhadores. Tanto quanto se sabe, Hillary nunca os defendeu nessa função. A Fundação Clinton tem ainda recebido donativos de membros da família Walton, fundadora da Wal-Mart. Hillary Clinton parece ter também uma proximidade perigosa com os meios financeiros de Wall Street, incluindo alguns dos maiores bancos de investimento como o Goldman Sachs. Recentemente o WikiLeaks publicou ficheiros que sugerem que, após abandonar o cargo de Secretária de Estado durante o primeiro mandato de Obama, fez palestras à porta fechada e terá recebido vultuosas quantias do sector financeiro.

4. As famílias dirigentes do Partido Republicano não têm o glamour das famílias democratas e dificilmente criam a imagem idealizada e romântica dos Kennedy, dos Clinton e dos Obama, pelo menos no mundo exterior. Têm, claro, também imprensa que lhes difunde boa imagem, como a Fox News, The Washington Examiner, New York Post, PJ Media e outros, mas são vistos sobretudo no interior da América, com pouca projecção e influência fora dela. Nos republicanos, as ligações ao poder económico são demasiado ostensivas. A família Bush, com dois presidentes dos EUA nos últimos trinta anos — George Bush e George W. Bush —, gerou a sua riqueza no oldfashion sector petrolífero e também no bancário. Antes de ser Presidente, George W. Bush foi governador do Texas, onde o petróleo comanda a economia e na política. Estas ligações não foram inócuas na oposição à ratificação do Protocolo de Quioto durante a sua presidência. Nem na resposta suave à Arábia Saudita, após os atentados terroristas de 11/S, quando a maioria dos autores eram sauditas. A ironia é que isso até constituía um casus belli mais forte do que contra o Iraque de Saddam Hussein, mas foi este último que acabou por ser invadido. Consequência também da proximidade de interesses com o poder económico, um clássico do Partido Republicano é a defesa da descida dos impostos, que em primeira linha favorece os mais ricos.

5. A par das tendências plutocráticas já enraizadas na América surgiram agora as tendências populistas. A eleição presidencial é marcada pelo populismo radical de um milionário do mundo dos negócios — Donald Trump. Pretende fazer-se passar por um self-made man preocupado com os trabalhadores e os desprotegidos da sociedade. Mas a riqueza adquirida nos negócios imobiliários está longe de ser resultado de um trabalho árduo e exemplarmente ética. Como candidato presidencial, tem recorrido a um discurso político agressivo, decalcado das estratégias da publicidade comercial e dos reality shows: chocar para chamar à atenção, ter audiências e vender. Nas últimas semanas, essa estratégia fez efeito boomerang e está a afundá-lo. Com tudo isto, não admira que, para muitos norte-americanos, esta eleição seja desmobilizadora e aumente o desencanto com a política e a democracia. Para além da campanha suja que faz lembrar a série House of Cards — ambos usam ficheiros do WikiLeaks e outros obtidos furtivamente para atacar o adversário —, Trump e Clinton são candidatos com tonalidades plutocráticas. Longe vão os tempos em que a América era fonte de inspiração democrática para os seus cidadãos e o mundo. Entre um milionário populista radical com ambições políticas e uma tecnocrata que vive no mundo paralelo e privilegiado das elites tradicionais, a escolha é mesmo a do mal menor.


Investigador

Sem comentários: