sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Costa risonho garante que este é o OE que, em 20 anos, “menos alterações fiscais faz” / “Sem dúvida que o país já saiu da emergência” / Lamento informar, mas o salário de Domingues é de todos eles / Da austeridade intragável à saborosa austeridade




Costa risonho garante que este é o OE que, em 20 anos, “menos alterações fiscais faz”

MARIA JOÃO LOPES 20/10/2016 - 18:52 (actualizado às 23:19)

Numa entrevista à TVI, o primeiro-ministro diz que, se houvesse margem orçamental, sobretaxa já teria acabado em 2016. Revisão dos escalões ainda não foi para a frente, mas é para cumprir durante a legislatura.

António Costa até parecia querer mais. “Não percam a oportunidade, podem não ter outra”, disse bem-disposto aos jornalistas que o entrevistavam. Dizia que respondia a todas as perguntas: “Já não é mau, ah?”. Brincou com o facto de a entrevista estar dividida em dois momentos, esperando que os espectadores não perdessem as “cenas do próximo capítulo”. Foi um primeiro-ministro descontraído aquele que apareceu na noite desta quinta-feira na entrevista de cerca de uma hora que passou na TVI e TVI24.

Nela, e embora faça críticas à forma como decorreu o debate público em torno do Orçamento do Estado (OE) para 2017, António Costa mostra satisfação com o trabalho feito: diz que este é o OE que menos alterações fiscais faz, nos últimos 20 anos, e volta a repetir a promessa de rever os escalões do IRS durante a legislatura. Mas há uma outra data estabelecida: o socialista quer que, no final do ano, “todas as situações” que têm penalizado o sistema bancário estejam ultrapassadas.

As questões da banca ocuparam a segunda parte da entrevista; primeiro foi o OE. António Costa admite que a leitura deste pode ser plural, mas garante que é de esquerda. Porquê? Porque há reposição de rendimentos. “Há uma viragem clara relativamente aos últimos quatro anos”, disse, sublinhando que, mesmo assim, vai conseguir-se “pela primeira vez” ter “um défice abaixo dos 3%”.

Costa sorriu em vários momentos, e confiante no documento que o Governo apresentou. Fez o gesto de quem pega numa arma, e sempre sorridente, explicou a razão que levou a executivo a optar por impostos como aquele – sobre os cartuchos. E defendeu as opções do Governo: “Não é o mesmo taxar refrigerantes ou aumentar o IVA para tudo.”

Sorriu quando falou da relação entre o Governo e os partidos de esquerda que o apoiam: “Por alguma razão não somos um só partido”, disse garantindo, no entanto, que “não houve nenhum momento difícil”, precisamente porque todos conhecem as diferenças que têm e acordaram o que os pode unir.

Costa está optimista, mesmo sabendo que o crescimento económico não é o desejável – o que justifica com a desaceleração global da economia. O primeiro-ministro sabe que não está “tudo bem” mas também não podia estar, diz. A explicação até parece um adágio: “Tudo o que tão mal esteve demorará muitos anos a estar bem.”

“Cenas do próximo capítulo”
A sobretaxa ocupou, claro, boa parte da entrevista. António Costa até se chegou a queixar de que, com um documento tão grande, só se fale se pensões e sobretaxa. Este último aspecto começou por ser abordado mesmo no final da primeira parte, ainda no Jornal das 8 da TVI. O mote foi lançado e os jornalistas desafiaram os espectadores para continuarem a ver a entrevista na TVI24.

Então as explicações ficam para as “cenas do próximo capítulo”? Não fosse o diabo (que Costa disse, afinal, não ter aparecido, como pressagiou o líder da oposição) tecê-las e os espectadores não ficarem para a segunda parte, e o primeiro-ministrou quis deixar logo claro que a sobretaxa desaparece em 2017 para todos os contribuintes (ainda que de forma faseada).

Apesar de os partidos de esquerda que apoiam o Governo sempre terem defendido que a sobretaxa deveria acabar a 1 de Janeiro de 2017, tal como estipulado por lei, o Governo decidiu que o seu fim será faseado. “Se tivéssemos margem orçamental já tinhamos acabado em 2016 com a sobretaxa para todas as pessoas”, começa por dizer o primeiro-ministro, recusando estar a adiar o problema ao optar pelo faseamento. “Não é empurrar com a barriga, é ir executando a redução da carga fiscal de forma sustentável e compatível com o objectivo que também temos e que o país colectivamente assume, com maior ou menos gosto, de irmos reduzindo o nosso défice e melhorando a nossa situação financeira”, justificou.

Outra promessa que continua por cumprir é a revisão dos escalões do IRS. Ora, Costa volta a explicar que não foi ainda possível avançar com a medida, mas não está esquecida. “Está no programa de Governo uma revisão dos escalões do IRS. Não foi possível fazer em 2017, iremos continuar a trabalhar para que seja cumprido esse objectivo”, disse mais uma vez. Ainda há tempo para cumprir a promessa, defendeu o primeiro-ministro: “O programa de Governo é para quatro anos.”

Foi nesta passagem que António Costa fez o exercício de memória que lhe permitiu concluir que este é o OE que menos alterações fiscais faz nas duas últimas décadas. “É o Orçamento que seguramente, nos últimos 20 anos, já não digo mais porque não tenho memória para isso, menos alterações fiscais faz”, disse o primeiro-ministro socialista, criticando o “ruído” criado à volta do documento e que criou a “impressão” inversa.

“Durante muitas semanas andámos a discutir desgarradamente coisas. Semanas a discutirem uma alteração do sistema de deduções das despesas escolares. Pura e simplesmente não está no Orçamento. Muita gente deve estar convencida que vai haver alterações ao sistema de deduções das despesas escolares que não existe”, ilustrou Costa, sublinhando que, “espremido”, o OE tem apenas dois impostos novos – o do imobiliário (para património acima de 600 mil euros) que “abrange poucos contribuintes e não penaliza a actividade económica” e a “taxação sobre os refrigerantes”, enumerou.

Este é um executivo, pelo menos para Costa, preocupado em não fazer grandes reviravoltas: “Quanto ao resto são os impostos que já existiam que têm as suas utilizações normais e correntes. Nós temos tido, aliás, uma grande política de estabilidade. Tinhamos assumido o compromisso de só legislarmos num Conselho de Ministros por mês e temos cumprido.”

Costa tinha sido questionado sobre o facto de a social-democrata Ferreira Leite ter dito que este era um Orçamento da instabilidade fiscal. Antes de o OE ser conhecido, e precisamente sobre as notícias que davam conta do aumento de impostos indirectos, já o Presidente da República tinha colocado alguma pressão sobre o executivo, quando disse ao jornal online Eco que é necessário ter "atenção à estabilidade fiscal", por ser "importante em termos de investimento".

O primeiro-ministro também sorriu e fez uma graça quando foi questionado sobre a relação entre o executivo e o Presidente da República. Brincou com o facto de Marcelo Rebelo de Sousa ter sido comentador, o Presidente é que era o comentador que avaliava os agentes políticos. Mas Costa – que também foi comentador – lá fez a sua avaliação positiva. “Há muito tempo que ninguém se recorda de vivermos no país a tranquilidade política e social como no último ano”, disse. A relação entre executivo e Presidente é “absolutamente impecável”, acrescentou. Se essa é mais visível com este Presidente do que com o seu antecessor Cavaco Silva, Costa atribuiu à personalidade de Marcelo.

Problemas na banca resolvidos até ao fim do ano
Sobre as questões da banca, Costa voltou a dizer, tal como tinha já afirmado em entrevista ao PÚBLICO, que espera ter, até ao final do ano, uma solução para o crédito malparado da banca. O primeiro-ministro diz que este assunto já não se vai colocar na Caixa Geral de Depósitos (CGD), uma vez que o crédito malparado fica resolvido com a recapitalização. Contudo, é na mesma necessário o chamado “banco mau” para resolver o problema nos restantes bancos. Costa recusa falar em “banco mau”, é mecanismo, defende.

“Estamos a trabalhar com o Banco de Portugal para termos, brevemente, uma medida sistémica que possa ser aplicada por igual a todo o sistema bancário nacional”, afirmou ainda Costa.

Sem se comprometer com um calendário, o primeiro-ministro acrescentou: “O objectivo que tenho, já o disse publicamente, é que no final deste ano tenhamos ultrapassado todos as situações que têm penalizado o nosso sistema bancário. Relativamente à CGD o problema está resolvido. Creio que há bons indícios de que há intenções firmes de investimento por parte de investidores estrangeiros na capitalização de dois grandes bancos privados.”

“Aguardamos as propostas que o Banco de Portugal nos venha a apresentar sobre a venda do Novo Banco e o grupo de trabalho que o Governo tem mantido com o Banco de Portugal sobre os NPL, non-performing loans [crédito malparado] está a correr bem. Portanto, acho que brevemente teremos um quadro sistémico que permita encontrar uma solução.”


Só mesmo, mesmo no final é que Costa perdeu subitamente o sorriso e pôs um ar mais carregado. Aconteceu quando ouviu a questão: “Por que é que a Europa não gosta de nós?”. Mais tempo tivesse, e mais teria contrariado a ideia. Disse que o presidente da Comissão Europeia tem sido “amigo” de Portugal e garantiu: “Eu gosto da Europa e temos tido relações construtivas com a União Europeia.”

Sem dúvida que o país já saiu da emergência”
DAVID DINIS e SÃO JOSÉ ALMEIDA 21/10/2016 – 06:45

Só a desconfiança que este Governo gera custa, em juros, 350 milhões por ano ao país, acusa Passos Coelho

Em entrevista ao PÚBLICO, o presidente do PSD classifica o Orçamento de 2017 como "mau". E acusa António Costa de implementar um "agravamento de impostos que vem para ficar".

Considerou que o OE2017 é um “embuste” porque o Governo está “a transformar em impostos permanentes aquilo que tinha sido apresentado como uma solução de emergência”. Considera que o país já saiu da emergência?
Sem dúvida que o país já saiu da emergência. Estado de emergência é ter necessidades para as quais não temos recursos. Isso aconteceu em 2011 e durante os anos em que sabíamos que só recebíamos as tranches desses empréstimos na medida em que cumpríssemos os objectivos que estavam previamente definidos e que eram verificados a cada três meses. Essa foi uma situação de emergência. Actualmente o país está a crescer, tem perspectivas para futuro, que eu presumo que não sejam comparáveis às que tinha em 2011. Tem problemas para resolver, com certeza. Mas não se podem considerar de emergência financeira. Tivemos tempo para reduzir as nossas necessidades e essa é a razão porque estamos de certa maneira a substituir medidas de emergência por medidas de normalidade, digamos assim. Ou pelo menos deveria ser assim.

O Estado português continua condicionado por compromissos. E eles ainda obrigam a manter alguma austeridade, certo?
Prefiro dizer de outra maneira. O país ainda tem défice público, tem um elevado nível de dívida que precisa de garantir que será assumida. E isso são restrições que não são impostas nem pela Comissão Europeia, nem pelos nossos credores, são resultantes da situação do próprio país. Ainda tem questões que precisa de resolver, mas elas não têm a dimensão dos problemas de 2010 e 2011. Nós herdámos um défice público de quase 11%. Portanto, a situação não é a mesma. Mas as circunstâncias que nós temos são estas: ainda temos défice, precisamos de o reduzir. Como temos responsabilidades, sendo devedores e precisamos de as honrar. É evidente que o país tem de ir financiando o seu crescimento, ao mesmo tempo que vai observando a restrição financeira.

Maria Luís Albuquerque disse que o OE2017 traz “um aumento generalizado de impostos” e é um OE de “sobrevivência política” do Governo. O OE não é sempre feito por todos os governos como um instrumento de sobrevivência? As contas públicas são o documento central de uma governação.
Concordo com a segunda parte da pergunta e não concordo com a primeira. Eu empenhei-me quando estive no Governo em que as contas públicas melhorassem em cada ano que passava. Mas tomei muitas medidas para esse efeito que não estavam a responder à preocupação da sobrevivência do Governo, mas em garantir que nós atingíamos aquelas metas e aqueles objectivos. É isso que a drª. Maria Luís Albuquerque quer significar. O país precisava, nesta fase de ter uma redução do défice que não fosse pressionada pela necessidade de aumentos generalizados de impostos, nem de redução forçada do investimento público, como está a acontecer. Apenas porque, por razões de natureza política (não apenas por exigência do próprio PS, mas do BE e do PCP), o Governo decidiu reduzir o IVA da restauração, ou num único ano fazer a reposição de todos os rendimentos. E propunha-se até fazer isso com a reposição da sobretaxa - já sabemos agora que não será. E isso porque o Governo não está preocupado só com a meta do défice, está preocupado também em ceder às exigências da sua própria maioria que precisa desses resultados para poder justificar o apoio ao Governo.

O senhor foi primeiro-ministro de um Governo cujo ministro das Finanças, Vítor Gaspar, procedeu ao “brutal aumento de impostos”.
Enorme. Sabe como eu sei? Fui eu próprio que disse na altura ao ministro Vítor Gaspar: “Vítor quando apresentar o Orçamento faça favor de não disfarçar porque as pessoas não gostam de ser enganadas, nós vamos fazer um enorme aumento de impostos comunique isso às pessoas”.

Mas sente-se à vontade para criticar este aumento de impostos?
Totalmente. Eu vou-lhe explicar porquê. Quando nós aumentámos os impostos, sobretudo em 2013, em parte também em 2014, fizemo-lo na medida em que precisávamos, pela restrição financeira, de garantir um determinado nível do défice do Estado. E o Tribunal Constitucional não validava as soluções que nós apresentávamos do lado da despesa pública. A nossa primeira solução não foi aumentar os impostos. Os impostos tiveram de crescer, sobretudo ao nível do IRS por causa da sobretaxa, em razão da necessidade de ultrapassar a decisão que o Tribunal Constitucional tomou. Mas isso estamos a falar de 2013. Em 2013 o país ainda estava em recessão. Nós não estamos em recessão, o país está a crescer, está a caminho da normalização, pelo menos é o que o primeiro-ministro vem dizendo repetidamente: a austeridade acabou. Estamos a normalizar. Então porque é que estamos a fazer um aumento generalizado dos impostos? Mais: o primeiro-ministro veio dizer: “Vamos consignar a criação de um novo imposto sobre o património à segurança social”. Eu posso dizer que se o Governo não tivesse baixado o IVA da restauração para 13% não era preciso lançar este novo imposto, porque a sua receita prevista é até menos do que aquilo que o Governo decidiu prescindir quando baixou o IVA da restauração.

Isso é contraditório?
O que está a fazer então o actual Governo? Está a propor que sejam os proprietários de edifícios a pagar a receita que o Estado vai ter quando decidiu baixar o IVA da restauração, porque isso não trouxe beneficio nenhum que vá a quem vá a qualquer restaurante, como sabe os preços não baixaram.

Se o Governo do PSD-CDS não tivesse caído, nós nesta fase não teríamos aumentos indirectos, mas os funcionários públicos continuariam com parte do seu salário cortado e a sobretaxa não estaria toda reposta. Não estamos a falar só de opções num mesmo modelo?
Quando criamos a sobretaxa procurámos responder na altura à necessidade de reduzir o défice de diferente daquele que o Tribunal Constitucional nos consentiu.

O Governo não está preocupado só com a meta do défice, está preocupado também em ceder às exigências da sua própria maioria que precisa desses resultados para poder justificar o apoio ao Governo

Pedro Passos Coelho
Mas não estamos a comparar com 2013, mas de qual seria o projecto do PSD e do CDS hoje.
Já se vai tornar claro para si. Portanto nós tínhamos ou cortando salários ou em alternativa criando uma sobretaxa do IRS de responder a uma sotuação de emergência. Porquê? Nós precisávamos aquele dinheiro para gastar por que não tínhamos nada garantido pelo envelope financeiro da troika. Portanto se não nos deixavam cortar de um lado tínhamos de ir buscar o dinheiro do outro. Era assim. Mas não é assim hoje. Esse é o ponto que é importante. Nós hoje acedemos a mercado. Na altura o acesso a mercado era muito limitado. Temos baixas taxas de juro, na altura não tínhamos. Portanto, a restrição não é a mesma. Do que é que nós precisávamos, portanto? Precisávamos de investir o suficiente em processos de reforma do Estado que nos fossem permitindo diminuir gradualmente as necessidades de financiamento do Estado, para ir removendo estas medidas extraordinárias. Por isso é que eu propus justamente que pudéssemos fazer a reposição salarial, não num ano, mas em quatro e remover a sobretaxa, não num ano, mas em quatro. Isso dava-nos a possibilidade de fazer tudo sem ter a necessidade de cobrir essa receita por novos impostos. Porque isso não é remover a austeridade, isso é substituir uma austeridade de emergência por uma austeridade permanente com outros impostos que vêm para ficar. Ora isso não faz sentido. Mas agora vou dar-lhe um exemplo de porque é que nós não teríamos de fazer isto. Por exemplo, nós temos hoje taxas de juro a dez anos que são praticamente três vezes as espanholas, cerca de dois pontos percentuais [de diferença]. Mas em Setembro do ano passado essa diferença não chegava a meio ponto percentual. Com o Banco Central Europeu a ter a política tão acomodatícia, porque é que estamos a pagar mais juros do que Espanha?

E qual é a sua resposta?
É porque o mercado não confia na política que está a ser seguida evidentemente, toda a gente sabe isto. E por isso é que estamos a ser penalizados. Sabe quanto custa isto a Portugal? Nesta altura, com esse diferencial, custa sensivelmente mais 350 milhões de euros por ano do que custaria se não houvessem dúvidas e falta de confiança sobre a dívida portuguesa. E temos aqui um elemento que permitiria reduzir esta pressão que o Governo sente para se financiar. Mas dou-lhe outro: nós tínhamos proposto, por exemplo, com a concessão a privados dos transportes públicos urbanos de Lisboa e do Porto, poupar quase cem milhões por ano nos próximos dez anos. Iríamos reduzir as necessidades de financiamento do Estado ao longo destes dez anos. O que é que o Governo fez? Aumentou essas necessidades. Claro, precisa de mais dinheiro para as cobrir. Portanto, em vez de termos um período em que vamos substituindo gradualmente as medidas de emergência por medidas de normalidade, o que estamos a fazer é a substituir medidas de emergência por outras medidas de agravamento de impostos que vêm para ficar. Ora, isto não é remover a austeridade.

OPINIÃO
Lamento informar, mas o salário de Domingues é de todos eles

DAVID DINIS 21/10/2016 – 06:32

Não vale a pena fugir, não vale a pena fingir. António Domingues tem o salário que todos aceitaram

O Governo tinha um nome para a Caixa. E quis escolher o que achava melhor. Escolheu António Domingues, mas este não aceitava sair do BPI por menos do que aquilo que lá ganhava.

António Costa aceitou o jogo, mas sabia que não o podia jogar sozinho. Era preciso mudar a lei para que Domingues tivesse um ordenado que seria o dobro do que ganhava o anterior presidente da CGD. E era muito, muito fácil, que essa lei fosse chumbada - no Parlamento ou na Presidência da República.

Estou absolutamente convencido que o primeiro-ministro e o ministro das Finanças nunca se teriam metido na aventura de anunciar o nome de António Domingues se não tivessem procurado essas garantias previamente. Mas pouco importa para tudo isto a minha convicção. Mesmo que Costa e Mário Centeno tivessem entrado nesse jogo, correndo o risco de ficar sem presidente para a Caixa e, pelo caminho, desvalorizado brutalmente o banco público com semelhante vergonha, o facto é que a lei foi aprovada em Conselho de Ministros, promulgada pelo Presidente da República e acabou por passar na Assembleia. A proposta do Bloco para que os salários na CGD ficassem a 90% do ordenado do chefe de Estado foi chumbada por quase todos; e a do PSD para que se voltasse à lei anterior foi vetada pelos partidos da esquerda. António Domingues foi, assim sendo, nomeado, empossado e reconfirmado.

É por isso que não compro o jogo político baixinho que se viu esta semana. Pouco me impressiona que Catarina Martins tenha vindo dizer que para o Bloco o salário de Domingues “não é um assunto encerrado - e que o Governo tem a sua “total oposição” neste dossiê. Lamento informar o Bloco de Esquerda, mas se o assunto tem a “total oposição” do Bloco, se ao mesmo tempo o Bloco teve a faca e o queijo na mão para impedir estes salários e esta nomeação, há qualquer coisa que não bate certo. Talvez lhe possamos chamar teatro (com todo o respeito).

A mesma coisa se aplica ao PCP. E mais ainda ao Presidente da República. Disse Marcelo, no texto em que promulga o decreto-lei, que só aceitava porque esta era a única maneira de Domingues ser nomeado. Acrescentou depois o Presidente que o Governo devia ter cuidado com a fixação do bendito salário. Bem sei que é desagradável ao Presidente a maçada de ter que se responsabilizar por uma decisão que custa popularidade. Mas o que não vale é deixar uns avisos no site da Presidência para depois dizer que avisou. Vamos lá a ser claros sobre este assunto: se o Presidente não queria um salário destes, podia muito bem ter vetado o documento e dito ao Governo para o mudar.

Claro que, para o fazer, o Presidente tinha que fazer outra coisa que não quer: assumir o ónus de impedir António Domingues de tomar conta do banco público. Ou seja, assumir também aqui um custozinho de impopularidade. Sim, é chato ter que decidir. Mas que país é que precisa de um Presidente que não quer decidir?

Pessoalmente, não "compro" esta histeria de um país que quer ter um banco público, mas depois quer que ele não custe dinheiro. Sim, ter uma gestão profissional custa dinheiro. Sobretudo se quisermos que o banco público não nos custe uma fortuna.

Coisa bem diferente (e aviso já que não conheço o dr Domingues) é passar cheques em branco à nova administração da Caixa, ou sequer à opção do Governo. Faz-me muito mais confusão, por exemplo, saber que Domingues ainda era vice-presidente do BPI e já tinha acesso aos dados da Caixa; saber que Domingues contratou uma consultora para trabalhar, nessa altura, um plano de recapitalização do banco público; que tenha feito convites sem saber (ou prevenir) que a lei impedia acumulações de funções.

Por muito que António Domingues ganhe, faz-me muito mais confusão saber que ele diga que não faz uma auditoria aprovada em Conselho de Ministros em Junho; que não nos passe cartão sobre para que serve tanto dinheiro nesta recapitalização; ou que o primeiro-ministro diga, numa semana, que a recapitalização pode ser feita só em 2017 e, na seguinte, o ministro das Finanças afirme que vai ser feita já em 2016.

No que respeita à situação atual da Caixa, aliás, o que me preocupa mais é o que ainda vem aí, não o que ganha o seu presidente. Nomeadamente a prudência com que se fará a separação de activos malparados e a respectiva consequência que isso possa trazer para o restante sector financeiro. Se António Domingues conseguir passar estas etapas, colocar a Caixa com as contas limpas e ajudar as empresas e a economia, até sou capaz de me esquecer de todo este processo. Quanto ao salário dele, vou cobrá-lo ao Governo, ao Bloco, ao PCP, como ao PSD e CDS. E ao srº Presidente, pois claro.

Da austeridade intragável à saborosa austeridade

20/10/2016, Observador

António Costa está a ensinar-nos a desenhar austeridade apoiada pelo eleitorado. O OE ou os salários da CGD são arquitecturas e decisões para o “Homo sapiens” e não para o racional “Homo economicus”.

Pedro Passos Coelho representa a política económica do “Homo economicus”, António Costa o “Homo sapiens”. Assim se concluía numa conversa em que o tema era o Orçamento do Estado e a extraordinária habilidade política do primeiro-ministro para tornar a austeridade uma política quase popular.

A proposta de Orçamento do Estado para 2017 consagra uma política que é a mais contraccionista desde 2014. Basicamente a austeridade foi interrompida por causa das eleições em 2015 e da consolidação eleitoral do PS em 2016 e regressa em 2017. Neste momento António Costa tem as mãos politicamente mais livres e pode concentrar-se melhor em apenas dois objectivos: manter em alta as intenções de voto e eliminar o risco de os investidores internacionais fugirem ditando a necessidade de um segundo resgate. (A DBRS vai pronunciar-se esta semana e a proposta de OE 2017 resolve parte do conflito em que estava).

Os dois objectivos, eleitoralismo e austeridade, seriam inconciliáveis se a política económica estivesse a ser desenhada tendo como referência o “Homo economicus”, uma personalidade racional, não emotiva, que tem uma hierarquia de preferências estável e fixa, valoriza de igual modo as perdas e os ganhos e procura o seu próprio interesse. Ou mesmo se estivesse a ser desenhada no sentido de maximizar o crescimento por via do investimento.

Mas não é assim que está desenhada. A proposta de Orçamento do Estado para 2017 está feita para ser bem aceite pelo “Homo Sapiens” ou, como diria o nobel da Economia Daniel Kahneman, por “Humanos” e não por “Econs”, uma outra versão do “Homo economicus”. Os “Humanos”, por contraponto aos “Econs”, na versão de Kahnman, têm uma visão do mundo “limitada pela informação disponível num determinado momento – Só Há Aquilo Que Vês”. Por isso não conseguem ser lógicos e coerentes como os “Econs”. Além disso, nem sempre são egoístas, as suas preferências são instáveis e lutam muito mais por manter o que têm do que para obterem ganhos – sofrem de aversão à perda.

Intuitivamente ou não, António Costa vai desenhando uma política económica que tem os ingredientes certos para ter sucesso num mundo de “Homo Sapiens”. Começou por prometer “virar a página da austeridade” e assim criou uma âncora de previsão para cada um de nós, que nos conduz a “ver” menos austeridade do que aquela que existe. Exactamente o oposto de Pedro Passos Coelho, quando prometeu “ir para além da troika”. (Sim, é verdade que as conjunturas eram diferentes e o anterior primeiro-ministro estava a falar mais para fora do que para dentro, mas o seu discurso actual continua ser virado para o “Homo economicus”.)

“Só Há Aquilo Que Vês”, o princípio SHAQV de Kahneman, é a lei geral da política que estamos a viver. Vejamos, apenas como exemplo, 7 casos do Orçamento do Estado e da actualidade: a não divulgação do quadro comparativo das receitas fiscais; o reforço da tributação indirecta; o novo imposto sobre o património; a escolha feita na actualização das pensões; o agravamento dos impostos no alojamento local; a reversão da reversão da sobretaxa e finalmente os salários da administração da CGD, o único caso com riscos eleitorais.

1. Pela primeira vez desde há pelo menos mais de duas décadas, o relatório do Orçamento do Estado não publica o clássico quadro das receitas fiscais por imposto comparando-o com o do ano anterior. Claro que é possível construir parcialmente esse quadro através dos mapas da proposta de lei, mas o “Homo sapiens”, contrariamente ao “Economicus”, é preguiçoso, trabalha com a informação disponibilizada. (E os media estão com recursos muito escassos). E assim o que não se vê não entra na avaliação da política.

2. O reforço da tributação indirecta e as “taxas de taxinhas”, nas quais se incluem as novas tributações por produtos – os refrigerantes, algumas bebidas alcoólicas e as balas, por exemplo –, seguem igualmente a lei SHAQV e os valores emocionais. A tributação indirecta não se vê e aquela que incide sobre o consumo de bens considerados “maus” dá a ilusão da escolha na linha da sabedoria popular: “quem tem vícios que os pague”. Repare-se que a tributação indirecta foi sempre defendida pelos economistas considerados mais liberais, por ser mais eficiente. De acordo com esta tese, as políticas redistributivas (a equidade) devem ser garantidas através da despesa – como os subsídios e apoios sociais – e não por via dos impostos directos. Ver um governo apoiado pela esquerda a apoiar, ainda que indirectamente, esta tese é também revelador da queda da ideologia.

3. O adicional sobre o IMI, que consagra uma taxa de 0,3% sobre valor patrimonial imobiliário que excede os 600 mil euros, ao mesmo tempo que se elimina o imposto de selo sobre imóveis acima de um milhão de euros, traduz-se num significativo desagravamento dos “mais ricos”. Ou seja, todos os que têm casas de valor superior a um milhão vão pagar menos impostos em 2017 do que em 2016. Mas aquilo que se afirmou foi que o Governo ia lançar um imposto sobre os que acumularam património imobiliário de 600 mil euros. Obviamente uma fortuna para a esmagadora maioria dos cidadãos e para o “Homo sapiens” que usa apenas a informação que está mais à mão.

4. A política seguida nas pensões usa igualmente o conhecimento da natureza dos “Humanos” jogando com a aversão à perda que os caracteriza – e que dificulta as reformas e todas as políticas de promoção da igualdade. Além da actualização em linha com a inflação, há três decisões nas pensões: proceder a um aumento extraordinário em Agosto no montante de dez euros para pensões 275 e 628 euros, não fazer esse aumento extraordinários nas pensões mínimas sociais e rurais e acabar com a Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES) que incide sobre pensões acima de 4.500 euros. Com esta política garante-se o contentamento generalizado, já que ninguém perde e o grupo que não ganha tem reduzida ou nula capacidade de intervenção no espaço público.

5. O agravamento da tributação dos rendimentos de alojamento local – o imposto passa a aplicar-se sobre 35% das receitas sem vez de 15% – constitui uma perda significativa de rendimento para quem tem esta actividade, mas para os eleitores em geral será percepcionada como justa. Usando o mecanismo de saltar para as conclusões, de que o cérebro é perito, é elevada a probabilidade de se considerar que se estava a praticar uma taxa efectiva baixa quando comparada com o arrendamento em geral, não se levando em conta que existem custos adicionais.

6. A reversão da reversão da sobretaxa, ou seja, o facto de o Governo ter anulado uma decisão que já estava consagrada na lei – a eliminação total da sobretaxa em Janeiro –, reúne condições para não ter qualquer custo político. Mais uma vez podemos aqui aplicar o princípio segundo o qual as pessoas lutam mais para não perder do que para ganhar. Como ainda não tinham ganho nada, nada perdem, e ao longo do ano vão ganhar. O Governo limita-se a não respeitar um compromisso que lhe custará criticas usando a expressão de António Costa: “palavra dada, palavra honrada”. Mas a probabilidade de isso se traduzir em perdas eleitorais é mínima, se não mesmo nula.

7. Os novos salários da administração da CGD é o único caso em que o Governo usa argumentos do “Homo economicus”, de racionalidade pura e mais focado na eficiência do que na equidade. E é exactamente o caso que lhe pode custar mais eleitores como já bem percebeu o Presidente da República. Uma das características dos “Humanos” é a preocupação com a sua posição relativa: a perda é melhor aceite quando todos perdem e a sua posição relativa não se altera. No quadro actual, em que muitos estão a ganhar um bocadinho de rendimento ou a pensar que vão ganhar, e basicamente ninguém perde, o risco de custos eleitorais é menor do que na era da troika quando todos estavam a perder rendimento. Mas existe.

Na proposta de Orçamento de Estado com a maior austeridade desde 2014 é interessante verificar como a política contraccionista está desenhada sem que a esmagadora maioria dos portugueses percebam que vão ter menos poder de compra. É um Orçamento que vê a economia povoada por “Homo sapiens” com todas as suas limitações e não por “Homo economicus”, racional e com toda a informação.

Em todo o seu esplendor, o primeiro Orçamento livre de António Costa afirma-se sem oposição popular porque “Só Há Aquilo Que Vês” – e os impostos indirectos não se vêm – e porque sofremos duas vezes mais com as perdas do que com os ganhos – e ninguém sente que perde. O que as sondagens já nos dizem é que há mais “Homo sapiens” do que “Homo economicus”. E assim se transforma a austeridade intragável numa saborosa austeridade.

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