REPORTAGEM
Encontrar
casa é um achado
ANA CRISTINA PEREIRA
30/10/2016 – 07:09
Nas zonas mais
centrais de Lisboa e Porto há muitas obras em curso, mas poucas
entram no mercado de arrendamento permanente. Fala-se em “achado”
quando aparece uma casa a um preço razoável.
Durante mais de
quatro meses, Tatiana Moutinho procurou casa na Baixa do Porto.
Desceu e subiu ruas atenta à possibilidade de existir um ou outro
anúncio à janela. Folheou jornais. Dissecou plataformas online. “Ou
é para turistas ou está a cair”, suspira a cientista. “Tudo o
que vi com condições era... era para arrendar uma semana ou 15 dias
ou um mês.”
Quando a
investigadora em Biologia Celular e Molecular se mudou para a Baixa
do Porto, em 2009, tantos amigos abriram a boca de espanto. Alguns
até lhe disseram que “estava louca”. “Ninguém queria morar na
Baixa. Não era atractivo.” O centro histórico degradara-se e
esvaziara, muito por falta de política concertada de reabilitação,
especulação imobiliária, incúria de proprietários, rendas
excessivamente baixas. E o resto da Baixa não era muito diferente.
“Quase ninguém vivia aqui. Quase só havia pessoas velhinhas em
casas tão velhinhas como elas.”
Instalou-se num
apartamento remodelado, de 120 metros quadrados, num prédio de dois
andares, junto ao Instituto de Registos e Notariado, a uns metros da
Estação da Trindade. Despontava ainda a vida nocturna. De repente,
com o advento das companhias áreas de baixo custo, a instabilidade
do Norte de África, o crescente interesse da imprensa internacional,
explodiu o turismo.
No final do ano
passado, o senhorio, o amigo que lhe arrendara o apartamento por 600
euros quando se mudara para Lisboa, pediu a Tatiana que procurasse
outra morada. Ele fora trabalhar para o Dubai e separara-se da
mulher. Precisava de um sítio para ficar com a filha sempre que
viesse a Portugal. Quando não estivesse, arrendá-lo-ia a turistas.
Tatiana viu-se aflita. Não era só a escassez da oferta. “O preço
de um apartamento de cem metros quadrados tinha subido para 900
euros!”
Os relatos sobre
dificuldades em encontrar habitação permanente para arrendar
proliferaram. Uma nova palavra entrou no uso corrente: gentrificação,
derivado do inglês gentrification, que decorre do francês
genterise, que significa “de origem gentil, nobre”, e remete para
um processo de reestruturação urbana com troca de populações com
baixos rendimentos por populações com rendimentos mais elevados, o
que, pelo menos em Lisboa e no Porto, está muito associado à
explosão do turismo.
Nas zonas mais
centrais de Lisboa e Porto, tantas obras em curso. Ainda em Setembro,
o presidente da Porto Vivo — Sociedade de Reabilitação Urbana,
Álvaro Santos, disse que “estão a decorrer, em simultâneo, cerca
de 200 obras de reabilitação”, grande parte feitas por privados.
As obras, no centro da cidade, duplicaram de 2013 para 2014 e
tornaram a duplicar de 2014 para 2015. Este ano, os números são
“semelhantes a 2015”. “Temos um peso do turismo muito grande”,
reconheceu.
Poucos edifícios
requalificados são direccionados para habitação permanente.
Multiplicaram-se hostels, comércio fast food ou franchising e
comércio com apelo “gourmet” ou “artesanal”. No site do
Registo Nacional de Alojamento Local, existem 34.038 imóveis
destinados a esse fim — 6233 no concelho de Lisboa e 2224 no
concelho do Porto. Os números aumentam várias centenas de mês para
mês. Muitos estão disponíveis para arrendamento de curta duração
através de plataformas internacionais de reserva como o Airbnb, o
Wimdu ou o 9Flats.
Multiplicaram-se
hostels, comércio fast food ou ”franchising” e comércio com
apelo “gourmet” ou “artesanal”
“Os turistas são
bem-vindos, mas os residentes permanentes são a estrutura de uma
cidade”, enfatiza o arquitecto João Rapagão, que dá aulas na
Universidade Lusíada do Porto. “Turistas em excesso são como
eucaliptos. Crescem e reflorestam depressa, mas secam tudo à volta.
Um Porto oco!”
Exemplar daquilo que
Rapagão considera um “delírio” é a Casa Oriental, junto à
Torre dos Clérigos, no Porto. Outrora uma mercearia, transformou-se
numa loja “very typical” e até trocou o bacalhau seco que
costumava ter pendurado na fachada por bacalhau sintético.
O geógrafo Álvaro
Domingues vê “alguma paixão e algum exagero” no discurso
público. “Quando dizemos Porto ou Lisboa, não nos estamos a
referir ao respectivo município, mas a áreas específicas, aos
centros mais antigos. E os centros antigos não são habitualmente
espaços de residência.”
No entender deste
professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto,
devia haver “uma espécie de fórum permanente” em cada cidade.
Os cidadãos juntavam-se de 15 em 15 dias num café ou num teatro
para discutir a partir do concreto. “Fala-se muito de fundos de
pensões internacionais, de grandes especuladores nacionais. No outro
extremo estão milhares de particulares”, indica. “Há muitas
ideias e muito contraditórias sobre o que se está a passar. E o que
se está a passar vem de um tempo muito próximo em que, por exemplo,
o Porto antigo tinha batido no fundo e só se falava em ruína e
abandono. De repente, não podemos cair no inverso, adoptar um
discurso quase xenófobo sobre o turismo, pensando que isto vai ficar
um parque temático.”
Turismo no Porto:
"Não podemos cair no inverso, adoptar um discurso quase
xenófobo sobre o turismo", resume o geógrafo Álvaro Domingues
O turismo está,
como diz o ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral, a ter “um
crescimento asiático”. É o sector que agita a economia em tempo
de estagnação, mas também tem “efeitos nefastos invisíveis”,
resume Daniela Alves Ribeiro, do Habita — Colectivo pelo Direito à
Habitação e à Cidade. Correm histórias de idosos pressionados a
sair — e nem todas trágicas (alguns aceitam indemnizações que
lhes permitem trocar um apartamento num prédio degradado, sem
elevador, por um apartamento confortável). E histórias de jovens
que, de repente, ficam sem lugar.
Ofertas que
desaparecem num ápice
Diana Leão Costa
partilhava um apartamento com duas amigas na Rua de São Bento da
Vitória, bem no centro do Porto. De súbito, uma das raparigas saiu
e a senhoria colocou o quarto no Airbnb. Perderam privacidade. “O
meu espaço deixou de ser o apartamento e passou a ser o quarto. Não
ia fazer uma festa ou dar um jantar com amigos”, exemplifica. “A
comida que tinha no frigorífico e nos armários era mexida,
desaparecia.”
A arquitecta, de 34
anos, esforçou-se para sair o mais depressa possível dali. “É
interessante para quem tem um apartamento alugá-lo a turistas, mas
quem quer morar na Baixa deixa de ter opção. Já era difícil
arranjar casas para arrendar em condições. Agora, é cada vez mais
raro encontrá-las e quando se encontra têm um preço absurdo. Há
pessoas idosas que já não conhecem ninguém no prédio.”
34.038
imóveis destinados
a alojamento local, 6233 no concelho de Lisboa e 2224 no concelho do
Porto
Diana saiu pelo
próprio pé, mas outros, como Mariana Reis, sentem-se expulsos. “Não
tinha contrato. Estava num apartamento subalugado por uma pessoa da
minha idade”, recorda aquela designer, de 25 anos. “Morávamos
num T4 e ele, de um dia para outro, mandou uma mensagem à minha
colega a dizer que estava mal de dinheiro e a perguntar quando
podíamos sair, que ia pôr o apartamento no regime de Airbnb”,
conta. “Era um domingo e ele perguntou: achas que podem sair na
próxima terça-feira? Ridículo!”
Aquilo aconteceu-lhe
no início ou a meio de Junho. No final do mês, Mariana não tinha
encontrado alternativa. Instalou-se em casa do namorado, que partilha
um apartamento com um amigo, na Baixa do Porto. Ainda lá está.
Procurou Julho, Agosto, Setembro. Deixou de procurar. “Íamos
procurar uma coisa só para nós mas desistimos.”
Qualquer oferta
desaparece num ápice. A Tatiana Moutinho e à filha valeu o “boca
a boca”. Falaram-lhe numa mulher que comprara um apartamento,
pensando que o filho iria estudar no Porto, mas o rapaz, afinal,
entrara numa universidade em Lisboa. “Um achado! Um T3 com garagem,
na Rua da Boavista, por 650 euros!”
Se cheira a mofo,
não é saudável
Em Lisboa, os preços
são ainda mais altos e a zona crítica bem maior. João, o marido de
Filipa Gouveia, viu o anúncio no portal OLX 17 minutos depois de ter
sido publicado. “A senhora pôs o anúncio sem fotografias, recebeu
logo 15 contactos e apagou-o”, diz a cozinheira, de 33 anos.
Viviam com os pais
de João, na freguesia da Ajuda, em Lisboa. Desde que tiveram uma
filha, no ano passado, isso tornou-se mais difícil. “A minha filha
precisa de espaço para andar. Quero que se sinta livre para abrir
portas, fechar portas, ir do quarto para a cozinha, tirar as panelas
dos armários. E quero sentir-me livre para ralhar com ela e para
deixá-la chorar”, diz ela.
Paula Marques,
vereadora da Habitação e do Desenvolvimento Local na CML: Não é
"aceitável” que um proprietário pague mais impostos por
fazer arrendamento de longa duração do que alojamento local
Procuravam casa
desde Fevereiro. Tinham de ficar perto dos pais de João, para lhes
prestar assistência. E a curta distância da creche, em
Linda-a-Velha. Filipa leva a filha, de carro, antes de ir para o
trabalho, em Cascais. E João ia buscá-la no carro dos pais,
regressado do trabalho, no centro de Lisboa. Saindo de casa dos pais,
só teria a moto. Iria buscar a filha a pé ou de autocarro.
Procuraram na freguesia de Algés, Linda-a-Velha e
Cruz-Quebrada/Dafundo, em Oeiras. E na freguesia de Carnaxide e
Queijas, também em Oeiras. “Vimos para aí dez casas. Não há
oferta. E as casas que vimos antes desta não serviam”, conta
Filipa. Não é só os preços. “É estar a subir as escadas para o
apartamento e ver janelas partidas no prédio. É cheirar a mofo. Se
cheira a mofo, não é saudável.”
Encontraram um T2,
num prédio pequeno, sem elevador, por 600 euros, a 850 metros da
creche, a poucos minutos de carro dos pais de João. A zona é bem
servida de transportes públicos. Nas imediações, centro de saúde,
escola, parque infantil. “Tem o que é preciso para uma família.”
Mudaram-se a meio de Outubro. “Termos o nosso espaço, finalmente”,
suspira Filipa. Já tinha “vergonha” de dizer que morava em casa
dos sogros. “Estava tão cansada de pequenas coisas!” E quer
sentir-se livre para receber amigos e familiares para jantar ou para
passar uns dias.
Lisboa perdia, com
aquela mudança, mais um jovem casal com uma criança. Paula Marques,
vereadora da Habitação na Câmara de Lisboa, acha que “diabolizar
o turismo não é a via”. “Havendo um desequilíbrio, acho que a
política pública se deve desenvolver no sentido de trazer o
equilíbrio”, declarou ainda há dias ao PÚBLICO. Não lhe parece
“aceitável” que um proprietário pague mais impostos por fazer
arrendamento de longa duração do que turístico. E considera que é
preciso usar o património municipal como “instrumento”.
Para já, o Programa
Renda Convencionada, que disponibiliza fogos municipais para arrendar
abaixo do preço do mercado, é uma gota no oceano. Na última edição
houve 844 candidatos para dez habitações. A Câmara de Lisboa quer
disponibilizar cinco mil a sete mil fogos. Para isso, avançará com
prédios e terrenos. Caberá a privados reabilitar ou construir e
cobrar rendas fixadas pela autarquia.
O chão a tremer
O Porto também
ensaia a sua tentativa de reequilibrar o mercado de arrendamento. A
Sociedade de Reabilitação Urbana está a procurar atrair residentes
para a zona do Morro da Sé. E, nos próximos dois anos, a Câmara do
Porto quer instalar 130 famílias em 57 casas e 17 prédios
municipais com rendas sociais.
Quem dera a Maria
Gil morar numa dessas casas de renda social. Está com os quatro
filhos numa sobreloja. Mesmo por baixo, há um bar. Para um lado e
para outro, outros bares. Acontece sentirem o chão tremer. “Há
dias em que para entrar é preciso contornar as pessoas”, conta
Vicente, um dos gémeos de 15 anos.
Há três anos que
Maria procura casa. Admite que ser cigana pode ter influência, mas
julga que o preconceito, que pode levar senhorios a torcer o nariz,
pesa menos do que as limitações orçamentais. Não pode pagar mais
de 350 euros de renda por mês. “Os preços têm crescido muito”,
lastima. “Casas que estavam a 400 euros, sem obras, estão agora a
600. Estou a falar de Cedofeita. Estão a recuperar casas que serviam
para famílias e a transformá-las em T0 ou T1 kitchenette.”
Quem a vê, sempre
sorridente, nem imagina, mas sofre de fibromialgia, uma doença
crónica capaz de provocar dor intensa, e está desempregada há
muito. Saiu demasiado cedo da escola. Já desempenhou muitas tarefas,
já vestiu muitas peles, sobretudo a de vendedora. Agora, quer fazer
revalidação de competências.
Maria Gil com três
filhos menores procura casa há três anos
Aos 44 anos, com
três filhos ainda menores, candidatou-se a habitação social.
“Enviaram-me uma carta a dizer que neste momento não é possível
responder ao meu pedido, só se a minha situação se agravar.
Agravar como?! Só se cortar as pernas! Recorri ao provedor.”
Não gostaria de
sair do centro. Foi ali que os filhos dela cresceram. Foi ali que
criaram laços de amizade e vizinhança. Estão habituados a ir a pé
para todo o lado. Participam na vida cultural da cidade. Misturam-se
com pessoas de estratos diversos.
“Gosto muito de
viver na Baixa”, diz Salvador, de 15 anos. “Faz parte de mim.
Temos transportes, lojas, centro de saúde, hospitais, polícia”,
enuncia. “Temos tudo”, resume Vicente. “Aceito uma mudança de
casa, não de sítio”, torna Salvador. “Claro que temos de
aceitar, se tiver de ser, mas gostávamos de continuar aqui”,
esclarece Vicente. “Basicamente, por causa dos turistas, estão a
tirar-nos o que é nosso”, remata Mariana, de dez anos. Muito ouve
ela falar em gentrificação. Há pouco, anunciou à mãe que estava
“uma chuva gourmet”. Uma chuva gourmet? “Sim, uma chuva fina.”
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