A
globalização chinesa
A
globalização chinesa está a marcar o rumo do século XXI. Vai
levantar questões críticas na economia e política internacional.
JOSÉ
PEDRO TEIXEIRA FERNANDES
7
Fevereiro de 2017, 11:52
1. Em Davos, no
Fórum Económico Mundial de 2017, o Presidente da China, Xi Jinping,
mostrou determinação em liderar a globalização, ultrapassando os
EUA na defesa dos mercados abertos. Para se ter uma ideia da
fulgurante transformação e ascensão chinesa é necessário olhar o
passado. No mundo de há um século atrás a China era um actor
político secundário e acossado. Sofreu uma série de humilhações
às mãos do Japão e das potências ocidentais. Na sequência da
revolta dos "Boxers" em finais do século XIX, contra a
presença estrangeira no seu território, uma coligação de oito
países interveio militarmente. Seguiu-se a ocupação de Pequim. Uma
humilhante parada militar desfilou vitoriosamente na “cidade
proibida” em 1900. Integrava soldados da Grã-Bretanha, Rússia,
Alemanha, Japão, EUA, França, Itália e Áustria-Hungria. Em 1912,
a dinastia Qing, que governava a China desde o século XVII, foi
deposta. Ao império sucedeu-se a República — um Estado frágil,
tendo como seu primeiro Presidente, Sun Yat-sen, um dos fundadores do
Kuomintang (Partido Nacionalista da China). O período até à II
Guerra Mundial foi marcado por ferozes lutas internas, e pela invasão
e ocupação japonesa da Manchúria, ocorrida no início dos anos
1930. Teve de suportar no seu território um Estado-fantoche, que os
japoneses designaram por Manchukuo. Anteriormente, em 1895, os
japoneses já tinham ocupado a ilha Formosa (Taiwan). A perda chinesa
ocorreu na sequência da derrota na guerra sino-japonesa de 1894, e
das concessões territoriais obtidas pelos japoneses no tratado de
paz de Shimonoseki.
2. Após o final da
II Guerra Mundial, a China, que esteve do lado das potências
vitoriosas, entrou numa situação de uma sangrenta guerra civil. A
situação culminou com a revolução comunista de 1949 e a chegada
ao poder de Mao Tsé-tung (ou Mao Zedong noutra transliteração do
nome), fundando a República Popular da China. A partir daí
(auto)exclui-se do sistema capitalista internacional, numa lógica de
economia estatizada e planificada, perpetuando o seu atraso. Após a
morte de Mao Tsé-tung a situação começou a mudar. Em finais dos
anos 1970, com Deng Xiaoping, várias transformaçoes, de carácter
fundamentalmente económico, levaram a uma abertura gradual ao
capitalismo. (O comunismo ideológico manteve-se oficialmente, embora
sem o lado proselitista dos soviéticos). Para além da superficial
ideologia comunista, a China mostrou estar profundamente imbuída da
sua própria cultura milenar, que é determinante no seu rumo.
Tradicionalmente, vê-se como o "Império do Meio" — no
sentido de ser o país que está no centro do mundo. Esta visão, ao
que tudo indica, alimenta nas elites chineses a ideia de que o lugar
da maior potência económica, política e militar é "naturalmente"
seu. A ascensão a número um mundial, será uma espécie de
restabelecimento da ordem natural das coisas.
3. É cada vez mais
claro que a China é a grande vencedora da actual globalização,
iniciada por americanos e europeus (e também por japoneses). A sua
ascensão põe em causa ideias muitas feitas no Ocidente: (i) a ideia
que o capitalismo e o livre comércio andam a par da democracia
liberal; (ii) a ideia que a Internet e as redes sociais são um
espaço de liberdade e de empoderamento do cidadão, impulsionando a
democracia participativa; (iii) a ideia que a globalização
enfraquece o Estado e a sua soberania, tornando o Estado-nação e o
nacionalismo obsoleto. A China desmente-as. Precisamente devido à
globalização, é hoje um Estado muito mais forte e com crescente
capacidade de afirmar a sua soberania territorial — veja-se a sua
atitude de expansão crescente no mar do Sul da China. Para além
disso, tem hoje o sistema mais sofisticado do mundo de controlo da
Internet e de cibervigilância. A internet e as redes sociais são
úteis para despolitizar o cidadão e moldá-lo com a visão do mundo
que o governo pretende. A dissidência e o protesto são reorientados
e suprimidos, se necessário. Quanto à democracia liberal, está
hoje tão distante quanto na altura da abertura do país ao comércio
internacional e sua integração na economia capitalista global. Os
direitos humanos — especialmente a liberdade de expressão, de
imprensa, ou de formação de partidos políticos ao longo do
espectro ideológico —, continuam a ser tão limitados e reprimidos
como no passado.
4. Os
europeus/ocidentais, com a sua visão materialista do mundo criaram
uma (auto)ilusão perigosa. Aos seus olhos, a China é apenas um
mercado, um imenso mercado com enorme potencial lucrativo. No
exterior, os chineses procuram fazer negócios, comprando, vendendo e
investindo. A política não lhes interessa, nem têm objectivos
estratégicos de projecção de poder. Essa ilusão/ganância levou,
há uma década e meia atrás, a uma aceitação precipitada da China
na Organização Mundial do Comércio, pelos EUA e União Europeia. O
capitalismo ocidental tinha descoberto um novo paraíso que lhe
garantia lucros e um crescimento infinito. Onde os ocidentais vêem,
ou querem ver, apenas mercados e comércio, os chineses vêem
mercados, comércio e uma crescente projecção da sua influência
geopolítica no mundo. Na China, a sua já referida cultura milenar
tem uma dimensão estratégica, a qual, certamente, impregna a acção
directora do partido comunista chinês. Essa cultura estratégica,
orientada para o longo prazo, é paciente e persistente na
prossecução de objectivos constantes de poder nacional. Mais tarde
ou mais cedo, Taiwan (a Formosa), voltará à "mãe-China";
mais tarde ou mais cedo a Ásia ficará rendida à supremacia da
China; mais tarde ou mais cedo os EUA — essa potência global que
resultou de uma anomalia da história —, perderão a primazia
mundial, de que China é o natural detentor.
5. A falta de visão
de longo prazo das democracias ocidentais ajudou a criar o mais
poderoso rival que alguma vez tiveram na história. A China, com a
sua bem-sucedida combinação de autoritarismo com capitalismo, é,
cada vez mais, um modelo a replicar. Azar da democracia. Azar dos
direitos humanos. Os mercados e os negócios estão primeiro. A teia
chinesa de relações comerciais e de investimentos em sectores
estratégicos (infra-estruturas portuárias, redes de distribuição
de energia eléctrica, sector financeiro, etc.), foi orientada por
hábeis intuitos estratégicos. Criou dependências e
vulnerabilidades, de maior ou menor grau, em múltiplas partes do
mundo. Num cenário de agudização das tensões entre os EUA e a
China, todos os Estados que se colocaram nessa posição vão ficar
na necessidade de um equilibrismo (im)possível, entre os interesses
em choque das duas potências globais. A factura poderá ser bem
pesada quando aparecer. Subordinar o interesse nacional à lógica do
mercado, foi ceder à ilusão da irrelevância do Estado, da
soberania e da ascendência do político sobre o económico: o caso
da China desmente-o categoricamente. Se globalização chinesa entrar
em choque com a globalização americana — com Donald Trump, os EUA
estão numa vaga de nacionalismo —, muitos vão ficar em estado de
choque e sem saber como evitar serem arrastados para a engrenagem do
conflito.
6. Tudo isto não é
um problema só dos outros. Nós próprios, para além do mau serviço
prestado à democracia e aos direitos humanos, colocámo-nos no meio
de um possível fogo cruzado entre a globalização americana e a
chinesa. Alienámos infra-estruturas críticas (REN, EDP, etc.) a
investidores internacionais (leia-se chineses). Supostamente foram
apenas privatizações e os mercados a funcionar. Todavia, em última
instância, o maior comprador foi o Estado chinês. No caso da REN, a
State Grid da China — a maior empresa estatal de energia eléctrica
— tornou-se o accionista dominante (com 25% do capital). No caso da
EDP, foi a empresa estatal chinesa Three Georges que se tornou o
maior accionista individual (21,35% do capital). Em qualquer
hipotético, mas plausível, cenário de conflitualidade futura,
Portugal e a China estarão, com grande probabilidade, em lados
diferentes do conflito. Basta pensar num crescendo de tensões entre
os EUA e a China, por exemplo, devido à questão de Taiwan — nada
de muito implausível com Trump no poder. Podemos imaginar a
vulnerabilidade resultante de sermos arrastados para uma coligação
oposta à China, estando dependentes desta em sectores críticos para
o normal funcionamento do país. A globalização chinesa está a
marcar o rumo do século XXI. Vai levantar questões críticas na
economia e política internacional.
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